Um conto de Laura Haubert
Laura Elizia Haubert é doutoranda em Filosofia pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Graduada e Mestra em Filosofia pela PUC-SP. Autora do livro Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul, publicado em 2017 pela Editora Patuá e também de Memórias de uma vida pequena, publicado em 2019 pela Quintal Edições. Mantém um projeto de entrevistas com escritoras chamado “Chicas que escrevem” www.instagram.com/chicasqueescrevem
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O que te pertence
— Você já se sentiu assim tão sozinha, Marta?
— Assim como, Marcos? Que história é essa agora?
— Sozinha, Marta. Completamente sozinha, que nem Deus te quer.
— Marcos que coisa mais boba. Deixa de pensar nisso. A gente já tem problema demais por agora.
Marcos não disse, mas não havia um único dia de sua vida que ele não pensava sobre a forma como a solidão se sentava cômoda em seu peito e o sufocava de pouco em pouco. Como é que ele poderia dizer isso tudo? E, pior, se lograsse comunicar-se, quem disse que ela entenderia?
Ser entendido era um tipo de desejo impossível.
Marta era uma mulher prática, era uma pessoa prática. As coisas tinham duas cores, duas possibilidades, claro e escuro. Tudo era tão mais simples em sua concepção, tudo era tão corrido e corroído pelas limitações. Ela não se sentia sozinha assim. Sentia? Como é possível saber?
Era uma tristeza suavemente pesada se sentir assim tão só, mesmo com ela ali do lado. Sentir-se tão só ao ponto de não saber mais ser capaz de respirar. O que se poderia fazer com aquele insubstituível peso da vida? O que é que lhe pertencia além de sua solidão?
Nem seu carro mais, nem seu carro. Melhor não pensar no carro, ainda não tinha lhe contado que ele estava na garagem por pura sorte. É, sorte. Porque com a tal pandemia o agente de justiça não tinha vindo retirar o carro, recuperar o dinheiro do banco em outro formato, agora. Pensando bem, meia sorte. Ele tinha ficado com o carro, só não podia ir para lugar algum. Então, para quê ele servia?
— Querido, vou fazer o almoço.
Ela se levantou do sofá, ignorando o fato de que o filme não tinha acabado. Será que não tinha gostado do filme? Ele tinha achado tão interessante, mas ele também tinha achado sensato fazer um empréstimo que não conseguia pagar. As coisas nos atropelam, que coisa mais absurda é essa vida.
Meneou a cabeça, ali da sala podia ver a mulher se movendo pela cozinha. Seu rosto compenetrado, as mãos alternavam os instrumentos, o ruído do filme que ele não prestava atenção. Será que ela se sentia tão terrivelmente derrotada como ele? Mas, como é que se poderia perguntar isto para alguém? Como se poderia chegar bem perto, colocar o dedo na ferida, e indagar, dói?
O telefone toca. Faz tempo que o telefone não toca, ninguém se liga. Para quê ligar? Não vai ter reunião, nem dia útil, nem nada. Ao menos seu coração já não dispara mais de medo, não vai ser o banco, pelo menos não vai ser o banco. Já imaginou se ela descobre a verdade por meio do banco? Que vergonha terrível seria.
Ele ia arrumar tudo, assim que desse. Já até tinha comentado com o Juliano que estava disposto a emprestar um dinheiro, sem juros, coisa de amigos, só para ele salvar o carro. O carro parecia tão importante, até estar na garagem e agora servir só para atormentar seus pensamentos. Para quê é que comprávamos todas as coisas que comprávamos?
Desliga a televisão, incomodado. Era melhor não pensar nisso, mas trancado em casa era difícil não pensar. Pensava, pensava, e pensava, com o mesmo afinco de um trabalhador de minas dedicado. Exceto, que na melhor das hipóteses não teria nenhuma pepita de ouro. O que é que ele teria? O que é que sai dos nossos pensamentos?
— Oi, Carla. — Escuta a mulher dizer.
Respira aliviado, não é o banco.
Devia ocupar a cabeça, trabalhar um pouco. Acena para a esposa indicando que vai para o jardim, faltava plantar as mudas de alecrim e manjericão que ela tinha pedido, ter uma horta nunca tinha sido tão importante. Mexer na terra, sujar os dedos e o meio dos dedos o acalmava profundamente. Era bom ter algo para fazer, ainda que não fosse importante. O que era importante?
A mulher acena, ele vai saindo em direção ao sol, em direção ao quintal. Verde, tranquilo. O mundo ali não parece tão diferente assim, e embora não se importe com sua solidão, é capaz de preenchê-lo. Será que algum vizinho se sentia assim, tão sozinho como ele?
Tinha vontade de levar a escada até o muro, subir todos os degraus e dali gritar para o vizinho do lado, só para matar a curiosidade. Pena, que era coisa estranha de se fazer, melhor não fazer. Melhor era só plantar as mudas que aguardavam nos saquinhos pendurados ao lado da torneira enferrujada.
Enquanto ele planta, incapaz de se conter, pergunta mais uma vez a si mesmo o que é que nos pertence. Não há resposta, melhor era não pensar nisso. Apertou o dedo contra a terra fazendo um buraco e depositando as sementes de salsa primeiro. Era uma época louca, será que todos se sentiam tão sós assim como ele?
Marta não se sentia. Mas o que é Marta sentia, afinal?