Um conto de Melissa Suárez
Melissa Suárez é poliamorosa de linguagens. Como escrevinhadora publicou seu primeiro livro, Travessências, pela Patuá, um dia antes da pandemia. O conto abaixo faz parte desse livro.
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No algodão das suas brancas nuvens
Ao ver a invasão carmim naquele ambiente branco hospitalar. Trilha tinta de circulares manchas na cerâmica clara do piso. Logo pensou em hospital. Na louça gelo impecável o borrão vermelho de traçado fino até a água. Temeu pela esposa. Coágulos na minirepresa da privada. Por que não contou que sangrava? Vida que se esvai? O que faria sem ela? A companheira carinhosa e fiel de tantos anos, mãe da sua descendência, não sei viver sem ela, alento nos dias difíceis, companhia imprescindível nos momentos de glória, não sei vi… então os olhos focaram o absorvente encharcado e escancarado no lixinho sem tampa.
Amália, sua porca!
A companheira carinhosa e fiel de tantos anos, mãe da sua descendência, alento nos dias difíceis, companhia imprescindível nos momentos de glória vem apressada da cozinha ao banheiro para entender de onde surgiu o mais recente xingamento. Ele aponta flagrante sangue vivo desobediente no vaso e a despudorada possibilidade de vida desperdiçada no plano de algodão ao cesto aberto Velho gagá. E não diz, Não sabe que há muito não me vem as regras?
Você que é gagá, sua cretina! Mas ele entendeu. A vizinha? De frente para atentado, tenta adivinhar a criminosa. Mas a vizinha não tinha aparecido hoje. A filha havia saído há pouco. E pela primeira vez realizou a filha como uma mulher. A filha é mulher! Os filhos crescem e se tornam homens e mulheres, eu não descobri isso agora. O que não tem é registro do processo. Como as conversas de pai pra filho. Uma necessária conversa com a filha sobre a vida. Mas certos assuntos são das mães. Amália, você não falou com ela sobre essas coisas?
Esposa de passos atenuados, já não estava mais ali, atenua, na voz ao longe, constrangimentos. É, é bom explicar de novo, ela é nova nisso.
Filhas são da mãe. Eu cuidaria de explicar tudo tivesse tido menino. Que tristeza. Queria uma casa cheia de filhos. Muitos muitos filhos. A última vez que viu vitórias-régias filhas de sangue gotejante no lago da latrina foi no quinto aborto da mulher. Muitas. Que tristeza. Mas tinham a Cristina. Uma boa menina.
Mulher eu preciso me barbear! Incômodo. A desperdiçada possibilidade de vida ali. Sangue desobediente despudorado. Amália, eu preciso fazer a barba!
A mulher teve problemas no fim da gravidez.
Chama e ela não respondia.
Precisou ficar internada.
Gritar, da janelinha. Inútil!
Não ficou com ela no hospital.
A cabeça fora do ambiente. Exigiu a esposa. Ali.
Flagrante possibilidade de vida desperdiçada.
Amália chorou. Bolsa rota? O que eu tenho a ver com isso?
Mulher, ô mulher! Colocou todo o corpo fora.
Não sou médico. Não tinha o que fazer lá.
Sozinha. Do quarto. Amália sai inteira.
O que foi Antônio?
Eu preciso fazer a barba! Faça, ué. Com isso sujo assim? Você precisa da privada para fazer a barba? Tem cabimento! Espere. Já vi, estou resolvendo isso.
Contrariado, dirige-se ao armarinho de espelho, desviando o olhar do rastro de sangue vivo circular e desobediente. Molda o creme com as mãos. Mas como tempo passa! É necessário ter uma conversa com a filha. Ser pai. Como a vida passa! Claro que certas coisas são das mães. A mulher, por ser professora, lia histórias, inventava de levar no teatro, ia nas reuniões da escola. Se eu tivesse um menino. Levaria no estádio. A Cris até gostava de assistir futebol na TV. Torceu, de madrugada, do meu lado e viu o São Paulo ser campeão mundial. Que timaço! E o Telê Santana? Aquilo que era técnico! A menina em cambalhotas pela sala em comemoração. Ela era um tatu bola de carapaça preta branca vermelha. De manhã, contou animada à mãe a novidade. Éramos campeões do mundo! Do mundo! Amália inventa de me dizer Olha só, leva ela no Morumbi. Ora, tinha cabimento?
A face coberta como barba de Papai Noel. Ela se divertia tanto! Não sei como não me reconhecia como pai. Eram dias especiais, mas criança quando cresce não vê mais graça em Natal. Como a vida passa! A gilete arrasta espuma e a pele. Veio fino de sangue. Porra! Não se lembra qual foi o primeiro emprego dela. A água fria escorre com sangue latente da cara acorda traz para o agora É preciso ser pai.
De cara lavada. Estou sendo pai. Outro dia, à mesa do almoço, o comentário que não valia a pena, filha, estudar tanto. Luta de cara em livro, esgotamento em vão. Joga a toalha. No rosto. Branca, felpuda. Cansado de olhar a vida desperdiçada. Desvia. Outro dia, à mesa do almoço, ele até falou achava a filha não conseguiria ser juíza. Ela não gostou, foi embora, a cara feia. Direito. Direito é um bom curso. Digno. A profissão dá dinheiro. Ele queria muito um filho advogado. Não teve filhos. Mulher, ô mulher! Ao se virar para pegar papel neve pisa nos indícios vermelhos de vida desperdiçada. Apesar do sangue vivo desobediente lhe importunar, não pensou em apagar os pingos do chão. Amália! Ô Amália! É preciso conversar com ela. Afinal sou pai. A filha já é uma mulher, não deve dar cabeçadas, precisa ter juízo. Preciso tirar a ideia de juíza da cabeça dela. Perda de tempo. Ela não tem inteligência pra tanto livro, tanta lei. Cristina precisa de conselhos de pai. Bem, ô benhê!
A voz vem abafada do quarto trancado. Que é? Já vou. Eu queria saber se a Cristina ainda quer ser juíza…
A mulher vem até a porta, meio corpo para fora. Claro, homem, depois de tanto ralar nos livros, justo agora ia deixar de querer? Justo agora? Se ela só tá esperando ser chamada no concurso. Ah e é? Pelamor de Deus, Antônio, a Cristina nos contou. Arre, ela contou só pra você. Claro que a filha sempre foi mais ligada à mãe. É natural. Então conta tudo pra mãe. Não, você estava também, faz só uns dois meses… eu tava no fogão, você estava lendo jornal. Evita. Seu estava lendo jornal então ela não contou pra mim. Você estava no mesmo ambiente, ouvindo! Desvia. Estava, mas ela não se virou pra falar pra mim. Amália expira e faz meia volta para dentro do quarto. Mas era momento de ser pai. A sugestão segurou a porta entreaberta. A gente podia fazer um jantar pra ela, pra comemorar. Mas ora veja, essa sim é uma ideia original, nunca veio antes algo assim partindo da sua pessoa! É, é,… Viva! É uma excelente ideia, mas você vai me ajudar com esse jantar. Claro, é só eu terminar aqui e vou no Mercado Municipal buscar uns camarões! Tô seco por um camarão. Camarão, Antônio?! É. Você quer dar um jantar pra sua filha, pra homenagear que ela é juíza, oferecendo camarão? E que que tem? A Cristina não come frutos do mar. Nunca comeu. Mas nem um camarãozinho? Amália bufa e volta para dentro do quarto, fechando de novo a porta.
Ajeitou os fios brancos com o pente. É mesmo! Na viagem pro litoral em Santa Catarina. Vai reto, não desvia. A Cris devia ter uns 15 ou 14 anos… o camarão estava muito barato. E cada camarão graúdo! E a menina queria bife. Cada camarão e ela insistindo no bife. Não tinha bife, tinha chuleta. E não é que ela pediu chuleta? E comeu mesmo. E chupou o ossinho. Chuleta, meu Deus, chuleta! Como a vida passa!
Higiene terminada, quis urinar. E reviu coágulos represados. A vida se esconde em pequenas bolsas. Círculos concêntricos que iniciam pequenos e se expandem. O que você está fazendo trancada no quarto, mulher? Que não vem limpar o banheiro? Do quarto, a voz abafada. Não sou eu que vou limpar o banheiro. Eu é que não vou. Apesar da escancarada possibilidade de vida desperdiçada importunar cada vez mais com sua presença constante. Mas agora: ser pai. Façamos o jantar. A mulher sabe cozinhar o que a filha gosta. E falar pra Cris trazer o rapaz. Um bom rapaz. Mas aparece pouco. Viaja a trabalho. Que trabalho é esse que precisa viajar tanto? E a menina fica aqui pra não ficar sozinha. Benhê! Que horas que a Cristina volta? A porta do quarto se abre. Ela disse que ia demorar mais hoje, por quê? A janela do quarto mostra um céu azul com nuvens brancas. É perigoso, né, ela vir tarde? Nuvens de algodão. Agora você vai ficar preocupado? Você nunca se preocupou antes. Brancas nuvens. Como não? A vida se esconde em pequenos eventos. Eu que ficava acordada esperando nossa filha voltar da faculdade, das festas. Círculos concêntricos que iniciam pequenos e se expandem. Você dormia como uma pedra! Círculos que às vezes ficam represados em brancos. Eu dormia preocupado!
Com licença? A menina, Taís, vermelha de vergonha, sai do quarto destrancado de. Brancas nuvens. Passou. Pelo corredor. Limpa o vaso e recolhe o saco de lixo com a evidência da vida desperdiçada. Desculpa, vô.
Sangue do sangue do seu sangue, vivíssima e desobediente. A vida passa.
(Foto de capa por Beatriz Costa).