Um conto de Luiz Ruffato
Luiz Ruffato – Autor de Eles eram muitos cavalos, De mim já nem se lembra, Inferno provisório e O verão tardio, entre outros. Seus livros receberam prêmios nacionais (Machado de Assis, APCA, Jabuti) e internacionais (Casa de las Américas, em Cuba, e Hermann Hesse, na Alemanha) e estão publicados em treze países.
O conto abaixo é inédito em livro, tendo circulado apenas entre amigos do autor antes de seu envio à Ruído Manifesto.
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A porta
Decidimos passar o fim de semana na praia de Chidenguele, perto de Xai-Xai, onde o doutor Pedro Manjate tinha uma casa de veraneio. Éramos seis pessoas: três moçambicanos, um norte-americano, uma suíça e eu. Dividimos o grupo em três carros e combinamos que na manhã seguinte percorreríamos os quase trezentos quilômetros da Estrada Nacional 1, que, nosso anfitrião garantiu, encontrava-se em boas condições, mesmo após tantos anos de guerra. Quando nos despedimos, renunciei a acompanhar meus colegas do escritório do Banco Mundial em Maputo, Brandon Fordham e Anne Schaffhauser, numa incursão ao Clube Naval, onde à tarde, após o expediente, degustávamos um ótimo alvarinho gelado, bem em conta, assistindo o sol se pôr nas águas do Oceano Índico, atrás da ilha da Inhaca. Fui direto para o hotel em que estava hospedado, o Southern Sun, na avenida da Marginal, para terminar um relatório que já se achava atrasado, não por culpa minha, mas do calor e da umidade moçambicanas.
Às oito horas em ponto, Fordham encostou o Hilux branco na porta do hotel, acompanhado de Anne. Fordham vestia-se como para um safári – camisa e bermuda cáqui, chapéu com proteção de nuca e óculos-aviador –, enquanto Anne trajava uma camisa de manga comprida branca, bermuda jeans, bota meio-cano, chapéu caubói e espalhafatosos óculos-de-sol de lentes azuis. Fordham me disse, conformado, que dificilmente sairíamos antes das nove, lembrando o proverbial descompromisso dos nativos com os horários marcados. Enquanto esperávamos, Fordham, em inglês, me contava piadas – ele possuía um estoque interminável –, e Anne demonstrava todo o seu tédio afundada numa poltrona do saguão climatizado. Às oito e meia, apareceu a doutora Rita Anupchandra, com quem eu iria viajar, num Land Rover preto. Quinze minutos depois surgiu o doutor Manjate dirigindo um Land Cruiser cinza, na companhia do mulungo Fernandes da Cunha, um branco moçambicano, fumante compulsivo.
O doutor Manjate, formado em medicina em Nancy, com especialização em saúde pública na universidade Claude Bernard, em Lyon, prestava consultoria ao escritório local. Afável e generoso, vinha de uma linhagem changana muito pobre da província de Gaza e não se cansava de creditar sua ascensão social aos ditames da revolução socialista, embora, reservadamente, fosse bastante crítico aos rumos tomados pela política no país. Fernandes da Cunha, sujeito estranho, nunca soube seu prenome, fanático defensor de Samora Machel, formado em Engenharia Química em Moscou, servia como uma espécie de ponte com os órgãos do governo, sem o qual nenhum projeto avançava. A doutora Anupchandra, sócia de uma empresa de advocacia, descendente de comerciantes hindus instalada em Moçambique em fins do século XIX, também prestava consultoria ao escritório local.
Tivera um único e breve contato com a doutora Anupchandra, no dia anterior, durante uma reunião para discutir questões burocráticas. Ela impunha-se pela delicadeza, traduzida em gestos tranquilos, pelo vistoso sári predominantemente amarelo que ressaltava a pele morena do rosto, o bindi laranja entre os inteligentes olhos pretos, esfumados com kajal. Mas, o que mais me chamou a atenção, foram os cabelos curtíssimos, começando a ficar grisalhos, embora ela parecesse jovem ainda, uns quarenta anos, talvez. Passava um pouco das nove horas, quando deixamos a avenida da Marginal, e quarenta minutos depois alcançamos Marracuene, onde se iniciava efetivamente a nossa viagem. Nesse período, pouco falamos, apenas trivialidades, e aproveitei para reparar que de maneira gradativa os hotéis, mansões e condomínios de luxo beira-mar iam sendo substituídos por bairros de classe média, depois por casas modestas e afinal por caniços, nome que dão às favelas.
Formávamos a ponta final do pequeno comboio. A estrada de mão inglesa continuava, a partir de Marracuene, em pista simples, sem acostamento, atravessando a extensa savana. Cruzávamos com chapas, vans que substituem os machimbombos, os inexistentes ônibus de transporte público, seguindo em alta velocidade, superlotados, presa fácil para os policiais postados estrategicamente, prontos para extorquir o dinheiro do refresco. De vez em quando, ultrapassávamos algum my love, irônica denominação para caminhonetes que carregam os passageiros agarrados uns aos outros, ao vento, na carroceria. Cortávamos humildes povoados, de ruas sem asfalto, esgoto vertendo pelas valas, poças de água estagnada, mulheres enroladas em coloridíssimas kapulanas, bebê às costas embrulhado em ntehes, caminhando sob o sol esturricante.
Quando, por volta das onze e quarenta, paramos para almoçar, em Macia, havíamos estabelecido algum grau de intimidade. Falei para a doutora Anupchandra sobre meu trabalho no Banco Mundial; informei que na segunda-feira regressaria para Washington, via Addis Abeba; contei da minha vida um tanto quanto atribulada por causa dos inúmeros deslocamentos; descrevi as trágicas contradições que conformam o Brasil. Por seu turno, embora bastante reservada, ela revelou que pertencia a uma família oriunda de Diu, da casta vania, que migrou para a região de Inhambane, onde nascera; que estiveram em Moçambique por cinco gerações; que durante os conflitos nacionalistas mudaram-se para Leicester, na Inglaterra; que, sendo seus pais liberais, fez advocacia em Coimbra e doutorou-se em direito internacional no King’s College, em Londres; que, não sendo seus pais tão liberais assim, fugiu, de um casamento arranjado, para Lisboa, decidindo-se permanecer solteira; que voltara para Maputo há exatos dez anos.
O doutor Manjate disse, entusiasmado, que escolhera aquele restaurante de beira de estrada, sem nome, ao lado de um posto de combustíveis, porque ali se fazia o melhor caril de amendoim de galinha de todo o país. O local, bem simples, amplo salão aberto, bolas de plástico transparente cheias de água penduradas do teto para espantar os mosquitos, chão de cimento grosso, cadeiras rústicas de palha, mesas cobertas por toalhas impermeáveis estampadas. Atencioso, ele explicou que pediria um prato vegetariano para a doutora Anupchandra, mas ela, envolta num deslumbrante sári azul-celeste, falou que trouxera sua própria refeição, acondicionada num cooler guardado no carro, que resgataria quando nós fôssemos servidos. Todos pedimos cerveja para aplacar o calor – à exceção da doutora Anupchandra, que preferiu suco de canho -: doutor Manjate, Fordham e eu, a 2M; Anne, a Laurentina preta; Fernandes da Cunha, a Manica, além de um cálice de nipa, fortíssima aguardente de folhas de caju.
Conformados, aguardamos a chegada da comida, por cerca de uma hora. Numa das pontas da mesa, esbanjando simpatia, Fordham narrava casos engraçadíssimos, em seu excelente português-brasileiro com leve sotaque nordestino, aprendido num intercâmbio em Recife. Doutor Manjate e eu o ouvíamos com legítimo interesse, enquanto a doutora Anupchandra sorria, gentil, e Anne bocejava. Competente especialista em gestão de recursos naturais, Anne pouco interessava-se pela cultura local, a não ser por arte popular, que, segundo observava Fordham, com sarcasmo, ela adquiria às dúzias, atraída não por questões estéticas, mas meramente especulativas. Na outra ponta da mesa, Fernandes da Cunha, metido numa guayabera marrom, mirava compenetrado por trás da fumaça de seu Peter Stuyvesant, como se tentasse revolver o âmago de cada um de nós.
Após o almoço, o caril de amendoim de galinha acompanhado por chima de arroz e muito piripiri, realmente maningue naice, como saudou o doutor Manjate, forma de os moçambicanos dizerem “muito bom”, retomamos a viagem. Antes, porém, nos divertimos contemplando Anne rodeada pelos dumbanengueiros, que, percebendo seu interesse, tentavam impingir-lhe esculturas em pau-preto e sândalo, cestarias, kapulanas, batiques, ímãs de geladeira artesanais com as cores da bandeira nacional, pacotes de castanha de caju e de amendoim torrados. Eram quase duas horas, quando novamente pegamos a estrada. Não sei se incomodada pelo monótono descortinar da paisagem ressequida, uma palhota aqui, outra ali, ou se estimulada pelo ambiente de camaradagem que havia se estabelecido entre nós, a doutora Anupchandra perguntou de súbito se eu sonhava muito. Surpreso com a insólita questão, demorei para responder que sonhava pouquíssimo, e, pior, quase nunca lembrava dos sonhos. Quando acordo, as imagens se desmancham como a fumaça do cigarro do Fernandes da Cunha, lembro que usei essa comparação.
A doutora Anupchandra tornou ao silêncio e assim dirigiu por mais alguns quilômetros. De repente, deu um profundo suspiro, disse, “Vou contar-te uma história, uma… estranha história”, e, em seu português-europeu impecável, entremeado por uns poucos termos afetivos em guzerate, revelou que durante quase três meses teve um sonho recorrente: caminhava por um lugar agradável, espécie de jardim cheio de árvores, até que se deparava com uma porta de madeira suspensa no nada, alta, pesada, larga, entalhada com ricas efígies do panteão hindu. Ela aproximava-se da porta e tentava empurrá-la, mas, por mais força que fizesse, não conseguia abri-la. Acordava no meio da noite, com dor de cabeça, suada, angustiada, “o coração tumultuado” – palavras dela. E calou-se por instantes, como se tentando livrar-se de uma recordação ruim.
Essa perturbação durou noite após noite, a ponto de ela temer o momento de se recolher, pois sabia que bastava fechar os olhos para o sonho se repetir, o que a deixava cada vez mais agitada e ansiosa. Um domingo, em que conversava pelo skype com sua mata (mãe) em Leicester – havia enfim se reconciliado com a família -, viu a dadi (avó paterna) cruzar o campo do vídeo e, de imediato, sentiu inexplicável necessidade de falar com ela. A velha postou-se desajeitada à sua frente e, depois de, quieta, ouvi-la contar sobre aquele singular acontecimento, disse que os ancestrais reclamavam sua presença nas terras de origem. A doutora Anupchandra achou curiosa a interpretação, mas não a levou a sério, afinal não possuíam mais qualquer vínculo com a Índia há pelo menos três gerações – a própria dadi, embora nascida em Dadrá, depois do casamento, arranjado, nunca mais retornara ao país.
Cerca de quinze dias mais tarde, após um almoço de trabalho no Café Acácias, ela resolveu passar por uma agência de turismo, na avenida Julius Nyerere, para organizar as férias. Apesar de exausta por conta das noites insones, ela reconhecia-se feliz naquela sexta-feira, começo de setembro, pela perspectiva próxima de passear à toa pelas ruas de Paris ou quem sabe desfrutar as belezas do Rio de Janeiro, de que tanto ouvira falar. O doutor Lucílio Malenga, sócio no escritório, oriundo de uma família guitonga, de Inhambane, conhecida de seus pais, afirmava que ela devia seu cansaço ao estresse, e vinha mesmo atuando em demasia nos últimos tempos. Ao longo de quase duas horas, a doutora Anupchandra examinou em detalhes os prospectos que a atendente apresentava, até que, quase convencida a visitar Viena, Praga e Budapeste, viu-se, por acaso, atraída por um folheto sobre Jaipur, “a cidade cor-de-rosa do Rajastão”.
Lembrou-se, então, da dadi, e definiu, sem mais pensar, que iria para Jaipur. Discutiu com a atendente os pormenores do roteiro – passagens, deslocações, hospedagem, guias – e acertaram que na segunda-feira voltaria para assinar o contrato e fazer o pagamento. No fim de semana, acompanhou uns clientes chineses, empresários da construção civil, num tour pela Reserva dos Elefantes, a uns duzentos quilômetros de Maputo, para observarem animais selvagens livres na natureza – além de elefantes, zebras, girafas, hipopótamos, crocodilos, antílopes, aves. Ao regressar à sua casa, em Sommerschield, no domingo, começou a passar mal, e considerou que pudesse ser decorrência do sol, ao qual ficara bastante exposta, ou de algo que tivesse comido. Naquela noite, a porta emergiu em seu sonho ainda mais nítida, quase real, e despertou suando, dores no corpo, febre, e um imenso cansaço que a impediu de levantar da cama para trabalhar. À tarde, procurou o Hospital Central e um médico diagnosticou infecção na garganta, receitou antibiótico e antitérmico, sugeriu repouso.
Tomou os remédios, desligou o celular, deitou-se e só acordou no dia seguinte. No escritório, a secretária, senhorita Salima Rahman, informou que uma pessoa da agência de turismo a havia procurado, com insistência. Ela pediu para a senhorita Salima ligar, se desculpando, e dizer que passaria lá durante a semana. Mas os dias se consumiram em inúmeras reuniões e, sem que percebesse, outro sábado se anunciou. Embora recuperada da infecção na garganta, continuava a acordar toda madrugada, trêmula, coberta de suor, acossada pelo sonho com a porta. Então, se questionou: desejava mesmo visitar Jaipur, uma região que, apesar de parecer fascinante, nada a vinculava aos antepassados, ou deveria dirigir-se a Diu, onde reencontraria o solo no qual pisaram os purvajos (ancestrais) e de onde partira a kutumba (família) para nunca mais voltar? Encarregou a senhorita Salima de marcar passagens e reservar hotel – viajaria para Diu, não como turista, mas como alguém que regressa à terra-natal!
Aguardou o fim das monções e embarcou para Diu – via Johannesburg, Pointe La Rue, nas Ilhas Seychelles, e Bombaim -, num total de vinte e quatro horas de jornada, entre voos, espera pelas conexões, fuso horário. O coração acelerou ao distinguir, através da pequena janela do turbo-hélice da Alliance Air, a curta pista do modestíssimo aeroporto de Diu, que parecia irromper diretamente das águas azul-esverdeadas do Mar Arábico. Sentia-se abraçada pela alegria de alguém que retorna, após anos de ausência, para rever parentes e amigos. Segurando um cartaz com o nome da doutora Anupchandra, um jovem vigiava o saguão para conduzi-la ao Krishna Park Resort. Abordou-a em péssimo inglês, ela respondeu em guzerate, surpreendendo-o. Encontrava-se tão enlevada que, contrariando seu natural retraimento, pediu que ele dissertasse sobre Diu, o que o fez contentíssimo. A árida paisagem que corria lá fora avivava impossíveis recordações de sua infância em Inhambane, de onde havia saído com quatro anos de idade…
Percorreram quase toda a Airport Road sem cruzar com vivalma. Somente ao aproximar-se do hotel é que divisou alguns tuque-tuques – versão indiana dos txopelas moçambicanos. Meia-hora mais tarde encontrava-se confortavelmente instalada num cômodo com magnífica vista para as águas escuras do lago Gandhipara. Achava-se bem-disposta, embora exaurida. Desarrumou as malas, tomou um banho, almoçou. Voltou ao quarto para descansar. Pegou um livro, começou a ler, adormeceu. Despertou horas depois, confusa, o sol já posto, vomitando, sentindo calafrios, febre, dores no corpo. Ligou para a recepção solicitando ajuda e recordava, em cenas intermitentes, que surgiu uma cadeira de rodas, depois um carro, as luzes da recepção do Hospital do Governo, o médico explicando que teria que ser internada…
Emocionada, a doutora Anupchandra calou-se. Atravessamos a ponte sobre o rio Limpopo e entramos na província de Gaza. Seguindo o pequeno comboio, estacionamos na praça em frente ao prédio do Conselho Municipal de Xai-Xai. O doutor Manjate nos reuniu, anunciou que agora faltava menos de uma hora para alcançarmos a praia de Chidenguele e que necessitava fazer algumas compras para abastecer a casa. Fordham sugeriu que, enquanto aguardávamos, tomássemos uma cerveja no bar que descobriu na entrada do hotel Kaya Kahina, mas só o Fernandes da Cunha aceitou o convite, entusiasmado. A doutora Anupchandra ofereceu-se para acompanhar Anne a uma loja de artesanato e eu resolvi explorar as imediações. Acabei me deparando com um enorme terminal de chapas, improvisado num terreiro poeirento, água suja escorrendo pelas valetas. Ainda que incomodado pelos mosquitos, fiquei perambulando curioso pelo dumbanengue, a observar a imensa algazarra. Cerca de uma hora mais e estávamos novamente na estrada.
Logo que nos reacomodamos no carro, a doutora Anupchandra comentou, divertida, que, após muito regatear, Anne Schaffhauser comprara algumas esculturas tsongas. Mas, depois, enclausurou-se no silêncio, como se distraída da história que vinha me contando. Eu desejava saber o que acontecera, mas encontrava-me num dilema: se perguntasse, poderia parecer indiscrição; se não perguntasse, poderia parecer desinteresse. Assim, passaram-se uns vinte minutos, eu, hesitante, observando entediado a savana que se desdobrava no horizonte, de quando em quando um gigantesco e frondoso imbondeiro. Ao alcançarmos Chongoene, por algum motivo, talvez refeita da extremada turbação a que se submetera, evocando memórias, ela, de repente, retomou a conversa.
Dois dias hospitalizada, dois dias perdidos, exclamou. Frustrada, pois queria percorrer a região, procurar as marcas deixadas pelos antepassados, reconhecer-se entre as pessoas nas ruas, simplesmente desperdiçara o tempo imobilizada num leito incômodo, de onde, pela janela, adivinhava a agitação da cidade, sem dela poder desfrutar. Tomou um táxi, regressou ao hotel. Embora sentindo-se melhor, percebia-se muito débil, sem qualquer diagnóstico preciso sobre o mal que minava sua saúde, condição que alimentava uma angústia mais e mais crescente. Após o almoço, caminhou devagar pelo pátio coberto de palmeiras. Triste e fatigada, cochilou à beira da piscina. E de novo sonhou com a porta. E de novo acordou aflita. Decidida a espantar o desânimo que se apoderara do corpo, ergueu-se, e, a passos vacilantes mas determinados, cruzou o estacionamento, ultrapassou o portão, atravessou a estrada.
Após andar menos de cem metros, faltaram-lhe forças. Enfiou-se num parque à procura de lugar para retomar o fôlego. Avançou com dificuldade por uma alameda, o sol a pino, e, de repente, viu-se tomada de profunda comoção: havia penetrado no jardim que aparecia em seu sonho! Não restava qualquer dúvida. Reconhecia cada árvore, cada pedra, cada clareira. As pernas bambas, o coração tumultuado, buscou continuar em frente, mas as vistas súbito escureceram. Por quanto tempo quedou paralisada, prisioneira da treva mais terrível? A doutora Anupchandra não sabia. Um minuto, dez minutos, meia-hora. Quando se recuperou, ainda subjugada pelo pânico, percebeu, a curta distância, a porta, a alta, pesada e larga porta de madeira, entalhada com ricas efígies do panteão hindu. Encharcada agora de alegria, dirigiu-se apressada ao templo. Subiu os degraus, empurrou a porta… ela não abriu… Desapontada, forçou-a, ela não cedeu… Só então notou que, de longe, um pandita, vestindo um dhoti branco, contemplava a cena. Pouco a pouco, ele se aproximou, até estacar a seu lado. Perguntou o que ela estava tentando fazer. Respondeu que queria entrar no templo. Ele disse que ela não podia. Perguntou por quê. Ele respondeu que ela se encontrava muito doente e que deveria voltar de imediato para a terra de onde vinha. Terminou de falar, virou-se, sumiu entre as árvores.
Desesperada, a doutora Anupchandra tentou antecipar a volta, sem sucesso. Então, renunciando às passagens já pagas, na manhã seguinte contratou um carro com motorista e venceu, em oito horas e meia, os trezentos e sessenta quilômetros que separam Diu de Ahmedabad, onde, imaginava, conseguiria embarcar mais rapidamente. E, de fato, em pouco tempo já se achava dentro de um avião rumo a Maputo, via Doha e Johannesburg. Durante todo o trajeto, sentiu que esvaía-se em febres, náuseas, dores de cabeça e nas articulações. Chegou mesmo a pensar que não alcançaria Moçambique, e viu-se soterrada pela melancolia, mais que pela angústia. Ao desembarcar no aeroporto de Mavalane, em Maputo, parecia terem transcorrido meses desde sua partida, quando apenas uma semana se passara. Ainda que exausta, mal chegou em casa, abandonou as malas, tomou um táxi, correu para o hospital Lenmed. Lá, internaram-na imediatamente, tal seu estado de depauperação. Após uma série de exames, constataram que ela sofria de leucemia mielóide crônica… Isso havia acontecido há dois anos. Submeteu-se à radioterapia e à quimioterapia. Perdeu cabelos, ganhou peso, recuperou a fé, da qual se afastara desde a adolescência rebelde em Leicester. Agora, sempre que possível, realizava um pujá no templo da Comunidade Hindu, na avenida Guerra Popular.
Tínhamos largado o asfalto da rodovia e rodávamos por uma estrada de chão, entre dunas, margeando as águas tranquilas do lago Inhampavala. A doutora Anupchandra suspirou, e concluiu: Nunca mais tive aquele sonho…
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(Fotografia de Filipe Ruffato [detalhe em p&b da versão original colorida])
Selene Guimarães
Muito lindo esse conto. Não conhecia o escritor e agora despertou meu interesse. Fico pensando em tudo o q a gente perde p não conhecer…