Um conto de Klaus Henrique Santos
Klaus Henrique Santos reside em Sinop/MT e é autor dos livros Páginas da Escuridão, Clube de autores, 2012; Enfim, a estrada!, edição do autor, 2014; Horror & Realidade, Carlini & Caniato editorial 2015; No Compasso da Loucura, Carlini & Caniato editorial, 2017 e A poesia mora no bar, Carlini e Caniato editorial, 2018.
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O dia em que o bar decolou
Ao Guadalupe Bar
Num velho caderno sujo, com folhas amassadas e rasgadas, contemplei a essência da loucura tragicamente real. Era a manifestação de uma alma livre, típica dos extintos poetas malditos. O conjunto de anotações pertencia a um dos garçons do bar que eu costumava frequentar. Sempre me referi ao lugar apenas como “bar”, pois assim como tantos outros boêmios, fiz daquele local o meu refúgio, portanto, acho desnecessário mencionar aqui o nome religioso que o batizava. O ambiente em penumbra criava perfeita harmonia com os grafites feitos por artistas locais nas paredes e garantia a discrição e a paz de espírito procurada pelos frequentadores.
Era o último sábado do mês, noite em que tradicionalmente havia caraoquê e a ideia de ler naquele momento não me agradou nada, pois estava levemente embriagado e como na maioria das vezes, só queria beber sozinho sem ser importunado. Por algum motivo decidi aceitar a proposta do amigo garçom. Aliás, naquele bar havia uma espécie de fraternidade entre os clientes mais fiéis, o proprietário e os que ali trabalhavam. Posso dizer que essa hierarquia se alternava de forma espontânea. Havia muita solidariedade, e todos nós, de uma maneira ou de outra, contribuíamos para que o bar funcionasse, às vezes trabalhando a troco da bebida, em outras gastando ali nossos poucos trocados. Folheei o caderno enquanto ganhava uma Brahma por cortesia da casa. “É a primeira vez que tomo uma cerveja gelada nessa espelunca” disse aos meus amigos, que já estavam acostumados às minhas brincadeiras nada engraçadas. Mais tarde eu diria que nunca mais voltaria naquele bar ou embarcaria na confusão de clientes que pensavam ser eu o proprietário ao me avistarem sempre na mesma parte do balcão a ouvir suas sugestões e reclamações. Prometeria a eles que tudo seria diferente na próxima vez, caso reclamassem ou se fossem elogios, agradeceria e diria que jamais modificaria qualquer coisa no estabelecimento. Fatos assim aconteceram por diversas vezes, mas isso não tem mais importância.
A primeira anotação no caderno, que visivelmente havia sido passada a limpo com muito cuidado, era intitulada como “Declarações boêmias”:
Sou desses poetas que vagam pelas madrugadas, noites frias que nem o sol escaldante dessas bandas aplaca;
Sou daqueles que tamborilavam à luz da lua primitiva, antes da dor do fogo de aço que leva a vida;
À noite, aos tragos, me consagro nos palcos. Trago dores e amores por demais amargos, intragáveis de beber;
Escritos cuspidos em guardanapos livram minha alma dos amores baratos e dos meus atos falhos;
Sou aquele que hoje queria estar, para um último trago, um cigarro, ou, pasme, até mesmo um pingado, com um sábio amigo, já falecido, em uma desconjuntada mesa de bar.
Era um texto ainda bastante cru, mas entendi a essência da mensagem. Virei a página, quando fui surpreendido com um tremor de terra que atingiu o bar. O banco em que eu estava vacilou, busquei o balcão, mas as mãos não alcançaram. O trajeto até o piso gelado seria rápido e a morte aguardava ali, ansiosa. Uma menina com a deusa Cali tatuada em uma das mãos que trabalhava no preparo de drinques naquela noite percebeu e segurou meus braços a tempo de evitar a queda. O tremor foi leve e derrubou algumas garrafas de vodca e cachaça e também os copos que estavam sobre o balcão. Os estragos foram pequenos nas mesas e creio que a maioria dos presentes não se deu conta do que acontecera. Até hoje eu mesmo não acredito.
Agradeci Maria, a menina que me salvou a vida, e enchi os nossos copos. Outra particularidade daquele bar era que se podia beber durante o expediente. O garçom que me dera o caderno se aproximou e em êxtase disse que o bar estava decolando e que o tremor que acabáramos de presenciar era só o primeiro estágio. Pediu-me para passar adiante algumas folhas do caderno onde ele havia relatado uma visão na qual todo o lugar decolava e partia rumo ao espaço. Maria e eu rimos de tamanha imaginação e então eu paguei a cerveja seguinte para encarar o restante da leitura. “Esse bar é um vórtex de loucos”, disse-me ela enquanto trazia a cerveja e enchia os copos, o dela primeiro, obviamente.
As anotações na página indicada não tinham título e eram um tanto quanto confusas. Diziam que um gato que habitava o lugar seria um espião alienígena e que finalmente conseguira cumprir a missão e contatar o seu povo para levar com ele alguns espécimes da nossa estranha raça. O gato-personagem era identificado apelas pela letra “T” e seria o guardião de uma nave que estava enterrada no subsolo há dezenas de anos. No trecho seguinte, o garçom-escritor anotou que a nave poderia estar enterrada ali desde tempos muito antigos, testemunhando inclusive rituais xamânicos naquele mesmo local onde estava o bar. Em um trecho todo rabiscado, o enredo trazia que um hippie frequentador do local alardeava que um dia todos ali seriam abduzidos, mas os clientes não lhe teriam dignado confiança em nenhuma ocasião. Ele era o único que sabia a real identidade do gato que comumente vagava por entre as mesas.
Achei o texto completamente sem sentido e um tanto quanto infantil, mas não disse isso ao meu amigo aspirante a escritor. Compartilhei minhas impressões com Maria, que em resposta, me estendeu um mojito sem ter prestado atenção ao que eu acabara de lhe dizer. Ela havia errado na dose e o drinque ficara muito forte. Nessas ocasiões eu sempre era contemplado com as bebidas e não recusava. Pedi mais uma cerveja e me pus a refletir sobre os devaneios daquele caderno sujo. Acabei adormecendo no balcão e se sonhei com algo, nunca consegui me lembrar. Isso também não importa mais.
Acordei com um novo tremor de terra, dessa vez mais forte. No palco, o meu amigo Rodrigo cantava Geni e o Zepelim, do Chico Buarque. O gato estava no lugar de costume, o alto da janela do segundo andar da residência anexa ao bar. De seus olhos vi uma espécie de laser esverdeado sendo direcionado para o céu escuro. Foi nesse instante que a nave adormecida sob o bar iniciou a decolagem. As estruturas de concreto e metal se desprenderam do solo, envoltas nas luzes azuladas que emanavam da nave. As luzes do bar vacilaram quando os cabos foram arrancados do poste e do transformador e o azul da nave tomou conta do ambiente. Em questão de segundos, o bar partiu rumo aos confins do universo com todos que estavam a bordo. Por motivos que desconheço, fiquei ali na cratera vazia, atônito e com o caderno nas mãos. O bar e seus habitués nunca mais foram vistos e há quem diga que nunca existiram de fato.
Não há motivos para alguém acreditar no meu relato, por isso abandono tudo nesse velho caderno, o mesmo que o garçom deixou comigo, e no qual sigo anotando algumas poucas coisas, com o único intuito de que as fendas da minha mente não levem essas lembranças. Quando a saudade se torna insuportável, revisito os bons tempos do bar por meio de fotografias que ainda guardo. São essas fotos daquelas noites fantásticas que atestam a minha sanidade. Nas noites de sábado costumo ir até a cratera, hoje tomada por arbustos. Levo uma garrafa de vinho, algumas cervejas e improviso uma pequena fogueira. Não sou visto pelos pedestres ou atingido pelas luzes dos faróis dos carros, apenas a claridade da lua e do fogo pode me enxergar ali naquela toca. Costumo me deitar na terra fofa e contemplar o céu estrelado, imaginando por onde viajará o bar. Talvez algum cliente tenha atirado sua comanda ao mar enquanto o bar subia em seu último giro pela Terra. Talvez um dia essa comanda apareça em alguma praia e possa atestar minha sanidade.
Não mencionei antes, mas o que me conforta é o trecho final do conto escrito pelo garçom, que só li depois do acontecido. Se tivesse lido naquela ocasião, diria a ele que era um bom texto, mas acredito que não terei essa oportunidade novamente. Segundo o conto, o bar teria se transformado em uma espécie de nau a viajar errantemente pela imensidão do universo e seus tripulantes estariam sentenciados a viver para sempre aquela mesma noite de cantorias e prazeres mundanos. Nos confins do universo, onde o conceito de tempo nunca existiu, o bar e seus habitués seguem bailando para sempre em uma noite mágica que nunca terá fim.
TERESINHA MACHADO DE OLIVEIRA
Muito bom. Fantasia, POESIA E IMAGINAÇÃO NA DOSE CERTA. bEM PODERIA VIRAR UM CURTA, COM CERTEZA TERIA IGUAL SUCESSO.