Um conto de Mariana Vieira Gregorio
Mariana Vieira Gregorio nasceu em 13 de novembro de 1990, em Campinas, mas vive em São Paulo há dez anos. Formada em Audiovisual na USP, trabalha com edição de som de cinema, TV e séries, roteirizou dois curta-metragens (Outras e se o mundo acabar me dê um toque) e um longa (Fôlego). Em 2013, ganhou menção honrosa no Programa Nascente na categoria texto. Em um medium (medium.com/@marianavg), escreve cartas e pensa sobre literatura. Noturna é seu primeiro livro e será publicado pela Editora Patuá em breve. Interlúdio é um dos seus contos, dividindo amargamente o livro em duas partes.
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interlúdio
(para rir ou para chorar)
O Presidente deitou-se afofando a cama de ébano, ouro, crisálida, pelúcia rosa que ela, Mikaela, escolheu, véu-dossel, céu cristalino no trono de princesa. Não conseguia pregar o olho. Desde o glorioso momento, aquele em que vestiu a faixa presidencial, de júbilo e muita missa, missa no lugar de festa – a festa dos que atendem a Cristo – desde antes até, os meses afobados e lotados de mensagens no Zap, os olhos escrutinando incessante a luz do celular (tinha baixado agora um aplicativo que contabilizava as horas no celular, visando, talvez, diminuir delicioso vício), assessores, ascensoristas, ascetas, ascéticos e asnos parlando sem descanso, zumbindo nos pêlos que crescem nas orelhas, não pôde dormir. Sentia, como nunca – nem no exército, nem na roça – uma angústia a encher e esvaziar o peito, a língua às vezes sem querer enrolando-se no céu da boca, baba escorrendo pelo queixo; e era uma consternação, pois os dedos também paravam de funcionar, e mandava que agissem, agissem rápido antes que alguém visse – que ela, Mikaela, notasse – e depois de muito esforço os dedos finalmente obedeciam e o estrago estava feito: era tanta baba que era preciso trocar a camisa. Nesse sono atormentado, um ou outro sonho esquisito invadia a psiquê do Presida (como gostava de ser chamado entre os chegados, os fãs mais fiéis), a faixa presidencial toda babada, melada e branca como. É, como, isso aí. Suava frio.
De dia, os olhos cansados não prestavam para nada, muito menos o cérebro. Sem dormir o homem adoece, disse o Doutor Presidencial ou foi sua avó? Sem dormir, o homem não presta. Sentado na Cadeira, em cima da Mesa repousa a Bíblia de couro brilhante, intocável, intocada e irretocável, perfeita em seus saberes, salmos de difíceis palavras que ela, Mikaela, conhecia de cor, ele vestido com a referida faixa verde e amarela. Passava o dia olhando o nada. É isso mesmo, passava o dia olhando o nada, a parede, a cor bege da parede, esperando ofícios chegarem, apertando forte a caneta Sua, pois havia dispensado a Presidencial. O dia coçando. Odiaolhando. Óde caçando. Quando caçava, era um homem mais feliz, vigoroso, vermelho, quente e potente feito uma vulva inchada, deliciada de se esfolar num pênis Duro. Por isso, lembrou-se de assinar a permissão para caça, coisa que foi ideia própria, propríssima, sem propina. Mas que diachos que era ser Presida. A gente é Rei de um país, é Mito e Messias, tem direito a melhor medicina, prostitutas finas, blindagem e alcachofra, jato e lava jato grátis, segurança igual do MIB se eu pedir, e nenhum dia de folga pra ir fazer o que se gosta. Nenhum dia que o país não explode, não reclama, não sai no jornal, não tem problema, é fogo, PIB e reforma, dono de banco ligando, Donanna me importunando. O problema dos viados, o problema dos pretos, dos índios, dos viciados, estelionatários, gente que engoliu o dicionário, o fantasma da Muli assobiando debaixo do assoalho. Saudades mesmo de apontar a Bendita e pum, animal no chão, sangue fresco, carne boa, Homem que é Homem. Saudades mesmo do sol da roça. Não. Até que o Ar Condicionado era bom.
Por mais que tentasse, fritasse os miolos, os milhos, os filhos, não conseguia se decidir sobre um troço muito simples, mas que lhe pegava até os ossos, fazia doer a boca, e de novo a língua se enrolando no fundo da garganta, palavra calada no ato. Não sabia se ter sido nomeado Presida, ter se submetido ao povo, govenar (algo assim, a língua já enroscando) era maldição ou benção, afinal. Deitado na cama ela, Mikaela murmura: e a Convenção dos Surdos Mudos, deu uma olhada? Ou vou precisar protocolar? Alongou a sílaba lar, alargou os braços e tocou nos véus dosséis que caíam dos céus, as pelúcias fofinhas. Concordou, disse qualquer. Preguiça de dissertar. Preguiça de pensar. Um fantasma me paralisa a língua e os dedos, queria dizer. Como seus surdos mudos e você nem para ligar. A Convenção de Apoio ao Presida, sonhou. Donnana, sua maior eleitora, seria chefe do clube. Maior porque era gorda. E loura. Dos olhos pequenos esverdeados. Foi a primeira a chamar-lhe Mimito. Todo dia recebia seu Bom Dia no Zap. Foi a primeira (e única) quem disse que o fantasma da Muli rondava o Palácio, rondava a Casa. Que ela podia vir espalhar spray azul anil e dar um jeito. Vai acabar com essa sua tormenta, vai levar os inimigos embora, vai deixar do seu lado só quem te quer bem. Vai me fazer dormir?, digitou, branco feito um verme, unhas sujas como carrapatos. Vai. Vai parar de gritar? Ao redor dele, as velhas se regozijam. O danado endurecido pensando na velha, agora essa? Ê, ê, e por que não? Não pode tudo, é? Se quisesse trepar com a grandona, que mal teria. O bom é que não nasce filho. E que o coração é puro, livre de mazelas. Todo mundo ao seu redor, raposando. E ele não podia repousar? Que vontade de matar uma raposa. E tem raposa nesse país?
Que foi, falou alguma coisa? – perguntou ela, Mikaela e logo se levantou. Olhou no relógio, relógio de pulso de ouro e marfim, não, diamante e platina, nióbio e petróleo, Presente da Posse, três da manhã ainda. ela tinha ido cagar, pois cagava a beça, tinha síndrome do intestino irritável, intratável, clínico, cínico e crônico. Três da manhã, hora do Demônio. E existe? A bíblia rosa dela surrada como boa crente, abriu, folheou, procurou, Demônio, cadê? Letrinha pequena irritante demais. Pulou no Apocalipse. E no meio dos sete castiçais um semelhante ao Filho do homem, vestido até aos pés de uma roupa comprida, e cingido pelos peitos com um cinto de ouro. Arrepio. Tirou o relógio de ouro, jogou longe. A partir de amanhã fica proibido o ouro. O Homem não precisa do ouro, precisa da terra, da terra para arar, para plantar pimentões, pocilgas e putinhas. E a sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a neve, e os seus olhos como chama de fogo, e não é que assim aparece o fantasma da Muli? Maldita entre os malditos. Pulou muitos versículos porque viu repetir-se com exaustão sete estrelas, mastro, castiçais e nicolaítas, que não sabe o que é. Ao que vencer, dar-lhe-ei a comer da árvore da vida, que está no meio do paraíso de Deus. Subiu-lhe pela garganta tal coisa estranha, como voz embargada, salmoura nas vísceras. Era o choro de um bebê. A árvore da vida deve ser linda, luzinhas, lacaia, lanças e loló. No meio do paraíso de Deus, será que é longe? Vai-se a pé ou de barco? Não passou pela sua cabeça que almas desse alcance sabem voar ou, ao menos, flutuar. Anotou: amanhã diria: o povo irá comer da árvore da vida, que está no meio do, mas se o povo comer, e o povo é glutão, sádico, glutamato, grosseiro e gosmento vai sobrar árvore alguma. Deus sabe, não sabe? Também não era quem deveria decidir tudo. Por favor Papai do Céu, uma folguinha para eu ir me debandar. Esvaziar a cabeça. Passar o dia todo passando. Ter de ficar olho em maluco, maluco que brota feito capim, boi come capim, Senhor Presida, eles perguntam. Pergunte você mesmo ao Boi. Se você chegar bem devagar-perto do Boi ele responde mmmmmmm. E vai sabe o que é de comer. E continuou a leitura de afonias, cafuné, fetos e fuinhas, E ao que vencer, e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações e Eis que venho sem demora; guarda o que tens, para que ninguém tome a tua coroa, disse o Boi. E pela primeira vez em meses, embalado pela doce canção do matraquear de dentes incansáveis dos bovinos que não param nunca de comer e digerir, adormeceu. Ela, Mikaela ouviu o ronco: não suspirou, também não maldizeu.