Um conto de Nelson de Oliveira
Nelson de Oliveira ainda não nasceu. Para não assustar os amigos, prefere mentir que nasceu no dia 16 de agosto de 1966, em Mahagonny, maior cidade da Ilha do Dia Anterior. É ensaísta e professor livre-docente de literatura xamânica na Universidade de Macondo (Unimac). Leu e releu todos os livros, assistiu mais de uma vez a todos os filmes. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Prefere os destilados aos fermentados. Fala fluentemente doze idiomas secretos, incluindo o das abelhas: a ironia. Anos atrás buscou asilo político no paraíso, mas cansado de tanto silêncio decidiu voltar ao inferno. Pesquisa a imortalidade por meio do upload da consciência. Só acredita em biografias imaginárias. E na beleza moral do céu estrelado dentro de nós. Venceu duas vezes o importante e impossível Prêmio Príncipe de Cstwertskst, na categoria conto (1996) e na categoria romance (2006). Principais livros: Poeira: demônios e maldições (romance, 2010), Ódio sustenido (contos, 2007), Às moscas, armas! (contos, 2000) e Subsolo infinito (romance, 2000 – também em e-book).
O conto abaixo é parte do livro Às moscas, armas!, republicado em 2018 pela Editora @link.
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Baile de máscaras
Zacarias Sepúlveda Bezerra, alfaiate, recebeu o convite em sua casa − um sobrado caindo aos pedaços, localizado num dos piores bairros da cidade −, onde morava com a mãe, velha detestável, manca e diabética. Os olhos do mensageiro não desgrudaram dele, enquanto Zacarias segurava com dedos flácidos o papel:
− Que merda é essa?
− Esteja lá às oito em ponto. Não se atrase.
Um baile de máscaras.
− Mas hoje é Natal!
− E daí? Esteja lá às oito em ponto. Não se atrase.
Duas horas depois Zacarias pegou o terno que acabara de confeccionar para o melhor cliente, a cartola e a bengala que foram de seu pai, e a máscara que ele mesmo, Zacarias, alfaiate, costurara às pressas apenas para o evento. Uma carranca horrenda, parecida com as usadas por pigmeus africanos em rituais de feitiçaria.
− Que tal?
A mãe, vestida de Papai Noel, tirou os olhos da tevê, mediu o filho e cuspiu de lado.
− Você está a cara do prefeito − foi a única observação que ela, criatura odiosa, fez, antes de voltar a enfiar os olhos na tela prateada. A velha havia cuspido de lado porque não gostava do prefeito. Também não gostava de gente fantasiada de Papai Noel. Mas ainda não sabia disso.
Ao chegar ao baile Zacarias percebeu que tudo não passava de uma armadilha. Uma armadilha de Natal.
− Você será enforcado, canalha dos infernos! Como tem coragem de aparecer aqui depois do que fez?
− Eu não fiz nada. Fui convidado. Deixem-me em paz.
Dezenas de máscaras o cercaram:
− Facínora!
− Assassino!
Quem regia a saraivada de insultos era justamente o prefeito, que por coincidência também se chamava Zacarias Sepúlveda Bezerra. Além disso Zacarias Sepúlveda Bezerra, prefeito, usava uma máscara que lembrava bastante o rosto de Zacarias Sepúlveda Bezerra, alfaiate.
− Tragam uma corda. De hoje esse sujeito não passa.
Havia muitos homônimos no salão, visto que todos os presentes, exceto os do sexo feminino, se chamavam Zacarias Sepúlveda Bezerra.
Dois dias antes o prefeito com cara de alfaiate tinha violentado e estrangulado, em seu gabinete, um garoto de doze anos. Um garoto fantasiado de Papai Noel. Por isso o alfaiate com cara de prefeito estava sendo levado, contra sua vontade, até uma forca montada de uma hora pra outra no fundo do salão.
− Me soltem. Vão tomar no cu!
O alfaiate esperneou e distribuiu sopapos a torto e a direito. A multidão mascarada afastou-se por um instante, depois o engolfou:
− Maníaco! Sodomita!
No chão coberto de confete e serpentina, a cartola, a bengala e o convite um pouco amarrotado.
− Meeeeee sol… teeeeeem…
Enforcaram-no ao som de Noite feliz. O corpo, já sem ânimo nem cor, ainda estrebuchou durante três ou quatro segundos. Quando a máscara caiu, todos viram que não era Zacarias Sepúlveda Bezerra, alfaiate, mas sua velha mãe.
− Escapou mais uma vez, o depravado.
Atiraram a velha pela janela e deram prosseguimento ao baile, que, apesar dos dois linchamentos posteriores, ambos transmitidos ao vivo pela tevê, não foi tão espetacular quanto os bailes do Natal passado, em que o número de justiçados, de crianças violentadas e idiotas fantasiados de Papel Noel havia sido bem maior.