Um conto de Loreci Demeneghi
Loreci Demeneghi é gaúcha de Santo Ângelo, reside em Cuiabá, Mato Grosso, desde 1982, onde aprendeu a mesclar os costumes sul-rio-grandenses e mato-grossenses. Assim é que tem na Maria Isabel com farofa de banana um de seus pratos favoritos, mas não abre mão de um bom churrasco. E nem de um bom chimarrão. Jornalista aposentada, escreve contos e crônicas. Seu primeiro livro ainda está na gaveta.
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Brumas de umas
O vento traz um aroma adocicado de fruta madura que exala dos quintais que circundam a minúscula rodoviária e se funde com o sabor acre da saudade prematura que me envolve, que se agarra em meu corpo, matreira, também ela passageira dessa aventura; tento me distrair contemplando as pessoas que, como eu, aguardam o próximo ônibus com destino à cidade, mas os meus pensamentos se desprendem delas, vagam pelos campos e pairam, independente da minha vontade, sempre no mesmo lugar: a nossa casa cor de palha, mergulhada no meio da plantação; os meninos assombrando o galinheiro, disputando os ovos das poedeiras, não raro deixando um rastro amarelo no terreiro, sob a bronca do pai, palma calejada reluzindo no ar; rosto rude, o pai debruçado sobre a enxada, se desmanchando em suor, o líquido tinto encharcando suas vestes e escorrendo para o solo fértil, onde brotará a colheita farta; o pai e a fome a lhe instigar, certo dia, quando me surpreendeu no milharal e, uma vez nua, me fez sua, me cobrindo com seu corpo ressumado, queimando com seu fogo minhas entranhas, tingindo de vergonha minha pele, meu ser, e fazendo de mim, doravante, canal de desague para seu desejo incessante; o amargo das lágrimas, não desejava trazer comigo, mas de alguma maneira, num descuido da minha falta de cuidado, ele embarcou em algum vão da velha sacola costurada à mão pela mãe, em seus tempos de fortaleza, antes que a fragilidade lhe tomasse conta; ela que era puro mel a se derramar sobre o ventre sempre cheio, que mal escoava e já tornava a se encher; pássaro que tombou no meio da viagem, a mãe adoeceu de repente, sem remédio que lhe despertasse o antigo vigor; voo interrompido, ela estancou, ferida, rendida, e sem asas; olhos rasos por ela, percebo que, pelas frestas da minha pequena bagagem, escapam risadas, cheiros, algazarras e um amor que não pode ser medido; às pressas, recolho minhas pegadas e volto; os olhos da mãe me recebem cheios d’água; e nos seus gestos contidos, compreendo, enfim, que eu não sou mais eu, eu sou as asas dela.