Um conto de Lealdo Andrade
Lealdo Andrade nasceu em Feira de Santana-BA, cresceu em Aracaju-SE, morou durante 14 anos em São Paulo-SP e hoje se encontra em Winnipeg-MB, no Canadá. Chegou a fazer alguns semestres de Letras, mas é formado em Engenharia e trabalha com isso, se dedicando às letras nas horas vagas. Tem alguns contos, resenhas, traduções e poemas publicados em veículos on-line e em sua página (clique aqui).
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Eu estava para me jogar, porque queria morrer. De onde eu ia me jogar? Poderia ter sido de uma ponte, ou de um prédio, mas no meu caso era apenas de uma calçada, na frente de um carro. Um borrão roxo descendo a ladeira a cinquenta metros de distância, não sou capaz de asseverar certeza quanto à cor, nessas horas a gente é até capaz de se confundir, mas há de se concordar que carros roxos não são tão comuns, portanto quando pude garantir que o carro justamente sobre o qual iria me jogar era sim roxo, aliás, um Fiesta roxo meio lilás, meu deus, que cor ridícula do caralho para um carro, em particular para um carro que um trainee de suicida escolheu como cúmplice involuntário, não houve jeito, comecei a sentir subindo na barriga um espasmo de bom-humor, quase deixei de me matar, sei que gastar tempo falando disso é apenas um modo de protelar a realidade, mas tudo tem um propósito, ou assim nós gostamos de acreditar, e por isso o que ao fim me salvou não foi a cor do carro, nem a minha tentativa de encontrar qualquer desculpa para mudar o plano, tampouco o fato de eu estar querendo partir dessa para uma melhor, é assim mesmo que dizem?, para uma melhor?, eis uma piada coletiva, para uma melhor numa rua feíssima, sujíssima, chamada Consolação, ah, um Fiesta como consolacão numa rua chamada solução, penso que começamos a criar aforismos para suprir a ausência de Deus, porém devo prosseguir, o que, ou quem, me impediu ao fim, do fim, foi o José, sim, meu velho conhecido José, porque mesmo com o potencial ataque de riso eu ainda iria me jogar, lá estaria eu atrás de um ponto de ônibus e o motorista que, creio eu, não tinha ainda me visto, estaria em seu Fiesta roxo-lilás e de repente, BAM, pula um corpo vestido de preto na frente de seu para-choque pintado de roxo, uma combinação de cores ao meu ver elegante, se bem que talvez um pouco, com todo o respeito, funesta, que somente com o vermelho passaria a ter alguma dose de vida. Nada disso porém aconteceu, pois aquele homem, o José, que não estava vestido de roxo nem de preto, mas de branco, tal qual messias da sarjeta, me impediu. Por que me impediu? Sim, essa foi também a pergunta que eu me fiz, passei uns bons minutos tentando entender o que estava acontecendo com o mundo após ser jogado para trás. Convenhamos, impedir um suicídio alheio está numa categoria de inconveniência dois graus acima de, por exemplo, impedir uma foda alheia, é algo que não se deve fazer nem mesmo com o melhor amigo, basta imaginar o empenho médio que se põe para arranjar uma boa foda, quanto mais para se arranjar um bom suicídio, não que o meu suicídio estivesse numa categoria estelar, foi quase que improvisado, ainda assim, creio eu, seria bom o suficiente não só para dar cabo rápido da minha dor, condição sine qua non para uma classificação irrepreensível, como talvez ainda angariasse uma gravação amadora de celular cobrindo toda a cena, sempre tem algum filho da puta filmando tudo, este vídeo com sorte viralizaria entre alguns adolescentes de gosto tétrico, ou seja, qualquer bom adolescente, o que, não sendo o suficiente para de fato me converter numa celebridade post mortem, talvez bastasse à minha pessoa como réquiem. Portanto, não posso reclamar. Quem é José? Antes daquela calçada, eu estava no meu apartamento. E antes deste, noutro apartamento. O meu e o da Rita. Ou melhor, o da Rita e depois o meu, nesta ordem. Fui no meu por último para arrumar as minhas coisas, é claro, ninguém quer partir dessa e deixar uma bagunça, seria um desaforo com os que ficam. Já no da Rita fui por um momento de fraqueza, pela esperança de uma apelação final, pelo sim que eu já sabia de antemão ser um não. Natural que o cansaço uma hora tranque velhos caminhos, ela me aguentou por tempo demais, mas não posso reclamar, poderia mencionar por exemplo, todas as peças que fizemos juntos, que quando boas chegavam, com sorte, a um público de quinze espectadores por sessão, nossos quinze observadores que tão bem nos conheciam, ou com algum azar a uns cinquenta, e falo azar nesse caso porque claro que não esperávamos tamanho sucesso, contávamos apenas com os quinze fiéis, olhe que nem todos dos quinze eram nossos amigos, mas ainda assim eram confiáveis, e quando se começa a atrair este tipo de multidão na casa dos cinquenta fica fácil uma fala qualquer ser estragada com uma engasgada na plateia, ou, ilustrando um cenário ainda mais desagradável, algum membro incauto da audiência se ofender quando o ator em cena põe o pau para fora, porra, amigo, isso é algo que eu já venho fazendo por ao menos dez anos só aqui em São Paulo, o público fiel de quinze amigos seria até capaz de acompanhar meu passar dos anos só pela proliferação de rugas na rola, qualquer peça alternativa que se preste terá gente pelada em cena, é só ver o catálogo dos Satyros, e aí sou obrigado nesse contexto a imaginar o seguinte cenário, não é possível que a pessoa viu o acabamento amador do cartaz, pagou pelos ingressos, pegou na mão suada da namorada, desceu aquela escada, se sentou naquela cadeira desconfortável, suou com o ar-condicionado fraco, sentiu portanto a mão da namorada suando mais ainda, se submeteu a uma hora e meia de enredo confuso e rarefeito, cada uma dessas etapas encarada com vigor estóico, e o que tenha enfim lhe feito se despertar em choque lacaniano tenha sido a visão de um pênis, adulto e flácido, quase sempre em cena flácido, se chocar portanto com a imagem de uma porra de pinto mole?, é muita mediocridade, venhamos e convenhamos. Ah, perdão pela cólera, é o conservadorismo, a burrice, eu não sou assim normalmente, deixa eu respirar um pouco para me recompor. Pronto. Não posso reclamar. Rita e eu vivemos muito, vivemos. Não falo só do teatro. Claro que o teatro era, digo, é ainda a nossa vida, desde o início foi, e independente de toda a presente litania de frustrações, foi maravilhoso, foi tudo o que eu queria, isso foi. Encenamos de tudo, do melhor e do pior, do cheio e vazio, popular e vanguardista. Sempre juntos? Sim, sempre juntos, mesmo quando não tinha espaço para os dois em palco dávamos um jeito de o outro estar ali por perto, na cenografia ou mesmo na iluminação, e quando tinha espaço, era melhor ainda, não posso reclamar, claro que nossas peças mais recentes foram aos poucos se tornando, vamos lá, mais populares, não queríamos passar de novo por um aperto no aluguel, e é difícil evitar isso trabalhando na Roosevelt a vida inteira. O pulso artístico todavia esteve sempre ali conosco, mesmo que escondido entre um teatrão e outro, escondido mas vivo, como quando fizemos apenas dez encenações de um conto daquele autor que era um jovem envelhecido, sim, até que veio gente, mais do que apenas os quinze amigos de costume, escritor pop é assim, ajuda a atrair incautos, o restante foi por nossa conta, Rita teve a ideia e escreveu a adaptação e eu dirigi, os dois e apenas os dois no palco, e a cada noite ela colocava seus óculos redondos sem grau, maquiava em si uma suave barba, e se punha como o narrador do texto, sentada, ou melhor, sentado, sentado e fumando no centro geométrico de um palco onde a cenografia consistia em: uma mesa simples com uma máquina de datilografar e um cinzeiro em cima, talvez a própria máquina de datilografar fosse o cinzeiro mas admito que até eu acharia isso um desperdício, um piso revestido de páginas revestidas de texto, algumas delas inteiras, a maioria rasgada, e uma velha bandeira de um velho e perdido país latinoamericano pendurada no fundo do palco. Eu ia e voltava caracterizado como todos os personagens que ao longo da vida encheram o narrador de arrebatamento e terror, primeiro como seus avós, depois como seus professores, então como o grande poeta e por fim como Hitler, mais ou menos nessa ordem, é uma progressão natural, e era como Hitler que o ápice da peça se dava, aliás, não só natural como até previsível isso, muito difícil aumentar o sarrafo da provocação quando já se pôs Hitler em qualquer coisa, quem sabe se eu aparecesse depois como a mãe do narrador, tente digerir por um segundo esta ideia: nossas respectivas mães como as sucessões naturais de Adolf Hitler, mas nem eu nem meus espectadores tínhamos mais paciência a essa altura com Freud e seus lacaios, portanto parava em Hitler mesmo, pondo um bigodinho e um traje militar de quinta, e com meus gritos e gestos e sotaque já era capaz de causar certo espanto, era assim que eu marchava para o meio do palco, e, chutando a máquina de datilografar para longe da mesa, jesus, quantas vezes não fiquei com medo de espatifá-la fazendo aquilo, me sentava na mesa com as coxas entrelaçadas na cabeça do personagem-narrador, quase cobrindo a visão que a plateia tinha dele, e me punha a fazer com muito carinho um cafuné em sua cabeça, o narrador que era minha esposa mas talvez pudesse não ser, utilizando óculos redondos e uma suave barba falsa e fumando sem parar, e, num volume que impedia a plateia de ouvir, começava ali a narrar-lhe, com a afeição de que era capaz mas mantendo o sotaque alemão, todas as melhores vezes em que fizemos amor na vida real, em manhãs de domingo, noites de terça, noites de quinta, noites de domingo, com ou sem música, com ou sem velas, todas as posições e locais da casa e volumes de suor e quantidades de orgasmo que cada um teve, se durante aquela noite dormia uma visita na sala ou não, se um dos dois tinha se enganchado com a roupa antes ou não, se após gozarmos algum dos dois tinha dormido de imediato ou não, e eu sorria por baixo do bigodinho e ela sorria com o cigarro por entre seus dentes, eu a olhava com paixão, e ela me retribuía. Toda a ideia fora dela, eu apenas a executava. Claro que nem todas as cenas ou peças saíam assim intensas, várias eram somente prosaicas, lindo termo que perdeu sua essência, vem de prosa, não?, e em várias delas nos comprometíamos a fazer toda noite as mesmas piadas ruins, as mesmas falas ruins, as mesmas pantomimas ruins como reações ruins para surpresas ruins, e era o que naquelas noites ruins nos pagava as contas e portanto não posso reclamar. Sim, eu e Rita vivemos muito, vivemos. E como, fora das peças, fora da arte, se já é tão difícil para qualquer ser de alma sensata tolerar essa infinita imbecilidade que é o dia-a-dia, como então suportávamos o tédio e a repetição esmagadores que são o suco de uma convivência? Não falo apenas da monogamia, pode sim também haver a monogamia, ou não, nem sempre tem, seja isto evidente para os dois, ou não, mas com ou sem monogamia ninguém trepa o tempo todo, e o que fazer em todas as outras horas do dia? Para além do trabalho, para além das atividades criativas, isto é, se estas por sorte existirem, para além da montanha de pequenas e estúpidas tarefas domésticas de cada jornada, como é que se faz para olhar na cara um do outro após tantos anos e ainda se suportar, ainda conseguir resistir com louvor à tentação de pegar uma faca na cozinha e resolver todas as discussões ali de uma só vez?, veja, não falo de um homicídio ou mesmo de feminicídio, não sou incivil, prezo sobretudo pela harmonia e possibilidade de uma vida em sociedade, estou portanto falando é do atalho para fora, do percurso rápido, da solução peremptória que apenas o cortar dos respectivos punhos permite. No entanto, a maioria de nós vive, é claro, ou ao menos sobrevive a um inferno a dois sob o mesmo teto. Como então eles fazem, como nós fazemos, sem apelar para o tal atalho? Aprendendo a imaginar, suponho. Foi o que eu fiz, e o que, eu tenho certeza, a Rita fez muito mais. Ela afinal necessitou mais do que eu. Na forma estúpida como eu a amava, se eu estava sempre atrás de algo que havia sido o embrião da nossa relação, uma espécie de forma original e pura do nosso amor, a consequência óbvia e clara era que eu estava sempre frustrado, e foi nessa frustração, que eu descontava muito mais nela do que em mim mesmo, que não apenas me cerrei frente ao que eu estava vivendo como impedi que algo melhor nascesse no futuro. Claro que Rita cansou. Nem tudo na vida se resume a um banho na chuva quando se tem vinte anos, e assim tive que aprender a conviver com essa maldita angústia que dá na gente por sabermos que tudo tem prazo de validade, por descobrirmos que existem janelas que se fecham. Rita tentou sempre ensinar isso, eu é que nunca aprendi, na minha estupidez, na minha idolatria pelo que já houve. E foi por essa obsessão com o passado que deixei de crescer, obsessão que houve desde jovem, mesmo quando eu ainda era jovem o suficiente para achar que os vinte anos que eu tinha vivido até então representavam o ciclo completo de uma vida, e que os próximos vinte anos, que agora já se passaram, seriam apenas uma repetição vazia. Se fosse menos burro, teria aprendido, ou ao menos imaginado, que cada década traz consigo sua própria carga de dores, e são elas que previnem a repetição pura e simples. Dois anos antes, com dezoito anos, tivera minha primeira crise de depressão, no primeiro semestre da graduação em ciências sociais. Até aquela idade, achava que o conhecimento redimia a vida. Foram necessários apenas dois meses e meio de ensino superior para me dar conta da latejante burrice desta tese. Passei então sete meses quase sem pisar fora do quarto. Respondia as mensagens dos meus melhores amigos uma vez por mês, e as dos outros amigos, nunca. Saía do quarto apenas para ir ao banheiro: uma vez por dia pela privada, uma vez a cada cinco ou sete dias pela ducha. As primeiras semanas foram gastas ouvindo sambas antigos e olhando para o teto. Comecei então a ver televisão sem parar: ou séries de ficção científica ou programas jornalísticos mundo-cão, ambos transmitindo de forma inconfundível a mesma mensagem: não há civilização viável na Terra. Vendi minha TV, baixei emuladores para o computador e fiquei jogando RPGs japoneses das gerações de 8 e 16 bits, de preferência ainda em japonês, idioma que não conheço. Me obrigava a imaginar e escrever à mão, o que eu presumia ser cada diálogo, e a imaginar assim os enredos dos jogos. Depois, lia em inglês as tramas e descobria serem fatalmente menos interessantes do que o que havia posto no caderno. A cada dia, dormia uma hora mais tarde, de forma que à dada altura jogava até as sete da manhã, dormia até as três da tarde, e voltava a jogar quando acordava. Depois de duas semanas, o meu ciclo se realinhava com o da maior parte da sociedade. Enjoei, apaguei os emuladores, comprei um contrabaixo e um amplificador de violão, ambos usados, e comecei a dormir todos os dias à mesma hora (oito da noite) enquanto passava as quinze horas anteriores tocando baixo, imitando os sons em paralelo com a boca, como se estivesse falando baleiês. Bou-bou-bum-bou-buuum. Por um mês achei que poderia ficar famoso fazendo isso. Deixava meu celular gravando as improvisações e jogava tudo na internet. No segundo mês, percebi a minha estupidez. Vendi o instrumento e fiz a única coisa que pareceu razoável: entrei para o teatro. Me recordei de um coletivo que fazia ensaios abertos e cujos dois únicos pré-requisitos para admissão de membros eu atendia: que já tivessem contemplado o suicídio e que não tivessem experiência no teatro. Dessa forma eles preenchiam as suas fileiras com o queriam, amadores fracassados. Os amadores bem-sucedidos, fatal e infelizmente, não estavam mais disponíveis. Enviei-lhes uma mensagem e fui avisado para ir à cidade do Rio. Peguei uma parte do dinheiro da venda do baixo, comprei uma passagem de ônibus, me despedi dos meus pais, que testemunharam atônitos seu filho sair de casa, e fui me tornar mais um no Coletivo do Fiasco. Às vezes me pergunto se fui bem recebido logo que cheguei. Quero acreditar que sim, mas a minha primeira impressão é que todo mundo era muito estranho. A segunda impressão foi que na verdade eles eram os os cidadãos mais ordeiros e sensatos do mundo, e o estranho era eu. A terceira, e que em sua obviedade foi a que permaneceu, foi que toda e qualquer estranheza no universo não passa de uma evidente manifestação de ignorância, e foi assim que passei a achar tudo na vida ao mesmo tempo familiar e estranho. Claro que em algum momento aprendi a atuar, ou ao menos aprendi a decorar falas, entrar no palco e fingir que era outro, e em certos dias achava que ambas as coisas eram iguais e noutros tinha certeza que havia ali uma diferença que jamais captaria. Nos primeiros meses, todos os amadores veteranos do coletivo fizeram questão de nos dar novos nomes, e tomaram para eles os nossos. Passar meio ano dormindo e acordando com outro nome, quase nunca sozinho, já que o espaço privado na casa era diminuto, sendo chamado por outro nome nos ensaios, na cozinha, no bar, no banho e no sexo, tem um efeito que só posso chamar de dissociador. Passei dois meses achando que era Carlos. Depois dois meses convicto de que me chamava André. Por fim, dois meses certo de que era um homem trans chamado Miguel. Os nomes de todos em volta também mudavam sempre, os nomes surgiam e se alteravam e se multiplicavam e sumiam, como fogos de artifício ziguezagueantes. Creio que isso tenha me ajudado a virar um melhor ator. Também creio que tenha me deixado mais maluco. Não sei se há diferença. José, que chamei de André por tempo demais até me lembrar de que o André era eu, era de quem eu era mais próximo. Acredito em parte que nos aproximamos pela afinidade do que gostávamos: o palco. Acredito mais, porém, que tenha sido pela afinidade do que odiávamos: a burrice, a família, os médicos, o Roberto Carlos, o Flamengo, o Corinthians e o Grêmio, toda a grande mídia, metade do jornalismo independente, sete oitavos das músicas, três quartos dos livros e um terço das peças. Tive algumas namoradas no coletivo, porém isso é um uso generoso da expressão. Quase nunca havia monogamia, o que está longe de significar que não havia amor, e o que também está longe de significar que todos transavam com todos. Como em qualquer comunidade, havia corações partidos, rancores, recusas e dissabores. Não existem utopias, apenas diferentes infernos. Rita era a namorada de José, e por ter percebido antes de qualquer outro o quanto nós éramos semelhantes, ela até se aproximava de outros homens e mulheres, mas nunca de mim. Um de nós dois na sua vida já era o suficiente. Eu não pensava nisso, havia muito quem amar e muito o que fazer, como por exemplo todo o trabalho que sustentava nossa não-mais-tão-pequena fantasia artística. Pagávamos aluguéis e contas, e só deus sabe o que não era necessário para isso, essa peleja fez parte da minha inauguração na vida adulta como a de qualquer outro, talvez apenas sob um sofrimento menor já que, literalmente, coletivo. De vez em quando, um de nós conseguia um trabalho mais-ou-menos remunerado noutros palcos; noutras vezes, conseguíamos apoio de mecenas surpreendentemente generosos e imaginavelmente desequilibrados; noutras vezes ainda, recorríamos à medicância qualificada e subliminar: atores e atrizes fantasiados de mendigos e mendigas, que podiam por sua vez estar eles mesmos fantasiados de atores e atrizes ou não. Esta última alternativa fora uma ideia da Rita. Por audácia e por não ter nada a perder, fui o primeiro a pô-la em prova. Sem saber, já era um prenúncio do quanto de iniciativa faltaria na minha vida: estava disposto a tudo, desde que decidido por outro. Quando porém tudo mais falhava na obtenção de dinheiro, e os aluguéis já estavam atrasados, e o nosso despejo era iminente, tomávamos a única decisão sensata, que era a de trocar de casa na surdina da noite e deixar que o senhorio pudesse meditar sob o auspício do recém-adquirido silêncio de sua propriedade. Numa das noites de performance disfaçarda de mendicância, uma particularmente infortuna, já que começara a cair um súbito toró no meio da noite, e todas as ruas ficaram vazias, chegamos ensopados na casa do coletivo, que ficava à época na Rua dos Inválidos na Lapa, não sei nem se o imóvel existe ainda. Alguns foram atrás das poucas toalhas que tínhamos, e sem palavras ou acertos prévios todos passamos a nos despir, alguns homens secavam com carinho o cabelo de outros homens enquanto ao mesmo tempo beijavam seus ouvidos, algumas das mulheres punham uma toalha à sua volta enquanto se abraçavam e beijavam, e foi nessa roda viva de corpos brancos, negros e morenos que se secavam e voltavam a se umedecer que Rita me puxou pelo braço, me levando para um dos quartos compartilhados onde agora por um milagre da chuva não havia mais ninguém, e sem que tívessemos trazido uma toalha, pegou o que havia de pano na cama e começou a secar cada ângulo do meu corpo, para então se aproximar e me limpar felina com a língua, e foi com uma serena certeza que eu constatei nunca antes ter estado tão puro. Fizemos nosso primeiro amor e dormimos, exaustos e mais molhados do que havíamos chegado no quarto. Mais tarde, entre sonhos confusos e memórias rarefeitas, tive a impressão de a porta ter se aberto e fechado sem que ninguém entrasse. A partir deste dia, enquanto eu me tornei o novo José para Rita, o antigo José se tornou uma sombra de si mesmo, e foi assim que vida dele descarrilou, um inteiro imbecil como eu ainda me revelaria, um devoto de si mesmo como eu já era, e foi por falhar a si mesmo que ele tentou resolver o problema pela raiz, ou seja, se matar, assim como eu tentaria vinte anos depois, o que significa ontem. No entanto, não sejamos triviais, tampouco rasteiros. Já que estou falando novamente de um suicídio, apesar de a segunda tentativa ter sido na verdade a primeira, que sejamos precisos. O que aconteceu? José tentou se matar. Como? Pela técnica dos corajosos, cortando os pulsos, lembre-se, passando a lâmina não no sentido da largura mas no do comprimento, esse é o segredo, e o que diferencia um suicida aplicado e bem-sucedido de um malogrado preguiçoso. Se ele sabia a técnica correta, por que então falhou em sua missão? Porque nós o impedimos, porque ele não teve a preocupação de se afastar para um local mais distante, porque ele não imaginou que nos daríamos ao trabalho de intervir. Nós quem? Nós, seus colegas de palco e dores. Houve carta, ou alguma nota? Não, assim como eu também não deixaria depois. Por que não? No caso dele, creio que o ato era a própria nota, escrita numa mensagem que nós entenderíamos. Era um recado, não uma solução. Como José enfim reagiu, após tudo? Bem e mal. Bem por saber que tínhamos impedido-lhe de fazer uma merda. Mal por saber que fora incapaz de sequer fazer uma merda. Para além do bem e do mal, também cuspiu na minha cara. E na de Rita. Não o culpo. Nunca mais o vi depois. Nunca mais o vi? Talvez seja exagero. Provavelmente sim, tenha-o visto, não falo de ontem, falo do passado fugidio, de quando seu rosto me apareceu no escuro como um diabo deitado em meu peito. Sim, vi-o algumas noites de relance na plateia de peças minhas com Rita. Rita, que ao contrário de José, com quem passei muito menos tempo, me percebo agora incapaz de descrever decentemente, creio que por nunca tê-la observado de verdade, observado para além da paixão ou do ego, essas duas viseiras. Sim, vi José, também em conversas, quando alguém com quem eu dividia um café e com quem eu dividira esses dias no Rio falava sobre os tempos do coletivo, e o nome de José pesava como uma doença no ar. Mudávamos de assunto. Essa covardia momentânea não significava no entanto que eu não soubesse de sua vida. Sim, sabia. Porque chegava a Rita. Ou a mim. Ou Rita ia atrás de saber. Ou eu ia. Parece que ele foi morar em Belo Horizonte. Depois em Brasília. Voltou a Belo Horizonte. Teve algumas namoradas, uma chamada Juçara, que era publicitária, outra chamada Taís, que era bancária, ou talvez fosse Juçara a bancária, e Taís a publicitária, e isto pouco faria diferença. Pode ou não ter tido também um namorado, ou dois, durante uma época. Me contaram que depois se tornou um dos fundadores de uma companhia alternativa de teatro em Minas, chamada O Pato Que Pula. Contaram que para arrecadar dinheiro para as produções com doze espectadores, veja, eu tinha quinze por estar em São Paulo, nem todos estão relegados a essa sorte, os atores da companhia se vestiam de palhaços, todos maquiados necessariamente com lágrimas e expressões de desalento, e saíam na Savassi em busca de algum bar lotado com pessoas de esquerda, mas não tão de esquerda a ponto de não terem dinheiro. Tendo localizado suas vítimas, perguntavam-lhes primeiro se elas gostavam de teatro. A resposta previsível era não, mesmo quando alguns deles chegavam a frequentar o teatro, ninguém responderia sim a essa pergunta àquela hora e local. Os palhaços, já prevenidos, lhes fustigavam a seguir lhes perguntando se alguém ali gostava de poesia. Mais uma vez, a resposta, quando havia, era um uníssono não, para essa não havia aliás necessidade de mentir. Confirmadas as negações da plateia frente ao teatro e à poesia, não restava àquela hora e local outra opção que não o espancamento. Não falo de agressão à plateia, eles já tinham dispensado qualquer agressão possível ao negar o teatro e a poesia, o espancamento era entre eles, os palhaços-atores, começando com José batendo numa mesa e gritando ao mundo que se nem aqueles estudantes de história e jornalismo estavam dispostos a sacrificar dois reais pela arte, quem mais o faria?, e afirmando a seguir que estava pronto para abandonar tudo, desistir daquela vida, quando um dos outros palhaços sem qualquer aviso o agarrava pelas golas e o jogava no chão, cuspindo-lhe na cara e gritando para ele nunca mais dizer aquilo, porque seria um atentado inaceitável, contra quem ou o quê eu mesmo me pergunto com espanto, até que um terceiro palhaço empurrava sem maiores protestos o segundo e recebia em troca um soco no rosto, gatilho que dava início à fase que poder-se-ia chamar de vias de fato coletivas, quando num tênue equilíbrio entre cada-um-por-si e trabalho em grupo todos se engalfinhavam entre socos, chutes, empurrões e mata-leões, natural que a intenção era machucar de verdade o menos possível mas nem sempre se conseguia manter sob manejo a emoção, isto tanto pelas velocidades necessárias para uma boa ilusão dos golpes como pelo próprio atiçamento da plateia, que nem em seus sonhos esperavam algo tão real e catártico a partir de quem tinha começado perguntando de teatro e poesia. Ao fim de alguns minutos, com maquiagens borradas, sapatos de palhaço caídos e olhos que continuariam roxos no dia seguinte, sem falar nas eventuais ameaças de chamarem a polícia, José e todos da trupe de súbito se erguiam e, sapatos à mão, se curvavam de modo solene aos membros do bar-plateia, que só então notavam atônitos que já tiveram todo o entrenimento que poderiam desejar naquela noite e enfim contribuíam com alguns reais cada um, carregando todos para casa ao fim a dúvida de quanto daquilo havia sido atuado ou não, carregando também toda a história para amigos a princípio incrédulos. A verdade porém foi que qualquer peça deles encenada sobre o palco era muito menos intensa que as cenas de luta na Savassi, de forma que ao fim de seis ou sete meses, mesmo os membros mais aguerridos foram obrigados a decretar o fim da trupe O Pato Que Pula. Eu não posso reclamar, mas parece que José podia. Talvez da vida, talvez de si próprio, talvez não haja diferença. José, prostrado, ficou na casa de Taís, ou Juçara, deitado fumando, olhando para o teto fumando, cozinhando fumando, comendo fumando, lavando a louça fumando, refletindo sobre o porquê da porra da mediocridade do mundo, o porquê da porra da mediocridade perene do mundo, o porquê da porra da mediocridade perene que condenava tudo a se repetir num ouroboros onde a cabeça da cobra era a estupidez, e o rabo era o dinheiro, e isso tanto poderia significar que a estupidez se alimenta do dinheiro, o que seria uma interpretação primeira e óbvia, como também que o dinheiro seria uma necessária consequência da estupidez, e se isso põe a suposta eficácia dos mercados em cheque, como é que então o capitalismo havia sobrevivido tão bem e pujante por todos estes séculos?, e tudo isso ele refletia, até que Taís, ou Juçara, enjoou de tanto cigarro e questionamentos e o expulsou de casa. Sem ter mais onde permanecer em BH, ele decidiu abandonar o teatro e viajar o quanto seria capaz. Morou em Cuiabá. Começou tocando violão em bares, e não o fazia mal, mas parou porque aquilo o lembrava demais de estar no palco. Retornou por alguns dias no hotel à sua rotina de reflexão e cigarro, e num estalo percebeu que não precisava ser ator, ou sequer artista, para atuar. Poderia fazer o que todos faziam, isto é, interpretar papéis do despertar ao adormecer, mas, se soubesse o que fazia, ao contrário de quase todos os outros, que viviam e morriam interpretando sem disto terem consciência, poderia fazê-lo melhor, ou ao menos mais versatilmente, que a todos. Ainda em Cuiabá, começou como instrutor de dança, e o fez bem, até que, sendo-lhe a dança algo natural, portanto sem exigir muita atuação, se cansou. Sumiu da noite para o dia e reapareceu em Várzea Grande com o nome de Antônio, trabalhando como caixa de supermercado. Isso já lhe exigiu muito mais esforço. Em Aparecida, foi Walter, funcionário de lava-jato. Em Anápolis, Ricardo, professor de italiano e espanhol, línguas que não dominava. Numa fazenda em Formosa, Ednaldo, engenheiro agrônomo. Se cansou do Centro-Oeste. Em Salvador, Leandro, vendedor de joias semi-preciosas. Em Feira de Santana, Valdisnei, eletricista. Como ele aprendeu tudo isso? Do jeito que se aprende qualquer coisa, primeiro observando, depois imitando, então insistindo com um sorriso até que ninguém mais questionasse. Quando ele se sentia confiante demais num papel, partia para o próximo. Evidente que se sentia solitário, mas companhia nunca foi o que buscou nesses anos. Ou melhor, companhia de terceiros, pois tinha todos os companheiros que precisava naqueles dias dentro de si. Bebeto, fabricante de picolé, em Maceió. Dinei, baterista, segurança e cineasta, no Recife. Quanto tempo em cada cidade? Variava. Às vezes dois meses, às vezes um ano. Tempo o suficiente para que alguns ali o conhecessem e ainda se lembrassem dele no futuro, mas não o suficiente para que ele mesmo se acostumasse demais com a nova vida. Era ator, nada além disso. Foi Mário, advogado, em Campina Grande. Esse foi o mais fácil de todos. Quase ficou, porque se apaixonou. Decidiu que não era a hora e partiu. Josias, garoto de programa, em Mossoró. Esse foi o mais difícil. Dércio, motorista particular, em Natal. Zinaldo, intérprete de Libras, em Teresina. Washington, feirante, em Bacabal. Róbson, alfaiate, em São Luís. Humberto, vendedor de carros usados, em Belém. Cada vez aquela vida lhe agradava mais, conseguia reproduzir perfeitamente os sotaques, trejeitos e vozes de cada cidade. Num dia de agosto, sem aviso, teve um ataque de pânico. Olhou-se no espelho de manhã, enquanto punha a camisa social, e se esqueceu do próprio nome. Ou do outro nome que tinha além de, naquele momento, Humberto. Aproximou o rosto do espelho. Olhou para o seu próprio nariz, era o nariz de Humberto. Olhou para a testa, as rugas eram as rugas de Humberto. Olhou para as palmas da mãos, as linhas contavam apenas o passado e o futuro de Humberto. Começou a chorar e não sabia se saltava da janela ou se enforcava-se ali mesmo. Preferiu ligar para a concessionária. Disse que estava tendo uma diarreia e não teria condições de se apresentar para o expediente naquele dia. Tirou os sapatos, a camisa, a calça e ficou deitado de cueca, olhando para o ventilador. Fechou os olhos e começou a respirar fundo. Roçou com as mãos nos pelos do peito. Era Mário ou Bebeto? Desceu a mão direita por sobre a barriga e acabou que pegou no próprio pau, ainda mole. Quando ele trepou usando esse pau em Mossoró ou Campina Grande, quais foram seus nomes? Como era chamado? Algum dia fora chamado por outro nome. Qual era? Aquele pau era seu mesmo? Seguiu respirando fundo. Preferiu não fumar naquele instante. Se acalmou, meditou e usou a imaginação até que conseguiu deixar o pau duro. Pensou em Rita. Bateu uma punheta e gozou na própria barriga. Não limpou, apenas permaneceu onde estava, deitado, com a cabeça apoiada nas mãos. A mente se tornou menos nublada. Sim, agora se recordava do seu nome. Ele não podia reclamar. Resolveu com um orgasmo o que meses de regressão meditativa não seriam capazes, e, ao se recordar de seu nome, descobriu que não tinha ideia do que estava fazendo ali, já dera o tempo daquela performance. Gastou o pouco dinheiro que conseguira guardar ao longo de todos aqueles anos em três noites num puteiro e numa passagem só de ida para São Paulo. Voltou a se apresentar ao mundo como José. Morou primeiro em Sapopemba. Se cansou da distância para o centro, encontrou uma república no Carrão, que era menos pior, mas ainda mais distante do que ele gostaria, e por fim se fixou na Armênia, apesar de que ‘se fixar’ talvez seja um verbo impreciso, já que dia sim, dia não, ele dormia por aí, não necessariamente na casa de amantes, isso acontecia, é claro, mas também na casa de colegas, de neófitos do teatro, algumas vezes até no próprio teatro, mas isso era incomum, lá havia poucos locais confortáveis, e eram nessas noites que se estendiam até que o cansaço fosse demasiado para o retorno à Armênia que se davam todas as conversas do mundo, José falava e falava, falava até que maxilar adormecesse e a saliva secasse, em conversas com álcool, em conversas com maconha, em conversas com álcool e maconha, às vezes em conversas com álcool e cocaína, mas com esta última ele era ressabiado, em conversas a dois, a três, a cinco, em conversas a três onde um era José, o segundo era um colega de palco e o terceiro era Reginaldo, um amigo imaginário compartilhado pelos dois e que permanecia sentado fumando à janela, com quem eles discutiam todo o desgosto do mundo, todo o gozo do mundo, todo o desgosto que resultava de todo o gozo do mundo, até que José notava que seu amigo já adormecera fazia horas e ele ainda seguia conversando com Reginaldo, que às vezes respondia e às vezes não, e por fim José optava por também apoiar a cabeça no braço do sofá e dormir. Dormia de manhã e, quando não não trabalhava, lia à tarde e saía à noite, os livros e as saídas encarados de modo intenso e entregue, como se ele ainda tivesse vinte e dois anos e não seus quarenta e dois, quase todo dia subia e descia pela Rua da Consolação, que era feia mas era o que ele tinha, passando em frente ao cemitério, passando em frente aos bares e ao cinema, subindo e descendo sempre a pé pois aquele ritmo lhe atraía, reconhecendo as pedras e os rostos, os carros e os ônibus, reconhecendo André apesar dos vinte anos que se haviam se passado, reconhecendo André que estava atrás de um ponto de ônibus, reconhecendo André que atrás de um ponto de ônibus talvez se perguntasse o que estava fazendo ali naquele momento, e que ao me ver talvez tenha se perguntado também o que eu, José, fazia ali naquele momento, reconhecendo André que em sua absoluta ausência de expressão no rosto me lembrava de mim mesmo vinte anos atrás, quando estava prestes a fazer o que ele faria ali, reconhecendo André que estava ao meu alcance e que eu podia abraçar, jogar para o chão e chamar de imbecil, assustando as pessoas em volta mas de toda forma impedindo o que ele estava prestes a fazer, reconhecendo André que, paralisado, ficou olhando para mim como um imbecil, como um animal assustado diante dos faróis do carro, como alguém que tinha visto um diabo retornar para lhe cobrar a dívida, reconhecendo André que, sim, assim como eu, se provara um imbecil frente a Rita e por isso a perdeu, André, cuja vida precisei imaginar inteira para tentar justificar a mim mesmo o que eu fiz com ele, cuja vida eu imaginei e contei para mim mesmo para entender como nós dois vivemos e sofremos, o mesmo André que esteve ao meu alcance, que de certa forma sempre esteve, mas que naquela noite optou por saltar na direção errada, e eu nada fiz, e eu que sempre andava a pé na Rua da Consolação comecei dessa vez a correr, corri por entre os gritos, o dele, o meu e os dos outros, corri por entre o cemitério, o cinema e os bares, corri para casa e só fui me lembrar de quem era ao me ver no espelho, sim, sou José, pensando que não posso reclamar, sim, eu vivi, sim, não posso reclamar, eu vivi e sigo vivo, e André, não.
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