Um conto de Marcela Gonçalves
Marcela Gonçalves, de 21 anos, cursa Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora e brinca com as palavras, esperando que dali nasçam contos e poesias.
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Num dá. Num dá. Tô tentando vomitá esse negócio que eu nem sei mais se eu engoli ou não. Começou com uma irritaçãozinha chata, doutô, coisa besta, achei que fosse por causa da friagem que tomei de ontem pra hoje, é. Calor desgraçado. Cheguei no trabalho pra varrê a escola pras crianças podê aprendê e aquele bendito daquele ar condicionado já tava ligado bem na minha cabeça. Pedi pra desligá sim senhor, mas o senhor acha que alguém faz o que a gente quer num lugar assim? Não faz, não senhor, e eu também nem posso reclamá porque a patroa me disse que com calor ninguém presta atenção nas professora lá na frente, precisa do gelo pros alunos concentrá mesmo e não saí pingando suor que é feio, ela que disse. Continuei lá, sentindo aquele gelado nas minhas costas… e aquele negócio ainda tem vida própria. Uma hora o vento me pega na nuca, outra hora no pé, é uma coisa de louco. Fiz nem sei mais quantas faxinas naquele dia, minha voz foi ficando ruim. Por isso achei que era coisa normal, doutô. Por causa do banho também que levei no caminho, mas depois eu conto. Só sei que cheguei em casa e lembrei que de manhã tinha ouvido umas fofocaiada no ônibus, uns assuntos que eu não conseguia entendê, parecia que falavam inglês. A amiga da menina tava viajando sei lá pra onde e passando fome, acredita, doutô? Que o povo agora inventa de viajá pra passá fome. Comida apimentada disse. Num dava jeito de engoli. Pois eu bem que ia comer muito bem lá. Adoro uma pimenta, coloco sempre no feijão. Em tudo que faço, mas sempre no feijão. Pensei que achava muito lugar aqui mesmo pra ela passá fome sem ter que pagá a passagem. Dei um risinho baixo e depois pedi desculpa pra deus. Pareceu inveja, mas não era. Depois pareceu grosseria e talvez fosse. E isso minha mãe num ia tolerá. Que Deus a tenha. Pobre num precisa ser mal cheiroso nem mal educado, mainha dizia. E eu sou educada, sim senhor, acontece que as fofocaiada que eu escuto no ônibus as veis me tira do sério. O senhor acredita que ele parou um dia no ponto da escola lá dos adulto, eu tava saindo do meu serviço, depois de sei lá quantas horas di pé, cum vassoura na mão, levantando e agachando, falando, ouvindo palavrão, e aí sobe um bando de jovenzinho, uns três ou cinco, não lembro, minha memória já não é mais a mesma, mas aí me sobem esses aí e começam a falá em outra língua. Em outra língua de verdade dessa vez. No começo eu achei que tava muito cansada ou com dificuldade em entendê o assunto deles, que também já acontece muito, mas aí olhei em volta e eu não era a única sem entendê não. Tavam falando em outra língua sim. Aí é uma reclama de fome a outra fala sei lá o que diabo, perdoa o palavreado, doutô e eu nem falo o português. Acho que eu nem sei reclamá bonito assim. Mas sempre sonhei em falá frances, fazer biquinho, viajá lá pras europa, sabe, não é pra lá que as pessoas vão pra adiquirir cultura? Eu vi na novela. A menina que não gosta de pimenta devia ta lá, né doutor? Lugar com pimenta não é pra qualquer um. Mainha nunca deixou faltá pimenta e farinha pra gente. Desculpa, doutô, tô me alongando muito, é que uma coisa vai ligando na outra, né, esse negócio de falá e ficá rouco e senti dor na garganta e ouvi conversa no ônibus, isso aí não faz bem pra cuca não. Mas eu gosto mesmo de ouví, gosto de prestá atenção. Meu menino já me disse que é pecado e que vai me arrumá um fone de ouvido. Vê se pode, um fone, não quero andá por aí parecendo que sou surda. Nada contra os surdos, não senhor, doutô, é só que não quero ser confundida com uma. Mas as vezes acho que sou. Ninguém fala muito comigo não na rua. Vou andando despercebida que só, gosto de pensá as veiz que sou igual o fantasma daquele filme lá do cara que morre, sabe qualé que ele é um espiríto, e aí tem vez que alguém dá bom dia, eu nem tenho muito tempo de responder não que a pessoa vai muito rápido. Tá todo mundo com pressa hoje né, hoje em dia é tudo corrido. Sim sim, já vou falá da garganta, o senhor me desculpa, viu, é que as veiz eu tenho essa dificuldade de concentrá. Acho que por isso não consegui homem que preste. Eles falava cada abobrinha que eu parava de ouvi, aí eu dava pra falar das receitas de mainha e eles me chamavam de desatenta, burra, ignorante. Mas eu não sou ignorante não senhor, ignorante foi o moço que outro dia jogou água da chuva pra cima de mim, sabia que ia falar desse banho pro senhor mais cedo ou mais tarde, e o moço fez nem questão de desviar ou ir mais devagá que nada. Não foi só pra mim me molhá não, molhou a gente tudo que tava lá na calçada. Cada um indo pro seu canto. A menina que tava reclamando com a amiga do namorado quase que começa a chorá porque molho toda a roupa da coitadinha, ne. Aí a amiga dela falo pra ela ir em casa trocá que ia ligá no serviço dela e conversá. E eu continuei meu caminho, molhada, pois é, ainda levei bronca da patroa pela situação do meu tênis, doutor, só que eu não tinha muito o que fazê. Se eu voltasse pra casa, até pegar mais dois ônibus, aí botasse um chinelo pra voltar, já ia atrasar muito e ela também não ia gostá. É difícil de agradá patrão, sabe, eu tento ainda e não vou desisti. Minha mãe disse que depende muito mais de mim do que deles e que a gente não pode se dar o luxo de ficar pedindo as coisa não. A gente tem mais é que ouvi tudo, as bronca tudo que eles derem e agradecer por tê pão em casa pra comê quando dá fome, porque mainha disse que tem nada pior que a fome não e que isso se Nossa Senhora Aparecida quisé eu nunca vou sabê o que é. Aí eu fiquei com esse pigarro, tomei um melado, tomei até pinga cum limão, doutô, porque no dia a dia é o que cura a gente que é uma beleza, só que dessa vez não deu certo. Vim aqui, parece até que to com bola de pêlo, igual o mingado do meu menino, o gato que ele pegou na rua e ficou jogado pelo pela sala. Ele um dia fez tanto barulho e quando fui olhar pra bate nele era tarde demais e o bicho tava morto lá, joguei ele no lixo e falei pro meu menino que fugiu. Ele ficou triste por pouco tempo, mas se soubesse que o bicho morreu, o chororo ia durar mais. Acho que ele achou que a culpa era dele, que ele nao dava comida, não brincava, eu sei lá o que, e que o bicho foi buscar um lugar melhor pra sê feliz. Foi isso que eu falei pra ele, que a gente é bicho preso, né doutor, porque a gente tem que trabalhá pra comê, que ele tem que estudá muito muito muito pra virá doutô ou coisa assim, pra ganhá muito dinheiro, mais que o gato não, gato é bicho solto mesmo, num guenta ficar dentro de casa não, fazendo o que a gente manda, ele faz o que bem entende. Aí meu menino ficou triste por pouco tempo. O negócio é que eu fiquei com medo, sabe com essa irritação danada aqui na minha garganta, que tivesse acontecendo comigo, esse negócio do gato aí, imaginei uma bola enorme de pelo na minha garganta, doutô e eu fui no banheiro, me olhei bem no espelho, vi tudinho ali, tinha tempo que não me olhava assim pelos pedaço. Quando percebi tirei toda minha roupa e continuei me olhando. Fiquei de quatro porque não tinha forças mas não podia deitá, tava tentando jogá o pelo pra fora. Tussi e tussi e tussi, mas não vomitei. Esse nervoso danado só aumentando e nada de melhorá, aí vim pra cá, fiquei duas horas na espera, pigarreando, tossindo, ouvindo a conversa dos outros. Quando o senhor chamou por Maria das Graças eu agradeci o senhor Jesus por não tê demorado muito, sempre falam tão ruim do hospital, ne mas foi muito rapidinho e sabia que esse lugar é milagroso mesmo, doutô? O senhor nem me deu nada pra mim beber e eu já to me sentindo muito melhor, nem ta mais me coçando, me prendendo, nada disso. Agora vou aproveitá que melhorou pra corre pra casa pro meu menino come que amanhã ele tem prova e se eu não pegá o proximo onibus eu atraso a janta e o coitado não precisa de mais isso. Ninguém pensa direito com fome não senhor. Mainha disse que com fome nem si pensa. E olha que ele já tem o quente e o suor pingando pra trapalhá. O senhor fica com Deus, viu doutô? Agradecida.
Hilda curcIo
Geralmente nao gosto de ler nada com esse tipo de linguajar tao COLOQUIAL, no entanto, li , reli e degustei como nunca. Adorri seu texto, PARABÉNS, acho q vc nasceu p usAr essA forma, trazer s voz desse tipo de perdonagem: o trabalhador, sem estudo ou Com pouco, mas com bastante sabedoria pelA EXPERIÊNCIA, a historia de vida, as fores, enfim,. Adorei, , ,
Marcela Gonçalves
Obrigada!!