Um conto de Loecy Rosa Damásio
Loecy Rosa Damásio é formada em Letras [Licenciatura em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas] pela PUCRS [Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul]. Graduanda do Curso de Tecnologia em Escrita Criativa pela PUCRS. Certificada pela Oficina Literária Charles Kiefer e Editora Ltda. Professora de Língua Portuguesa e de Literatura. Pesquisadora nos campos da Teoria da Literatura, Escrita Criativa e Psicanálise. Revisora textual, Ghost Writer, escritora e crítica. Ministrante e proprietária da Oficina de Escrita Criativa Rosa Damásio [serviços de revisão textual e oficina literária – Presencial e EAD] em Porto Alegre – RS, sendo uma microempresa que atende a nível nacional e internacional. Publica textos de sua autoria e de outros autores em seu site: https://loecydamasio.wixsite.com/escritacriativa. Publicou os contos “Inês”, “Um buraco de agulha para o fio de Ariadne” e “Tonel de Danaides”, pela Revista Subversa, em 2017. Publicou o conto “Inês”, pela Antologia Dois da Escrita Criativa PUCRS, organizada por Bernardo Bueno, professor e coordenador do curso, e publicada pela Editora Bestiário, em 2018. Foi compositora e vocalista da banda Rima Q’Age em Campinas-SP, pela qual venceu os prêmios “Artista Revelação”, no gênero Hip Hop, e “Empoderamento Feminino”. Atuou como ativista nas regiões periféricas de São Paulo, por dois anos, através da música. Contato sobre a Oficina de Escrita Criativa: loecydamasio@gmail.com/ (51) 984601956.
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Queda livre
“Nenhum homem é uma ilha
completa em si mesma.”
Outra releitura do poema. Foi tudo o que levou consigo ao pico do penhasco, o poema de um poeta morto. Era o suficiente. O resto ficou pelo caminho. Um vento desconhecido soprava calado, meio-morto. Era um vento de interior. Arrepiou-lhe a pele durante todo o percurso no desfiladeiro. Nenhum eco ressoou das palavras do poema que se repetiu, verso a verso, em sua mente. Os sinos já não tinham som; isso se alguma vez tiveram – a indagação apareceu-lhe agora com muita clareza, já meio respondida. Por alguma razão que não lhe cabia no pensamento, o desfiladeiro descobriu um modo de responder ao poema sua pergunta. O quanto cavaram os sons silenciosos a ponto de não colidirem mais em qualquer fundo possível, que lhes convertesse em eco e, assim, pudessem refazer o caminho desfeito…! E sua mente voltou a se encolher na última instância do silêncio. Tudo logo se dissipou no vento meio-morto, talvez ainda antes de assumir forma – a não ser que o informe pudesse ser compreendido como a forma do espaço, estava no vago imane; e nenhum rastro permanecia na poeira sólida do desfiladeiro, era como pisar num território espacial. Foi assim que Neil Armstrong se sentiu no branco da noite? Ou foi isso que Orfeu testemunhou em sua empreitada ao mundo dos mortos? De súbito, um assobio inaudível sacudiu as folhagens do interior e se plantou no desfiladeiro por instante incontável – daqueles do tempo sentido –, como árvore invernal em jardim primaveril.
“Hoje ou sem presumir do futuro o que sairá daqui, nada ou quase uma arte.”
Depois, num esforço sobre-humano, prosseguiu através da solidão do desfiladeiro; tão solitário quanto a ave que, tendo se perdido do bando, fez ninho à beira da montanha, num daqueles galhos expostos que salvam mãos de escalada de pés escorregadiços. O poema de John Donne, meio amassado na palma de suor frio, soou seus versos em outros poemas, cujos sinos ainda badalavam aos fundos da torre do tempo sentido. Se atravessar o desfiladeiro fosse uma escolha, teria escolhido o poema de um autor desconhecido. Tinha preferência por autores desconhecidos. Versos desconhecidos de autores desconhecidos pareciam-lhe palavras desconhecidas, daquelas que nem os dicionários conheciam; e só assim seguiria rumo ao desconhecido e teria, sem que lhe pertencesse em nenhum sentido, seu caminho ou a direção dele, como Robert Frost. Mas não era uma escolha. Foi arrastado ao desfiladeiro pela força fenomenal que emergiu da morte de uma ideia que sempre teve da vida. A morte de um sentido não possui túmulo, ou enterro; pareceu-lhe uma morte sem morte, ou uma morte da morte – fazia diferença? Foi impelido a atravessar o desfiladeiro e, no entanto, passados tempos atemporais – uma contagem não passageira – flagrou-se sempre no intermédio. A confluência do vento interior o manteve no epicentro do desfiladeiro ou… Quão curvado poderia ser um espaço sem extremidades; uma espécie de vale. Talvez fosse o vento do interior a força gravitacional do espírito. Ergueu os olhos e seu rosto foi iluminado por uma névoa ensolarada, um tom dourado penetrou a íris e se expandiu pela pupila. Dobrou o poema e o guardou no bolso; sentiu-se impelido a escalar o penhasco que se estendia por todo o caminho adiante no desfiladeiro. O intermédio encontrou seu fim.
“Todo pensamento emite um lance de dados.”
O critério de seleção dos poemas, estes por quais os versos ocultos do poema de John Donne se expressariam, era-lhe um enigma indecifrável. Se escalar o penhasco fosse uma crença, teria acreditado na hipótese de que a escalada pudesse ser em si a decifração. Talvez também tivesse questionado a escolha do poema de John Donne, que preferiu o mistério de Mallarmé ao de Bukowski. A solidão e o ato de loucura da lucidez, ou da coragem suprema, apareceram-lhe, por um instante, na forma métrica que descreveu o flamejar da noite.
“Não há outro sentimento como esse.
Você ficará sozinho com os deuses
e as noites irão flamejar como fogo.”
Mas não era uma crença. Foi, mais uma vez, impelido pelo sopro do vento do interior, que se assoprava com discrição quase imperceptível pelas vastidões. E ora agarrava firme na solidez do penhasco, ora flutuava na névoa, sendo elevado pela força fenomenal do indefinível. Assim foi a escalada sob a vigilância das palavras apagadas de John Donne, que se revelavam na aparência das palavras dos outros, vivos e mortos. A consciência, neste instante de elevação, superou o próprio caráter caótico e, consciente do caos, compreendeu uma ordem de nível cosmológico; mas foi um brevíssimo instante de paz, no ventre da solidão existencial, no parto da morte das ideias, foi uma centelha na escuridão, e logo a névoa ficou opaca, e suas mãos se agarraram na beira do pico do penhasco, e eis aqui o início de tudo isso. Outra releitura do poema. Foi tudo o que levou consigo ao pico do penhasco, o poema de um poeta morto. Era o suficiente, o resto ficou pelo caminho. Assim era a cremação de uma bela ideia; e agora, pouco restava a ser dito.
“Um lance de dados jamais jamais abolirá o acaso.”
Insistiu o poema de John Donne, dobrado, meio amassado, ao fundo do bolso, a soar suas significações pelas palavras de Mallarmé. Talvez o poema de John Donne também não tivesse escolha. Talvez fosse impelido a mergulhar nas profundezes dos poemas característicos de desfiladeiros e nadar até uma superfície, onde pudesse se sentar e contemplar a sobrevivência da morte imortal. Isso eram poemas: desfiladeiros em desfiladeiros ou a emersão de um penhasco ou a escalada no intermédio de uma reta sem extremidades? Balançando os pés, sentado à beira do penhasco, contemplando a opacidade abismal sem medo, apareceu-lhe a circunstância como forma de infância; uma criança que viveu nas sobrevivências de cada morte existencial. Já não estava meio-morto o vento, quando o balançar dos pés no ápice do vazio se assemelhou ao balançar de uma ponte entre dois abismos. Mas só quando a névoa ensolarada dissipou a nuvem tempestuosa das alturas, o poema de John Donne clareou-se num de seus versos – nunca, em totalidade, somente seus; talvez sombras assombrosas de fantasmas poéticos.
“A morte de qualquer homem diminui-me
porque sou parte da humanidade.”
Sem mais releituras. O voo alto de John Magee conheceu o vento.
Em queda livre.