Um conto de Lajosy Silva
Lajosy Silva nasceu em Capinópolis, em 05 de julho de 1974. Fez Letras na Universidade Federal de Uberlândia e pós-graduação na UNESP e na USP, onde desenvolveu pesquisas na área de literatura, teatro e cinema. O autor escreveu artigos sobre literatura e cinema que estão na coletânea Olhares – teatro, cinema e literatura (2016), bem como a coletânea de ensaios Leituras de Jane Austen no século XXI (2014). Publicou os romances O sexo do pêssego (2006), Lêda e o cisne (2007), Confissão (2008), O fim de nós (2013), Orgulho (2013), Campina (2014) e Éden (2018), além da coletânea de contos Campos tristes (2010), com histórias inspiradas por sua cidade natal.
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DRIELE
Lídia e eu acordávamos com o barulho dos outros pela casa. Minha irmã sempre dormia ao meu lado contrariada. Quando abria os olhos, quase me deixava enganar por aquele rosto de criança ingênua. Suspirava como se estivesse sonhando. Às vezes, tinha medo que me furasse os olhos durante a noite ou acordasse com suas mãos em volta do meu pescoço. Totalmente mergulhada no seu sono, Lídia não sabia que eu existia por mais algum tempo. Era a minha chance para sair da cama. Meus outros irmãos, Marcelo e Ricardo, dividiam a cama de cima, mas já tinham ido trabalhar.
Do outro lado, tinha outra beliche com Adriano que se estendia ali depois de chegar do trabalho de vigia, o corpo pesado e preso na cama. Era o mais velho de todos. De certo, não ficaria ali até o meio-dia. Começava tudo de novo depois do almoço como ajudante num posto de gasolina até retomar seu posto de vigia no final da noite. Ele comeria o que nossa mãe deixava em cima do fogão. Era só esquentar, comer aquela mistura de farinha com tudo para começar o dia depois da uma hora da tarde e voltar para casa às cinco da manhã. Ele não dormia com ninguém mais, porque não tinha como caber na cama. Além de tudo, era dentre nós o que mais contribuía para as despesas.
A cama de cima estava vazia. Os irmãos tinham medo de dormir lá. Nela dormiram Natália, Mateus e Tiago. Os dois primeiros morreram aos dois e quatro anos. Qualquer tipo de doença que eu não lembrava agora. Mamãe falava tão pouco deles. Teriam se perdido como os peixes podres, proibidos de entrar em casa durante o período das eleições em Manaus. Esses irmãos surgiram antes de mim. Quanto a Tiago, ele saiu de casa mesmo. Fugiu para não trabalhar e entregar todo o dinheiro pra mamãe. Foi embora sem deixar nenhum rastro. Minha mãe, que já tinha perdido os outros, não se importou. Baqueou um pouco até se apoiar numa das poucas cadeiras da cozinha ao vê-lo sair. Filho ingrato, disse por fim. Voltou-se ainda mais para si mesma, seu corpo, uma casa própria.
Depois ficamos sabendo que Tiago se enrabichara por uma mulher bem mais velha que ele. Começou a beber pra suportar a vida de trabalho no porto até que se perdeu de vez. Agora estava na cadeia de Manaus por ter esfaqueado quase a família inteira da mãe-mulher que tinha arranjado. A cama continuava vazia. Por mais que eu quisesse ficar naquela cama, livre de Lídia, não podia. A cama era deles, dos que foram, porque minha mãe achava que Tiago podia voltar para casa algum dia. Fora de casa, podíamos ser e fazer o que quiséssemos, mamãe dizia. Aqui dentro tinha que ser como ela queria. E tinha mais: que outra mãe se sacrificava mais pelos filhos?
Andei pelo quarto enquanto Lídia e Adriano dormiam. Não havia muita luz. Talvez uma faixa estreita que roubava um pedacinho da escuridão. Caminhei até um pequeno armário que tínhamos, nossas roupas todas ali. Adriano levantou-se e me escondi no canto. Como um sonâmbulo, ele foi para cozinha tomar água ou comer alguma coisa. Lídia e eu estávamos no quarto sozinhos. Ela ainda dormia, a Cobra. Era pouco tempo para olhar o tesouro que comprei para mim há alguns dias.
Abri a pequena caixa e fiquei a contemplar aquela coisa bonita, livre do papelão colorido. O quarto nos separava do mundo. Não conseguia explicar, mesmo com a Cobra ali tão perto de mim, porque era como se eu estivesse seguro. O quarto pesava com o calor. Minha pele úmida sem as escamas da outra ainda sentia um pouco de frio. O quarto escuro e triste, mas tão meu que era só me esconder nele quando me sentia estranho para o mundo inteiro. Nele eu era tudo o que queria ser sem pedir permissão a qualquer pessoa. Mesmo a Cobra sabia do meu lugar favorito na casa ou talvez, até no mundo, porque ali ninguém poderia me atacar. Ninguém tiraria aquela dor genuína dos solitários e seus sonhos. Não me permitiam empilhar coisas, umas sobre as outras, mas elas existiam apesar das proibições.
A pequena caixa estava atrás do guarda-roupa. Tinha medo que a Cobra a descobrisse. Sabia que ela a destruiria se pudesse. Aquela coisa não tinha sangue nas veias, pensava. Se tinha, devia ser branco, aquela peste disfarçada de menina aos oito anos. Mas soltei minha princesa da caixa. Beleza Viva! Sorria para mim eternamente. Seria a única coisa que sorria para mim naquela casa. Quando a vi pela primeira vez, estava presa no seu castelo de vidro. Não foi fácil tirar minha princesa daquele lugar que não era luxuoso; porém, aos meus olhos de dez anos, tinha todo o encantamento do mundo. Não podia, disseram pra mim. Nem pra olhar? Não pode. O que é isso? Tome jeito, menino! Isso não é coisa pra ti! Era tudo o que ouvia. Ou não, não, não.
A vida seria feita de muitos não. Não posso agora. Não poderia por muito tempo. Naquele castelo de vidro, misturei-me às pessoas que se distraíam. Das primeiras vezes, quase fui pego, pois eu era uma coisa sujinha e indesejada que afastaria os clientes. Os guardas olhavam para mim: o que foi, menino? O que tu queres aqui? Ande, ande! Saia daqui! Tinha que observar minha princesa de longe, Driele, presa àquela caixa. Isso foi até ontem quando juntei todo o dinheiro que precisava para libertá-la. Não queria roubá-la. Descobri desde criança que a única coisa que não se roubava era o amor. Em casa, tratei de escondê-la, longe do seu castelo, agora uma biboca, perto de um igarapé, castelo feito de pedaços de madeira.
No quarto, Driele iria descansar. Fiz furinhos na caixa para que não morresse sufocada. Ah, Driele! Se tu soubesses o que é amar uma coisa linda como ti! Estava impressionado, meus olhos que a banhavam de amor. Nem queria tocá-la direito. Deitei-me no chão e senti o mormaço subir. Logo ele sobre todas as coisas no mundo, viria tomar conta de tudo. Não seria uma pancada luminosa, mas o estrondoso Senhor Sol lá fora que queimaria todos a começar pelo chão. Nem os carapanãs me incomodavam, enquanto Driele e eu nos amávamos. Ela lá em sua cara perfeita, branquinha, pequenos pontos azuis como olhos, os cabelos loiros que desciam do seu corpinho plástico. Aposto que quem a fez sabia que seria amada.
“Você me ama?”, perguntou Driele sem mexer com a boca.
Adorava ouvir você.
Tu para mim rima com cu, tatu, pacu, pirarucu. Mas não conseguia tirar o tu da boca. Era assim mesmo. Driele falaria você como as moças das novelas. As moças que chegavam do porto, de qualquer lugar para conhecer Manaus. O que eles veem aqui, Driele?
“Querem te ver.”
“E por acaso sou macaquinho?”
“Não, mocinho. Você é bonito, meu indiozinho.”
Fiz cara séria pra Driele. Não gostava que me chamassem de indiozinho, nem caboclinho, moreninho misturado.
“Tá bom. Sou teu índio. Só teu! Tu me chamas de tudo, meu amor.”
Então, a Cobra acordou, toda sonolenta. Eu não a vi. Como toda cobra, talvez a mais perigosa delas, despertou sorrateira e preguiçosa, viva e traiçoeira.
“O que tu tá fazendo, Vandinho?”
Quase morri de susto!
“Nada…”
Lídia sorriu toda diabólica.
“O que é isso?”
“Isso não. Ela é a Driele.”
Lídia nos olhou como se visse dois estranhos.
“É uma boneca?”
“Não, jaburu, é um urubu! Te manca e cai fora!”
Lídia gritou:
“Adriano, o Evandro tá brincando com uma boneca!” – levantou-se toda afetada – “Viadinho! Viadinho! Viadinho!” – e correu do quarto antes que eu a pegasse.
Lídia, a Diabólica, estava solta no mundo.
Pronto, a paz acabou pra mim.
Tratei de esconder Driele antes que a achassem, enquanto Lídia gritava feito uma louca na cozinha, o cão dos infernos. Adriano tentava comer. Ficou irritado e entrou no quarto como um serviçal do diabo.
“O que foi, maninho?”
O papel rosa da caixa estava na minha mão.
“Tu tava brincando de boneca, é?”
Lídia apareceu na porta com aquele sorriso pela metade.
Queria matá-la!
“Hei, Evandro! Tô falando contigo! O que é esse papel rosa na tua mão?”
“Nada… Um presente pra mamãe. Vou…”
“Mentira! Era uma boneca!”
Adriano ficou possesso e me sacudiu ainda mais.
Meu irmão não era mais que um nanico fortinho e bundudo. Tinha 16 anos, um colosso pronto para me arrebentar.
“É mentira desse cão!” – e olhei para Lídia, a Diabólica, que só faltava saltitar pelo quarto.
“É não, mano! Tava aí segurando uma boneca na mão. Falando com ela que nem uma menina!” – e saiu ensandecida pela casa que já não era grande – “Viadinho! Viadinho!”
“Sua doida! A vizinhança toda vai escutar!”
E Lídia não parava até que ele a acertou. A Diabólica caiu aos prantos no chão, mas Adriano voltou-se para mim, me deu umas boas sacudidas, apertou meu braço, deu tapas e esfregou o papel rosa na minha cara.
“Aqui não tem espaço pra viado não, ouviu bem? Eu te mato se te pegar brincando de boneca! Que casa de gente doida! Nem pra isso tem sossego aqui!” – e virando-se para Lídia – “Sua escandalosa, nem te bati ainda. Pare de chorar agora!”
Esperta, ela calou-se porque sabia que, dos irmãos, mesmo não sendo o mais violento, Adriano dava um cacete daqueles na gente. Emburrada, voltou para cama.
“A mãe deixou tudo pronto pra vocês, suas pragas do inferno!”
Tínhamos que vender tapioca no porto antes das sete.
“Nessa casa só tem gente doida!” – e lá foi ele terminar o resto da comida.
Olhei para a Diabólica.
Eu ainda te pego, maninha. Tu vais ver só!