Um conto de Marina Monteiro
Marina Monteiro é escritora, dramaturgista, atriz, arte-educadora, facilitadora de oficinas de escrita, gestora e produtora cultural. Formada em licenciatura em teatro pela UDESC e estudante do bacharelado em filosofia da UFRJ. Como autora de literatura já teve textos publicados em revistas, zines e antologias. A publicação mais recente é o conto 8 fragmentos do corpo-cidade que saiu na antologia “Antes que eu mês esqueça – 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje”, da Quintal edições. É autora dos livros “Comendo borboletas azuis” (Multifoco, 2010) e da coletânea de contos “Em nossa cidade amarelinha era sapata” (Patuá, 2019), livro vencedor do 18° Prêmio AGES, da Associação Gaúcha de Escritores em 2020, na categoria narrativa curta.
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Comigo ninguém pode
Luzia estava vestida de preto, em calça, camisa, meias e sapatos. Em contraste a todo o pretume, só os cabelos brancos. Os olhos, tão pretos quanto as roupas, projetados em ângulo reto na direção do carro estacionado em frente à sua casa. Era uma forma de protesto. Mãezinha, por que estás toda de preto, acaso morreu alguém? Luzia olhou seu único filho que agora terminara de encher o porta-malas com as coisas que restaram para ir com ela. Entrou no carro, sentando-se no banco de trás, deixando vago o lugar ao lado do motorista.
Antônio ligou na rádio favorita da mãe, pelo menos costumava ser. Coloca na rádio do pastor, ela disse de pronto. Mas mãezinha, desde quando a senhora escuta isso? Desde agora, Antônio. A senhora nunca se deu para estas coisas de religião. Não respondeu. Sintonizou ela mesma a rádio do banco de trás. Tomaram conta do carro os gritos esganiçados do pastor que anunciavam Jesus-Jesus-Jesus-Jesus…
Não fosse Jesus, a viagem teria ido no mais absoluto silêncio.
Na noite anterior ligou para Vilma: você fica com a minha comigo ninguém pode? Não permitem que leve e aqui ninguém vai poder ficar. Nem deu tempo de silêncio e Vilma já saiu numa enxurrada de perguntas: por que o Bentinho não leva para a casa dele? Ou a Jussara? Antônio podia levar também. Ao que Luzia rebateu: Bentinho não tem tempo, Jussara está quase ganhando bebê e Antônio disse que não cabe no aviiii-lma, estou pedindo para você, não tenho que dar explicação. Fica ou não fica? Não Luzia, não gosto destas plantas meio místicas, tu bem sabes. Tem nada de mística Vilma, é só uma planta. Com um nome horroroso, não fico não, Luzia.
Desligou o telefone na cara da irmã que tinha passado os últimos dez dias ligando para ela aos prantos, pedindo desculpas por ter nascido e dizendo o quanto sempre a havia ajudado, mas que agora não tinha o que fazer e. Toda vez que Vilma desembestava a falar, Luzia ouvia uma espécie de ruído no lugar das sentenças.
Pronto mãezinha, é aqui. Nem foi tanto tempo né?! Viu que pertinho?
Olhou o ponteiro do relógio. Quarenta e cinco minutos de via expressa e o filho ainda se esforçava em convencer que não a estava isolando do mundo. Um homão de 50 anos, com dois filhos crescidos, prestes a ser avô, apaixonadinho igual moleque por uma meninota. Onde foi que eu errei? Ela pensou e dispensou bem rápido o pensado. Não tinha errado. Fez o melhor que pode. Mãe sozinha na época dela. O safado do pai ninguém nunca culpa. Pois a culpa era dele. O menino era feio. Antônio não era bonitão. Mas tinha charme e estava sempre deixando filas atrás de si. Puxara ao pai. As mocinhas babando, sempre assim, mas nenhuma que prestasse. Nenhuma que valesse o tempo, o cuidado e o investimento que ela depositara no filho. Sabia que isso ia acabar dando problemas. Dito e feito. O filho estava de muda para o Mato Grosso do Sul, lá nos confins do estado, por conta de um rabo de saia.
A Sabrina mandou um beijão para a senhora e diz que vem visitar no próximo mês. Eu venho todo mês, mãezinha.
Saiu do carro antes que ele pudesse abrir a porta para ela. Que guardasse seus cavalheirismos para aquela uma. Com ela não. Já tinha enfrentado meio mundo, cuidado daquela bunda de bebê na cara e na coragem, ajudado a criar os dois netos, enquanto o filho chorava o divórcio bêbado em algum boteco de esquina, não precisava de cavalheirismo de um meninote que tinha saído igual ao pai e a largava no fim da vida, como uma trouxa velha.
Nem a sua comigo ninguém pode conseguiu trazer. Não permitiam. Absurdo de lugar que não se pode trazer uma planta. Uma planta que era da mãe dela, e estava na família há décadas. Uma planta que murchava toda vez que a comadre da mãe dela aparecia na porta da casa antiga. Nem a pobre da planta ela tinha direito de ter. E o filho ali, parado, com os olhos de peixe morto a dizer: mãezinha.
Pronto, mãezinha. Quarto privativo, televisão, telefone para a senhora falar comigo e tia Vilma quando quiser e trago seus chocolatinhos sempre que possível.
Dito isso, ele pendura a foto da planta na parede. Aqui a sua comigo ninguém pode, mãezinha. Mandei emoldurar. Para a senhora não esquecer. Garoto abusado. Ela jamais esqueceria. Podia ser que esquecesse da existência dele, mas da planta nunca, nunquinha. Pendurar uma foto na parede, lugar miserável, o que custava deixarem ela levar a planta? Ela molhava, cuidava, conversava. Ninguém precisava se dar o trabalho. E aquela asquerosa da Vilma. Irmã caçula não servia para nada, se a Valdirene estivesse viva ainda. Essa sim cuidaria da sua planta com muito gosto. Se Valdirene estivesse viva ela nem precisaria ir para aquele lugar. Os bons morrem cedo. Essa que é a verdade. Pensou nisso e olhou para o pedaço de céu que surgia da janela. Por que demônios não morria?
Mãezinha?
Antônio, da porta, olhando para ela com olhar comprido. Dizer que ela já tinha amado aquela criatura.
Pode ir, Antônio. Eu quero descansar.
Tá bem mãezinha, eu volto tá?!
Não ia voltar. Nem os telefonemas atendia mais, reclamava que a mãe vivia sempre em cima.
Se voltasse ela fingiria que estava indisposta. Nunca mais veria o filho. Nem Vilma. Muito menos aquela uma, se recusava a dizer o nome, o filho negava que fosse o motivo da mudança, mas tinha certeza de que era, ele podia inventar a desculpa de trabalho que fosse, era tudo culpa daquela uma, a faca final enfiada nas suas entranhas.
Um ar grosso, umedecido, conseguiu entrar no último instante, quando Antônio fechou a porta em olhar demorado.
Pensou que se fosse boa como a Valdirene. Ficou a mirar o pedaço de céu como um presente, a pensar qual erro a afastava do júbilo final. Agarrou-se ao retrato da planta. Sentou-se na cama. Não queria dormir. Agarrou-se ao retrato da planta com um pouco mais de força, chegando a marcar as palmas das mãos. Talvez pudesse arranjar algum jeito de ter a planta consigo. Mirou o céu de lado. Valdirene. Se fosse como ela. Não queria dormir. Queria que Vilma amargasse em culpa. Queria que Antônio pesasse em arrependimentos. Queria que… Agarrou-se ao retrato da planta, e pelas marcas forçadas nas palmas das mãos chegou a sentir raízes penetrando o corpo, indo romper doutro lado a pele, a se enroscarem naquela cama, naquele quarto, naquele lugar. Não queria dormir. Queria planejar um levante de devolver a todos eles o que lhe estavam fazendo passar. Não queria dormir. As raízes se fortificando em um movimento de presa, adaptadas ao novo solo sem constrangimentos. Ela que não queria dormir, ia puxada pela força do enraizamento que lhe atravessava o corpo. Ela que não queria dormir… Embalada pelos planos de vingança, acabou dormindo, agarrada ao retrato da planta, que por sua vez, a agarrava de volta perpassando seu corpo, toda na força de vingar, vingando assim, ali, a primeira noite de tantas quantas estavam por vir, naquela cama, naquele quarto, naquele lugar.