Um conto de Lindevania Martins
Lindevania Martins é graduada em Direito com Mestrado em Cultura e Sociedade (Universidade Federal do Maranhão). É defensora pública atuando no Núcleo Especializado de Defesa da Mulher e População LGBT, no Maranhão. Autora dos livros de contos Anônimos (Prefeitura de São Luís, 2003), Zona de desconforto (Editora Benfazeja, 2018) e A outra (inédito, com publicação prevista em 2019). Possui contos e poemas publicados em antologias e revistas. Anota coisas aleatórias no blog Catálogo de Indisciplinas.
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Visita
Entro na sua casa e toco sua mão.
Vindas do mesmo ventre, ora somos fraternidade, ora hostilidade. Partilhamos da mesma altura, das mesmas mãos ossudas e até do mesmo sinal escuro nas costas. Mas a roupa que em seu corpo cabe, em mim não entra. O que em sua boca é doce, na minha, amarga.
Mais um ano sem nos falarmos, irmã. Não fomos longe demais?
Inflexíveis em nossos pescoços eretos, ao estender meu braço para a alcançar, percebo: é o tempo que me dobra!
Porque não sou suave, compreendo a sua rudeza. E a sua surdez ocasional que, quando chamo, me conduz ao dilaceramento das cordas vocais sem que você me ouça.
Escondi seu vestido atrás do armário. Mas não pus nele as baratas, as nódoas, a velhice. É que as suas roupas roçando minha pele eram assim: generais cheias de olhos que me causavam horror. Porque me vigiavam como nosso pai o faria, me deixando fraca, me deixando muda.
Toco sua mão e digo apenas seu nome.
É que ainda calo as coisas que não compreendo. Não compreendo os buracos em nossos corpos, estejam eles onde estejam. Para que tantos buracos, se não fosse para usá-los? Não compreendo o desejo de matar. Para que antecipar o fim do que se vai naturalmente?
Não compreendo o medo, esse silêncio forçado ou porque sempre competir. Não compreendo a linha reta, a fuga, ou o remédio para dormir. Você não compreende a penumbra, o desvio ou uma porta fechada. Não compreende o barulho, um batom borrado, ou uma verdade inventada. Você não compreende as perguntas. Eu não compreendo as respostas. Você não compreende a mudança. Eu não compreendo a imobilidade. E nós duas não compreendemos os riscos de tanta incompreensão.
A gata que você me deu, cega de um olho como nossa mãe, ainda me acompanha. Não aprendi francês, mas ouço Edith Piaf, sua preferida. E quando a ouço dizer que devemos estar juntas, sei: dessas palavras, sou eu a inventora.
Entro na sua casa, toco sua mão e digo seu nome. Você se vira, você me olha: “Irmã, é tempo demais!”.
Você me abraça.