Um conto de Natalia Timerman
Natalia Timerman deu uma imensa volta até conseguir se dizer escritora. Iniciou letras quando cursava o segundo ano de medicina na Unifesp, mas acabou desistindo da faculdade noturna após uma viagem ao Xingu, quando descobriu que ser médica poderia, também como a literatura, a levar a lugares distantes. Novamente em dúvida quanto ao que fazer no final da faculdade, prestou vestibular para letras e residência em psiquiatria; acabou ficando com a segunda, também na Unifesp. Descobre reiteradamente a confluência entre literatura e psiquiatria. Trabalha há sete anos no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, em São Paulo, e atua como psiquiatra e psicoterapeuta em consultório particular desde 2007. Seu mestrado em psicologia pela Usp virou o livro Desterros – histórias de um hospital-prisão, publicado pela Elefante em 2017, ano em que terminou a pós-graduação em formação de escritores pelo Instituto Vera Cruz. Tem contos publicados em antologias e revistas e colabora para os portais Infame e Desha. Ficou em primeiro lugar no IV Concurso de Contos da Associação Brasileira de Psiquiatria. Escreveu um romance, ainda sem editora. Uma história real é parte de uma coletânea de contos que sairá em 2019 pela Editora Quelônio.
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UMA HISTÓRIA REAL
Do corredor do avião avistei a fileira 27. Sentei-me na poltrona do meio. A da janela já estava ocupada: um rapaz jovem, de boné, mexia em seu telefone celular. Torcia para que ninguém ocupasse a do meu outro lado, assim não teria a sensação de ter que me encolher tanto, quando um homem alto, quase loiro, a pele marcada e branca, se aproximou.
Fez um cumprimento quase imperceptível com os olhos e se sentou ao meu lado esquerdo. Bom, paciência. Peguei meu livro na bolsa, que coloquei debaixo do assento diante de mim, e o abri na página marcada, a 174.
O homem tinha as mãos grandes.
Tentei ler, mas não consegui deixar de observar aquelas mãos se movimentando para tirar um caderno e uma caneta de dentro da mochila preta, também colocada no chão.
Olhei disfarçadamente o rosto do homem. Ele me pareceu interessante naquele olhar rápido, de relance. A boca vermelha e grossa, os cílios longos e claros. Quase bonito.
Voltei para o meu livro, mas os movimentos da caneta levada por aquelas mãos grossas capturavam minha atenção. Um homem que escreve. Um homem que escreve num caderno, sentado ao meu lado no avião.
Ajeitei-me na poltrona para tentar fazer com que o ângulo dos meus olhos em direção a meu livro alcançasse também o caderno. Estava na iminência de começar a desvendar aquelas palavras sendo escritas em letra de mão quando o avião começou a se movimentar.
Fechei o livro e os olhos e ajeitei-me de novo na poltrona, desta vez para frente. Fico enjoada quando o avião vai decolar. Mas tive o cuidado de deixar a capa do Bolaño que eu lia virada para cima.
Quando o avião já voava alto abri de novo meu livro. O homem ainda escrevia. …as mãos delicadas, consegui ler enquanto fingia me espreguiçar. O homem se remexeu um pouco no lugar dele e num mesmo movimento apoiou seu caderno no encosto de braço entre nossas poltronas. Ah, assim ficava fácil de eu ler o que ele escrevia – ele não parava um segundo de escrever – se eu colocasse meu corpo numa posição diagonal.
Lia um pouco do Bolaño e disfarçadamente lia o que o homem escrevia ao meu lado, quase grudado em mim. Na verdade, lia o que ele escrevia tentando intercalar um pouco com meu livro para que ele não percebesse, ou para parecer acidental, ou ainda para convencer a mim mesma de que fosse acidental, pois eu estava sendo extremamente invasiva, afinal aquele caderno parecia um diário, as páginas pautadas, escritas com letra descuidada. Mas ela se senta como se pairasse, ou como se estivesse em sua casa, ao mesmo tempo leve e inteira, e cheguei a pensar envergonhada e instigada que ele talvez estivesse escrevendo sobre mim. Não, não pode ser, ele faria isso ao alcance dos meus olhos? sem que ela saiba, imaginando quem seria esta pessoa, os cabelos pretos escorrendo o cheiro doce e leve de xampu que chega até aqui Eu tenho cabelos pretos e lisos mas quantas mulheres não tem? as pernas cruzadas que se descruzam até aí pode ser coincidência, mas na dúvida cruzei novamente minhas pernas e fechei meu livro, eu estava quase incomodada ela se mexeu de novo, se aproximou mais e fechou seu Detetives Selvagens e então fiquei paralisada por alguns instantes porque naquele avião inteiro certamente eu era a única a ler aquele livro, e não podia mais ser mera coincidência a suposta personagem dele estar lendo a mesma coisa que eu. Num instante, pensei em todo um leque de reações possíveis, abaixei o tronco em direção à minha bolsa, guardei meu livro e peguei meu caderno de anotações e uma caneta.
A caneta dele hesitou por alguns instantes ao meu lado enquanto eu abria meu caderno na próxima página em branco. Percebi com o canto dos olhos a intenção não cumprida dele virar o rosto para mim, um gesto interrompido, e comecei a escrever:
Os dias oferecem surpresas, começam e desviam, ela pegou o caderno e começou a escrever ao meu lado, De dentro dos absurdos impossíveis que me fiz de armadilha, e talvez só pela existência deles, posso encontrar absurdos possíveis como este a letra dela é pequena e rápida, palavras sem bordas, ela escreve muito mais depressa que eu (um bilhete premiado roubado do relance da página antes em branco que se preenchia dos gestos que acontecem ao lado) por que entre parêntesis o que mais importa? de todos os meus livros, a personagem mais completa, mais incrustada na vida, enquanto no ar, ela e eu
A aeromoça passou oferecendo de beber e de comer, o rapaz de boné aceitou, nenhum de nós quis.
e de repente duas canetas cozendo linhas vivas, um sorriso oferecido pelo branco das páginas lado a lado voando no absurdo acontecido e sorridente, que sorriso lindo a metade do rosto dela me oferece e eu, que não consigo deixar de tentar ler o que ele escreve tampouco pude deixar de sorrir diante da situação de me ver inventada em carne e osso, narrada pelo que a imaginação de um desconhecido conhece de mim last night I told a stranger all about you, mulher adolescente dos cabelos pretos e cheiro doce mas eu diria então: que talvez fosse muito bom ser adolescente tendo vivido algumas coisas, caramba, é muito difícil escrever com alguém possivelmente lendo mas que coisas então terá vivido se tem essa leveza de quem não sabe de nada e por ter um filho e um trabalho e muitas paixões (bom, isto não me tiraria da suposta condição de adolescente) então digo que se eu contar meu nome minha idade minha vida eu gosto muito de ler e escrever e sou professor de literatura em Brasília eu também gosto muito dos livros mas infelizmente não moro neles como gostaria, inventei outra vida em que eu me imaginava caber sem saber que seria impossível eu caber em lugar algum mas qual é a outra vida que inventaste para ti? se eu contar tenho medo que o absurdo disso se perca, que você escreve com palavras tão decididas decididas? sumiram aqui também as palavras quais são as perguntas que te poderia fazer? quero saber sua vida As perguntas certas seriam muito facilmente respondidas, as erradas são tão melhores você mora em São Paulo ou Brasília? Um livro vivo, o momento onde me vejo fictícia sendo chamada a ser real e vice-versa, linha eu também tenho um filho, eu moro em Brasília, tenho 37 anos (quase como quando recebendo imenso prazer fico impossibilitada de o proporcionar) você entende minha letra? Claro, nítida como o céu que voamos E o passageiro que dormia ao lado mal poderia saber o que se passava Quantos anos você tem? 31 Você trabalha com o que? Era como uma fuga, várias vozes narrando instantes impossíveis que, no entanto, se ofereciam
Ele levantou a cabeça e me fixou o olhar sorridente e constrangido e maravilhado
desculpe te oferecer
Ele insistiu com o olhar levantado e eu precisei desviar meu rosto do papel e mirá-lo de volta, e depois dos primeiros instantes, cada um segurando seu caderno, as respectivas canetas como que ofegantes, em que nos olhamos sem saber como fazer o trânsito das letras para a voz, ele continuou a me perguntar aquelas coisas que poderia ter perguntado sem que nada daquilo tivesse acontecido.
A aeromoça passou recolhendo os restos.
Respondi o que sou, embora soubesse que meu quem estava preso nas palavras escritas, e fui murchando para me acomodar de novo à poltrona e prosseguir com aquela conversa.
Se eu pudesse, o teria impedido de levantar o rosto.
O avião começou a descer e eu me desculpei porque fico enjoada, virei de novo para frente e fechei os olhos.
Ednei (até o nome ele me disse) pediu meu telefone, eu passei meu email mas nunca respondi quando ele algumas vezes me escreveu. No desembarque do aeroporto, acenei de longe, não esperei sua resposta para me virar e nunca mais o vi.