Um conto de Mariam Pessah
Mariam Pessah nasceu na Argentina (Buenos Aires) em 1968 e, em 2001, chegou ao Brasil, instalando-se em Porto Alegre. É fotógrafa, embora atualmente já não atue profissionalmente na área para se dedicar à literatura. Fez a graduação em Escrita Criativa, na PUCRS, onde também participou da oficina anual de Escrita Criativa com o Professor Luiz Antonio de Assis Brasil. Tem vários livros publicados : Malena y el mar; Amor, placer, rabia y revolución; e o mais recente : Grito de mar, livro de poemas bilingue publicado pela Editora Taverna. Participou também de várias antologias : Las voces de Lilith, sobre autoras latino-americanas; Moldes para oxigênio, organizado pelo Luiz Antonio de Assis Brasil, Antologia poética do Mulherio das letras; entre outras. Faz três anos que organiza em Porto Alegre o Sarau das minas, um espaço de leituras com o objetivo de visibilizar a literatura de autoria de mulheres. Recentemente iniciou a Oficina das minas, o braço escrito do Sarau. Entre outros afazeres, trabalha como tradutora.
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A solidão é uma cadeira vazia
Estava anoitecendo e Paula saiu à rua com um único propósito: encontrar um bar onde se sentir à vontade. A partir de agora, e por umas duas semanas, ele viraria o seu segundo lar.
As suas emoções estavam bem confusas e ela estava cheia de contradições. Paula tinha dificuldades para se vincular às pessoas. Acontece que ela não sentia falta. Não queria que ninguém a incomodasse. Mas, isso que às vezes era sentido como incômodo; outras, era ausência, falta de afetos: uma amiga, um relacionamento mais íntimo. Por outro lado, faltava-lhe paciência, dedicação. Sua vida dividia-se entre os momentos em que sentia toda a liberdade de ser, fazer, estar, ler e outros nos que sentia uma repentina solidão.
Solidão era o peso que suas costas carregavam neste momento. Solidão e medo. Desde que saíra do consultório médico e recebera o diagnóstico, mal conseguia enxergar o futuro. Sentia-se presa às fantasias de morte, de doença grave. Tudo parecia distante, vagamente irreal, um pesadelo do qual ainda não acordara. Todavia, a dor que sentia nos joelhos era tão real e tão presente como as suas pernas se afrouxando. Suas pernas se afrouxavam e ela sentia que podia cair a qualquer momento. E quem a ajudaria? Agora ela gostaria de ter alguém a quem contar tudo, com quem poder dividir uma ideia e receber um afago seguido da frase de que tudo correria bem. Mas não. Já não estava correndo bem. Deteve-se. Apoiou-se na parede e só pensou em estabilizar a respiração. Por um momento, o seu único objetivo foi inspirar-expirar. Mais uma vez: inspirar-expirar…
Agora, Paula caminhava por uma rua com árvores. Com folhas que começavam a cair, era outono e estava friozinho. Olhava para baixo, procurando para dentro, quando deveria procurar para fora. O bar, por enquanto, só estava na sua imaginação. Ela gostava de entrar no parque, de ouvir os passarinhos, deter-se no lago e imaginar tartarugas dormindo dentro da água. Mas não era aí que encontraria o seu objetivo. Voltou para a avenida. Os carros e as motos atrapalhavam o seu andar. Entrou numa das ruas. Uma árvore grande chamou sua atenção. Levantou os olhos para as folhas, para o céu.
Levantou o olhar e apareceram duas portas à sua frente, como braços abertos. Colocou a mão sobre a maçaneta e empurrou. O peso do movimento era diretamente proporcional ao da vida. Paula entrou com passo trémulo, tímido, tosco. Uma vez dentro, ficou olhando a disposição das mesas, a luz, as pessoas. Escolheu sentar-se bem no centro, justo embaixo de uma grande lâmpada. Tirou o casaco enquanto olhava ao seu redor. Em seguida veio a garçonete e lhe entregou o cardápio. Ela leu todas as possibilidades que o lugar lhe oferecia. Leu com cuidado cada linha, como se fosse um inventário de desejos, mais do que uma lista de cervejas, petiscos e preços. Acabou por pedir um chope Ipa, de 500 ml. Foi simpática com a moça, até puxou conversa com ela. Logo Paula, que preferia ir aos lugares de autoatendimento para não precisar falar nem com atendentes… Depois pegou sua bolsa e procurou dentro o seu caderno e o livro que estava lendo: Flores azuis, da Carola Saavedra.
Enquanto procurava a caneta, lá no fundo, olhava para as paredes. Só agora descobria que nelas havia frases e fotos de Anais Nïn, de Hilda Hist, de Wislawa Szymborska. Desta última, estava o poema “Amor à primeira vista”. Ficou lendo e relendo. Passando os olhos como acariciando as letras. Ficavam girando na sua mente as palavras acaso, encontro… lembrou-se de algo que tinha escrito um tempo atrás, logo depois de sua separação, e procurou no caderno:
Porque há essa distância entre o que escrevo e o que você lê. Porque sempre houve (essa) distância entre o que eu falava e o que você entendia.
E agora a distância também não é igual. Você fala algumas coisas, sempre batendo na mesma tecla, até o cansaço, até sugar a última gota. Aí, eu fico louca para ir embora, mas com aquela sensação de vazio tão forte, penetrante, lacerante… Quase existencial. Existencial.
A distância é o silêncio, é um envelope fechado, é a cor azul. São estas palavras avulsas que nunca chegarão a destino. A distância é este vazio que eu sinto, crescendo vagarosa e velozmente.
Quando o amor acaba, resta apenas a ilusão e a saudade. A saudade que é do tamanho da ilusão. Da decepção.
Viver é uma tarefa quase insuportável.
O rosto preocupado da médica, a palavra cirurgia, a mama… misturavam-se à sensação anterior. Uma e outra vez: rosto, médica, viver. Não viver. O seio do qual não sentia dor nenhuma. Ainda. E agora? E agora? E agora? Estava com câncer. Câncer! Câncer! Câncer! As pernas voltavam a tremer. Agora, a solidão era uma cadeira vazia. Se ela morresse na cirurgia, ou depois, ou antes, alguém sentiria sua falta? Ela sempre tão solitária, esse era o troco que a sociedade estava lhe dando.
Doravante viria ao bar todos os dias, na mesma hora. As pessoas vão começar a reconhecê-la, a cumprimentá-la. Assim, quando chegar o dia marcado, se ele chegar, essas pessoas vão notar, um dia após o outro, a falta da moça misteriosa que sentava sempre na mesma mesa embaixo da lâmpada.
A separação fora alguns meses atrás. Paula sentia um tédio especial pelas rotinas com outra pessoa: gostas desta música ou preferes aquela outra?, o som da tevê está alto? batatas ou abóbora? Novamente escovar os dentes e novamente deitar na mesma cama junto a Vitória com quem às vezes rolava um amorzinho e, depois, cada uma se virava para o seu lado. Paula se queixava de que não podia acender a luz quando dava insônia. Poder. Agora podia acender todas as luzes da casa se lhe desse na telha, mas caía na real ― e tinha de aceitar ― que não era isso o que ela queria. Ela teria gostado de poder voltar às situações anteriores e dizer: estou assustada, me dá um abraço? Paula chegava a ter pesadelos vendo braços esticados, muitos, muitos braços, mas nenhum abraço. Nunca melhor colocado esse a que anunciava ausência. Havia mais futuro no passado. Agora a paisagem era só de nuvens passageiras. Um a abrindo caminhos nos seus pensamentos. Nos céus, ira e vento.
Nunca pensou que isso aconteceria com ela. Paula é jovem para ter um câncer. Para uma doença assim, sempre se é jovem. Adoecer, envelhecer, são coisas que sempre acontecem com os outros. Como os acidentes que passam na tevê, sempre são os outros que perdem suas casas, que morrem por causa de uma bala perdida.
Paula sentia-se deslocada na vida. Estava perdida no meio de um tiroteio dela contra ela mesma. Em pouco tempo, seu corpo estaria nu, em uma sala de cirurgia, desconhecida, com médicos, assistentes, enfermeiras.
Não. Não quero isso para mim. Cadê eu?
Na manhã seguinte, Paula estava sentada no seu escritório, tentando trabalhar numa tradução que devia entregar para uma palestrante. Mas as palavras não vinham como sempre; saíam trocadas, erradas. O que ela estava traduzindo era sua emoção.
Levantou de repente e foi ao armário. Pegou umas caixas com fotografias e começou a olhar, a buscar com desespero. A comparar os eus. Ela queria poder enxergar a linha divisória: quando tinha começado essa dor anestesiada? Quando as células tinham começado a deformar até se transformar naquilo? Aquilo que hoje a estava matando.
Não. Não conseguia ver a linha: era tênue e, de tão tênue, ficava apagada na sua angústia. A angústia, a linha, Paula… Tudo junto no mesmo lugar. Com as células doentes. Paula tinha dentro de si todas as dúvidas do mundo. Todas as dúvidas possíveis misturadas no seu interior. No interior de uma célula. Numa cadeia de sensações. Não iria à cirurgia. Seria melhor esquecer que um dia fora na médica, que fizera um diagnóstico. Melhor ficar quieta no seu mundo. Tentou voltar ao trabalho, mas a pergunta lhe escapava:
Será que ainda resta algo que seja meu?
O seu caderno! Paula buscou o caderno, pegou a caneta que estava ao seu lado e começou a escrever como alguém que corre num deserto, atrás daquela água prometida.
Dias atrás vi na rua uma mulher negra. Ela falava alto, gritava. Estava aparentemente sozinha, mas havia um outro lado, e do outro lado haveria alguém que não a escutava. Ela ia e vinha, gritava, parecia surtada. Quantos campos de concentração há hoje entre nós que não estamos enxergando? Hoje os campos nem precisam estar fisicamente, nem precisam ser de arame farpado, pijamas listrados e sopas com poucos legumes. Hoje, os campos estão na falta de concentração, na nossa dispersão, nas células que se deformam e se dispersam. Será que ainda tenho células sadias ou estarei matando tudo o que produzo, o que nasce em mim?
Estou no meio de lugar nenhum. Nem na vida, nem na morte. Naquela maldita ponte da qual não consigo fazer uma ilha. Uma ilha para não pensar e poder decidir se quero continuar ou ficar por aqui. Atravessar a ponte… esse é o meu maior desafio. Será que algum dia poderei? Desde criança já sentia vertigem nela. Dois, três, quantos aninhos teria eu, naquele dia, em que com a creche nos levaram àquele lugar enorme e nos enfiaram numa ponte. As outras crianças riam, gargalhavam. Eu não. É meu primer registro de…. ― não, não vou poder, quero sair daqui, me tiiirem daqui!!
Um não externo me dizia, me exigia continuar. Não. NÃO. Não vou atravessar essa ponte. Ela se mexe, há água embaixo. Vai quebrar. Vertigem. Nem conhecia ainda a palavra quando conheci a sensação. A sensação da ponte. Não havia terra firme na qual firmar meus pés. Não havia terra firme na qual confiar. Essa seria minha sina.
De tardezinha, voltou ao bar. Entrou com o maior sorriso que conseguiu esboçar. Cumprimentou a atendente e se dirigiu a sua mesa. Seu canto a esperava, livre, como se fosse parte de um roteiro já escrito. Pediu novamente um chope Ipa de 500 ml. Hoje, suas roupas eram mais chamativas: estava vestindo sua calça verde clara com a blusa vermelha.
Sentou-se. Derrubou-se na cadeira. Paula não era uma boa atriz. E nem era tão solitária como ela mesma tentava acreditar. Não conseguia gritar vitória. Ela não estava vencendo, estava se afundando, mas Vitória não o sabia, Paula não respondera nenhum dos e-mails depois da separação.