Um conto de Luanda Julião
Luanda Julião (1982, São Paulo) é mestra em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo e doutoranda em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos. Professora de história e filosofia na rede pública na capital paulista. Autora do livro A Ária das Águas, editora Patuá (2018).
***
SERVIÇO SUJO
Josicleison está irritado. Faz meia hora que espera por Dagoberto, que sempre atrasa, embaixo de um sol escaldante. A luz do sol dificulta a sua visão e o raciocínio e Josicleison se sente vulnerável quando não consegue enxergar com exatidão. A estrada de terra está quente, o carro ferveu com o calor e a vegetação rasteira ao lado da estrada que deveria amenizar seu desconforto o deixa agastado. Dagoberto, vaqueiro e funcionário de confiança de uma das maiores fazendas da região, pediu que Josicleison aguardasse na mesma estradinha de sempre: um corredor de terra batida que fica longe de tudo, afastado da fazenda e da cidade. Ele está ali para receber o dinheiro do último serviço que prestou ao patrão de Dagoberto alguns dias atrás.
Josicleison fuma o terceiro cigarro e sente um chiado no peito. Escuta um ronco de motor se aproximando e arregala as vistas, forçando-as para conseguir enxergar alguma coisa debaixo de toda aquela claridade que parece esconder os segredos das coisas. É Dagoberto chegando. Sabe que está atrasado e coloca culpa nas vacas.
– Uma danada deu trabalho pra parir. Achei que o bezerrão que saiu dela não vingaria.
“Da última vez foi a vaca que atolou no brejo”, pensa Josicleison.
O vaqueiro desce da caminhonete arrumando a arma que ele carrega pendurada na cintura da calça, um três oitão. Josicleison automaticamente, como no reflexo involuntário do bocejo, também arruma a sua arma, um revolver Python. Nas bandas de cá quase todos os habitantes têm uma arma. Algumas melhores, outras piores, mas arma aqui é igual televisão: você faz rolo, aperta o orçamento, faz dívida pra ter uma, mas não fica sem. Os dois se cumprimentam rapidamente e Dagoberto entrega um envelope a Josicleison. Ele abre e olha o que tem dentro, sem conferir o valor. Confia naqueles que contratam os seus serviços. Até hoje ninguém nunca lhe passou a perna. O dinheiro está ali: os 900 reais cobrados por ele para apagar um professor. Um pouco mais de um ano atrás, o mestre de vinte e poucos anos veio dar aula para essas bandas, mas começou a plantar nos trabalhadores rurais ideias contrárias àquelas que o patrãozinho e os outros patrões pensam por aqui. Uma tal de ideologia e mais-valia que Josicleison não faz ideia do que significa. Dagoberto também não. Os dois apenas seguem ordens. E se é pra matar, eles matam. Sem titubear.
Josicleison é pistoleiro profissional. Conheceu a profissão de matador com o avô e o pai. Foi com os dois que ele aprendeu a matar sem deixar rastros e pistas. É o pistoleiro mais contratado e bem pago da região. Na verdade, ele mesmo não se rotula um matador, mas um apaziguador de conflitos. Quem o manda matar ele mesmo não sabe, nunca viu. Sempre vem um encarregado, algum funcionário e laranja do mandante. É ele que intermedeia a negociação, que paga pelo serviço. “É melhor assim. Alguém tem que fazer o serviço sujo. Sempre tem um fraco querendo brigar com os fortes. Desde que o mundo é mundo os fortes sempre ganham. Será que os fracos não aprendem?”, pensa Josicleison.
– Tem 2.000 aí. O patrão mandou te entregar. Mandou dizer que no dinheiro aí já tá encomendado e pago o próximo servicinho.
Josicleison coça a barba. Observa o céu limpo, sem nenhuma nuvem ou qualquer vestígio de chuva. Entre eles se escuta apenas o farfalhar das aves e o crepitar das folhas quando elas pousam nos galhos das árvores. Dagoberto quebra o silêncio:
Tá sobrando serviço pra ti, homem. – conclui ele, apontando para o envelope.
– Quem é dessa vez? – interroga Josicleison, com um olhar desconfiado.
– O padre.
– O padre Paulo?
– Que outro padre poderia ser Josicleison? Já viu como ele fala com os lavradores? Tá se achando o Antônio Conselheiro.
– Quem? – pergunta o pistoleiro, confuso, coçando novamente a barba.
Dagoberto também não sabe quem foi Antônio Conselheiro. Ouviu numa tarde o patrãozinho se referir assim ao sacerdote da cidade numa conversa com um fazendeiro rico dessas redondezas, e agora repete o epíteto ao amigo Josicleison, o qual sabe que o amigo é tão ou mais ignorante que ele.
– Esse padre tá plantando ideias na cabeça dos camponeses, tendeu? Fala em luta pela terra, pelos bois, pelas vacas, pelo pasto. Tá se metendo a líder sindical, tendeu? O patrãozinho tá furioso. Melhor tombar logo pra não dar brecha, tendeu?
Não, Josicleison não entendeu, mas deixa pra lá. Evita discutir, debater ou discordar de Dagoberto. O sol quente ferve os seus nervos e não o deixa pensar. Ele coça a cabeça e olha para Dagoberto. O vaqueiro está mascando uma goma, o que faz parecer uma das vacas que ele cuida. Depois, Josicleison olha para o envelope que tem na mão. O papel está molhado de suor. Dagoberto estranha o silêncio do amigo e pergunta:
– Tá tudo certo?
– Tudo certo. – responde automaticamente Josicleison, sentindo dentro dele que algo não está certo.
Antes de entrar na caminhonete e partir, Dagoberto pergunta:
– Esse último aí demorou pra cair? – quer saber detalhes da execução, mas sabe que Josicleison não é prolixo nas respostas.
– Quem? O professor? Dois tiros na testa, pra garantir. Os miolos voaram longe. Morreu na hora, com os olhos arregalados de terror.
– Só dois? Deu mais não, por quê?
– Não desperdiço munição, Dagoberto. Não mato com ódio.
Josicleison não pensa nos pobres miseráveis que mata, assim como aqueles que o pagam para matar também não pensam. Só tem coragem de olhar para a vítima ou o que restou dela quando ela já está morta. Quando a sequestra e a tortura antes de matá-la, ele pede para a vítima rezar um pai-nosso para salvar a alma dela e a dele. Quando ele precisa apunhala-la pelas costas, de surpresa, ele mesmo reza por elas.
Dagoberto liga a caminhonete e acelera. Está pronto pra dar a partida e ir cuidar das vacas, mas lembra de um detalhe e avisa Josicleison:
– Tem que ser depois da festa de Santo Expedito. O patrãozinho é devoto do santo e matar em dia de santo é pecado. E outra: depois da festa na paróquia ninguém mais sente falta do padre.
– E se sentirem? Ele é padre. Vai queimar pra gente, Dagoberto.
– Aqui nós fazemos a lei, Josicleison, tendeu? Não tem juiz, promotor, policial ou políticos que derrube os grandes por aqui, tendeu? Nós fazemos o que os grandes pensam e mandam. É assim que a gente sobrevive. Quem quer ser herói amanhece com formigas na boca. Faz seu serviço e ponto final. É pra isso que te pagam bem.
Josicleison encara o amigo, pensa em alertá-lo que ele é só mais um mero instrumento dos grandes, mas deixa pra lá. Dagoberto é uma besta humana que não questiona nada, finge entender tudo e passará a vida seguindo ordens sem questionar.
O vaqueiro cospe o chiclete e acende um cigarro de palha. Despede-se amistosamente de Josicleison e mergulha na nuvem de poeira que a caminhonete levanta.
O pistoleiro permanece imóvel e em silêncio, mas com os pensamentos em movimento. É um homem que não gosta muito de pensar sobre os serviços prestados, mas naquele momento os pensamentos se enfileiram em sua mente. Sabe que vai para o inferno, que colocou a sua alma em jogo quando começou a trabalhar como pistoleiro, há muito tempo, ainda na juventude. Já tinha derrubado muita gente: mulheres, adolescentes, idosos, grávidas, mas padre não. Padre, nunca. Para Josicleison, padre era um homem santo, um homem de Deus.
Criado numa família católica, quando criança a mãe obrigou Josicleison a estudar a bíblia na catequese. Ele e a Bete, sua esposa frequentam a missa todos os domingos. Foi inclusive o padre Paulo quem deu a benção para a união amasiada do casal. Além disso, embora soubesse que o diabo o esperava no inferno, trazia no peito a esperança de um dia se redimir e receber o perdão de Deus através de um sacerdote.
Alguns dias se passaram. Josicleison está em casa com a expressão apagada, um ar de tristeza. Bete percebe a preocupação do marido. Conhece-o melhor que ninguém. Sabe inclusive quando o esposo acabou de executar alguém. Parece sentir o cheiro da morte no ar. É ela quem lava as roupas e as botas sujas de sangue das entranhas das vítimas assassinadas por Josicleison. Ela sofre com as roupas no tanque mais do que o marido sofre com a consciência. O marido não é de falar muito do trabalho para a mulher. Bete sempre fica sabendo das execuções quando sai alguma notícia no jornal ou no rádio da cidade.
A noite está escura, sem estrelas, sem luar. Vai chover. Josicleison acende um cigarro de palha. Bete observa e sabe que o marido sairá para fazer algum serviço, pois ele só fuma nessas ocasiões. Quem será dessa vez? – questiona ela. O marido dá um último trago e sai ansioso, apressando o passo. Bete perde-o de vista na escuridão da noite que engole o seu quintal.
A igreja está vazia às 20h30. A missa terminou há pouco tempo. O padre Paulo ainda está no altar. Coloca numa pequena caixa de madeira a ambula e o cálice recém-utilizado no ritual litúrgico das 19h. Vê quando Josicleison entra na igreja e sorri.
Josicleison trava. Sente que não conseguirá prosseguir. Seu corpo se afrouxa, suas mãos tremem. Um suor escorre frio sobre a sua testa.
O sacerdote fecha a caixa de madeira e se aproxima dizendo:
– A paz esteja convosco, meu filho.
Antes de concluir a frase o pároco recebe uma coronhada na cabeça e desmaia. Era para Josicleison ter atirado, mas ele fraqueja. Não conseguiria matar um homem santo, que está abaixo de Deus, na casa de Deus. Isso seria um sacrilégio sem perdão. “E agora? Serviço pago é serviço feito”, pensa ele. O matador sempre segue esse preceito à risca, cumprindo o dever prometido, mas agora não sabe como agir. Olha para o vigário ferido no chão e sente que precisa resolver aquela situação o mais rápido possível, antes de alguém o veja.
Josicleison coloca o clérigo nas costas e sai pelas portas do fundo. A noite escura ajuda a encobri-lo. Com pouca iluminação, a cidadezinha está mergulhada nas trevas. O céu está carregado e a chuva despencará a qualquer momento.
O pistoleiro deita o padre no porta-malas e parte sem saber ao certo aonde ir. Sabe que precisa agir rápido, mas ao mesmo tempo não sabe como agir. Dirige sem rumo por uma estrada de chão batido, castigada por buracos e valas, que liga duas cidadezinhas vizinhas. A estrada é escura, sem qualquer sinalização ou iluminação.
Algumas horas se passaram. Josicleison finalmente para e desce do carro. No escuro, sem enxergar um palmo na sua frente, ele fica mais alguns minutos na dúvida se irá ou não dar um fim no padre. Talvez se ele pedisse ao sacerdote para parar de pregar para os pobres trabalhadores tudo voltaria ao normal. Mas agora o pároco está ferido, a coronhada na cabeça foi profunda. “Agora é tarde, não dá mais para voltar atrás. Tenho que ir até o fim”, ele pensa.
Vagueando em seus pensamentos Josicleison abre o porta-malas do carro. É tudo tão rápido que quando dá por si sente algo quente o perfurando por dentro. O padre Paulo é tão ligeiro em atirar que Josicleison demora a compreender que foi alvejado. Três tiros o atingem. Um no abdômen, um no braço e outro um pouco abaixo do ombro esquerdo, quase no tórax.
Josicleison olha furioso para o clérigo que naquele instante deixa de ser um homem santo. Em mais de vinte anos de profissão nunca amarelou, nunca deu bandeira.
Sentia um ódio incalculável do padre, mas sentia mais raiva de si mesmo. “Que bandeira eu dei! Por que não revistei o padre? Por que não olhei debaixo da batina? Nesta terra abandonada, esquecida pelas leis e pelos homens de bem todo mundo anda armado, todo mundo tem uma arma, até um padre.”, pensa ele e cai no chão.
O sacerdote sente que é o momento de sair fora. Pensa que o pistoleiro está morto. Está se preparando para pular do porta-malas quando Josicleison descarrega o pente nele. Sente um ódio tão grande que os seus olhos até brilham no breu ao ver o clérigo tombado. Seu abdômen não para de jorrar sangue e ele sabe que morrerá também sem túmulo e velas. Irá morrer num estrada no meio do nada, longe das leis e da civilização, sem qualquer vestígio de vida, no mesmo local onde ele durante mais de duas décadas desovou centenas de cadáveres.
Josicleison sente a musculatura tensa, a boca seca. Suas costas ardem e a garganta ressecada implora por água. Tem dificuldades para respirar. Seus olhos esbugalhados olham para o céu escuro e enxergam alguns clarões que refletem com os relâmpagos.
Começa a chover. Os dois corpos estendidos no chão se encharcam rapidamente, lavando o sangue da terra. A vida de Josicleison escorre junto com o sangue que penetra o solo infértil junto com a água da chuva. Ele fecha os olhos, sem se lembrar de rezar por ele e pelo padre.