Um conto de Mazé Chotil
Mazé Torquato Chotil é jornalista, pesquisadora e autora. Doutora em ciências da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII e pós-doutora pela EHESS. Nascida em Glória de Dourados-MS, morou em São Paulo e vive em Paris desde 1985. Já publicou Na rota de Traficantes de obras de arte, José Ibrahim: O líder da grande greve que afrontou a ditadura, Trabalhadores Exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), Lembranças do sitio, Lembranças da Vila, Minha aventura na colonização do Oeste, Minha Paris Brasileira, L’Exil ouvrier e Ouvrières chez Bidermann: une histoire, des vies.
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Contagiante não, cintilografia mesmo!
Saindo do elevador, no 4o andar, dirijo-me à direita. O ambiente é calmo, só ouço a porta corta-fogo se fechando, após minha passagem. Há algum tempo não o vejo, vou saudá-lo antes do encontro com o grupo.
– Oi! Como vai?
Viro para trás em direção da voz. Ele anda de forma penosa, como se estivesse cansado após uma cavalgada que o teria deixado com as pernas curvadas. Dá a impressão de fragilidade, que pode cair. Engordou um pouco?
– Tubo bem – me aproximo para a saudação com dois beijos no rosto. – E você?
Desculpa-se porque esteve ainda em exames durante a manhã, a continuidade da série de controles que deve fazer, e não pôde partir de casa com muito peso, com o livro que tinha pedido para me emprestar. Tem um rosto branco, mais que o habitual, como se o sangue tivesse desaparecido.
– Não tem importância, fica para a próxima vez. Como está?
Caminhando em direção à sua sala, chegamos na porta e entramos na sala aberta por ele. Indicou-me a cadeira para me sentar e ocupou o lugar na outra, em frente ao computador, e apertou o botão para ligá-lo.
– Estive no hospital esta manhã. Estou na bateria de exames. A cada dois anos, tem que refazer tudo novamente, para controle.
Tem um câncer há mais de cinco anos e é medicado desde o início dele. Começou a caminhar de casa para o trabalho – três quilômetros –, tem um regime alimentar para equilibrar o diabete e a doença tem se mantido tranquila.
– Ainda faltam muito exames para fazer?
– Não, o mais delicado foi a cintilografia que fiz há dois dias.
– Cintilografia?
– É uma imagem médica. Eles injetam uma substância radioativa no corpo de forma que as radiações emitidas pela substância circulam e se fixam sobre algumas áreas e, captadas por uma câmera específica, produzem uma imagem visual da zona a ser explorada. O que permite ver como é que a doença evoluiu. Como você pode ver, ainda estou me recuperando…
Estava precisando falar:
– O que é muito delicado é o estado dos hospitais atualmente com a falta de pessoal. Você chega lá, mesmo tendo marcado horário, pega um ticket com um número e fica esperando. Ninguém a quem possa perguntar algo, se está no lugar certo… Depois, se não está na área certa, recebe reprimenda. Tudo é muito restrito em matéria de pessoal. Fazer o quê? Esperar.
Com muita gente para ser atendida, ele se senta e começa a ler. Não pode fazer nada a não ser esperar que o chamem.
– Me convocam para aplicar o tal produto e depois me mandam esperar uns 20 a 30 minutos, tempo necessário para que ele chegue em todas as partes do corpo. É a medicina nuclear. Disseram-me que o produto não é perigoso para a saúde em função das baixas doses de raios, mas permite avaliar a extensão do câncer.
A sala de espera dessa vez é especial, radioprotegida para não deixar espalhar os raios ionizantes que foram aplicados. Recomenda-se beber 1 litro de água durante a espera, de forma que os pacientes têm toaletes reservados, sempre a fim de não transmitir radiações.
– Estou lá, entre outras pessoas, umas visivelmente mais debilitadas, quando uma funcionária sai de uma sala e se dirige ao grupo. Diz que tem uma máquina quebrada e precisa mandar paciente para o hospital vizinho, que tem disponibilidade para fazer o exame.
Ele mantém a cabeça baixa, olhos no livro, como se não fosse com ele. Pensa que seria complicado sair dali, onde têm seu prontuário, andar até o outro hospital, talvez ter problemas com os exames, essas coisas que são sempre fontes de dor de cabeça. Estava ali, sentado esperando já há um tempo, esperaria um pouco mais.
– Ela se aproxima de mim e eu, sentindo o bote, tento me esquivar.
– O senhor não poderia ir? Os outros pacientes estão mais debilitados…
Tentou dizer que o prontuário estava lá, que poderia ter problemas no hospital vizinho, e como iria com o produto injetado?
– Está tudo acertado, eles vão atender imediatamente – me disse. Pegou meu prontuário, me entregou e, em relação ao produto injetado, me recomenda não me aproximar de mulher grávida, nem de criança pequena. Fora isso, tudo bem, não haveria problemas.
Uma pequena pausa, ele continua:
– Fazer o quê? Peguei o prontuário e fui.
Na rua, vendo uma senhora empurrando um carrinho de bebê, mudou de calçada. A senhora olhou para ele, sem entender. Não podia explicar, se aproximar, ainda mais, estava apressado, queria fazer a tal cintilografia o mais rápido possível. Mais adiante, uma criança, ele consegue manter a distância de um metro. Vê a senhora do outro lado, que o olha intrigada em sua direção.
Imaginei a cena, ele radioativo, fluorescente, mas sem que a senhora pudesse perceber, mudando de calçada, driblando as pessoas que passavam para manter a distância, com a pasta de documentos sob um braço e o livro na outra mão, apressado. Não pude deixar de rir, sem fazer muito alarde, ao contrário do meu hábito, sabendo que as divisórias das salas deixam passar quase todo som num lugar que abriga pesquisadores que devem ter calma para trabalhar, escrever…
Ri tanto que chorei. Rimos, já que o contagiei. Não pôde ficar indiferente. Tempo de extravasar tensões. Rir é necessário, mesmo se muitas vezes perco o controle. Tentei explicar por que estava rindo daquele jeito, pedir desculpas, mas não consegui de imediato. Devo ter uma memória visual importante para imaginar coisas!
Hora do seminário, pegamos nossas coisas e saímos. Fechando a porta ainda rindo, alguém passa e diz:
– Riso contagiante!
Coitada, devo tê-la impedido de se concentrar!