Um conto de Marcio Markendorf
Marcio Markendorf é professor, pesquisador e escritor. Leciona no Curso de Cinema e no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor da novela literária Soy loca, Lorca, feito um chien no chão (Urutau, 2019). Em parceria com Adriano Salvi, publicou o livro de mininarrativas Microcontando (Caiaponte Edições, 2019), obra financiada pela lei de incentivo à cultura de Balneário Camboriú. O projeto de microliteratura Ainda estavam lá (Edição do autor, 2021), contemplado com o Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, foi realizado com Adriano Salvi e André Ricardo Aguiar. Também publicou contos de forma esparsa em periódicos literários e coletâneas.
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King Kong
Certa noite, em frente à televisão da sala, por uma discussão entre assistir King Kong e A fantástica fábrica de chocolates, meu irmão e eu começamos a nos socar. Eu bem queria muito ver o gorila esmagando aborígenes e mascando nativos como chiclete. Gabriel queria ver aquela aventura fresca do Wonka. Sem acordo, nós dois rolávamos do sofá ao carpete entre tapas, puxões de camiseta, chutes no saco ou no ar. Gabriel conseguiu escapar e correr até a garagem, indo em direção à varanda de casa, para pedir a intervenção de mamãe. Ela, uma pobre mãe solteira, lia uma surrada Seleções do Reader’s digest em uma cadeira de cordas de plástico, com os pés cansados apoiados em um tamborete.
Como o caminho entre a sala e a varanda era curto, tive que intervir rápido e agarrei o pescoço do meu irmão com as duas mãos, apertando forte. Sem me dar conta da energia desmedida do esgano – uma raiva selvagem e explosiva – fiz meu irmão caçula desabar no chão. Assustado com a cena, corri em passos surdos até a frente de casa para conferir se mamãe havia ouvido algo. Alheia a tudo, ela fumava um Derby e parecia se divertir com algumas das piadas de caserna de sua revistinha.
O que eu faria com meu irmão? Um som perturbador de pés, palmas e tambores no meu ouvido. Me lembrei que nos filmes do Rambo parecia ser muito fácil quebrar o pescoço de alguém. Meu irmão, então, bem podia estar morto. Precisava fazer algo. Para não ser culpado, pra fazer parecer um acidente. Afinal, foi tudo culpa desse veadinho que queria ver filminho de criança, que tem medo de horror, que ai ai, vô te pesadelo, não vô conseguir dormir, deixa a luz acesa, deixa a porta aberta, ui ui ui ai ai ai. É culpa sua, bichinha, se você morreu!
O melhor seria tirá-lo dali. Por isso, comecei a puxá-lo pelos braços e levá-lo para o quarto. Eu poderia escondê-lo dentro do guarda-roupa, fingir que não sabia dele, ficar vendo filme da sala e quando mamãe fosse entrar pra dormir, eu me fazia que não sabia de nada. Pode ser que ela só dê falta do Gabriel amanhã, na hora de ir pro trabalho. É uma boa ideia.
Na pior das hipóteses, posso pegar aquela velha garrucha do pai, uma das poucas coisas que ficou pra trás, e montar uma cena – ele no chão, a arma na mão. Faço que nem nos filmes, dou um tiro eu mesmo nele, limpo a arma com um lenço, ponho na mão do mané, volto correndo de costas para porta pra fingir que acabei de chegar no quarto e encontrar o cadáver. Gênio.
De repente, enquanto eu puxava aquele peso morto, aos gritos, meu irmão acorda. Socorro! Socorro!, ele berrava.
Mamãe entra correndo em casa pra ver o que estava rolando. Eu ainda estava em pé, segurando os braços do meu irmão; ele, no chão, sentado, um pouco desorientado, como se não soubesse bem o que fazia ali. Tinha um olhar estranho, com cara de espanto.
Minha mãe pergunta o que houve. Eu digo que não foi nada, estávamos só brincando de polícia e ladrão. Márcio não diz nada, só corre para mamãe e a agarra forte, me olhando com medo. Ela o afaga, diz pra gente não brincar assim, que nunca ninguém deve pedir socorro quando não é verdade, senão um dia vai acontecer de gritar por ajuda e ninguém acreditar. Já tinha acontecido com uma prima, ela disse, e eu conhecia essa história de cor: acabou que ela morreu afogada na praia depois de passar a tarde fingindo que se afogava. Com esse pito de leve, ela e o guri foram então pra fora. Vem que eu vou te dar colo, disse mamãe, fazendo um cafuné no seu filhinho.
A agitação de pensamentos que eu tinha, aquietou-se por um instante.
Liguei a televisão pra ver meu filme, Denham já estava na ilha da Caveira. Havia um som de tambores distante, algo tribal e ritualístico. A evocação de uma força destrutiva, de um deus sádico. Mas, apesar de estar satisfeito, eu ainda tinha uma suspeita, um medo: seria eu denunciado? Aquele merdinha diria o quê? Eu não pegaria castigo nenhum? Ficaria sem mesada? Resolvi conferir da janela da sala o que rolava lá fora e o que vi:
Gabriel estava no colo de mamãe, o corpo como que com uma languidez paradoxalmente alerta, os olhos estatelados, fixos nas coisas do mundo. Parecia que havia algo de susto ou desnorteamento em sua expressão. Uma alegria de estar vivo, mas também um assombro solene ao mesmo tempo. Parecia o Bambi depois que perdeu a mãe no incêndio.
E bem pensar que eu ia perder o filme tentando esconder aquele corpo.