Um conto de Neto Costa
Neto Costa. Publicitário formado pela Universidade Federal de Mato Grosso. Escreve histórias pelas margens, tentando ouvir o que as ruas têm a dizer. Ganhador dos prêmios de “Melhor Produção Mato-Grossense”, segundo o júri popular na Mostra Audiovisual da América Latina (MAUAL) e “Melhor Ficção”, segundo o júri oficial na 3ª Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso com o curta-metragem Como Ser Racista em 10 Passos, de Isabela Ferreira, atuando como Produtor Executivo. Atende, também, pelo nome de “Palmirinha”.
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Domingo de Sol
Larô Exu, larô Exu
Mojubá Exu, mojubá Exu
Aos inimigos, keny ore amade kekere
Pelé, pelé, pelé ni
Exu dara dara, caminho, Exu dara dara, prosperidade
Exu dara dara, oô
Axé Exu, axé, Axé ô
Sempre Ajo, nunca Ejo, Exu
Axé Exú, Larô Exú
Mojubá papai, Mojubá
Embalado por palmas, essa é a abertura do samba. Mãos negras ajudam a dar o ritmo dessa, que é uma festa, mas poderia ser tratada como um ritual ou uma cerimônia, dada a assiduidade com que é feita.
Todo domingo, ela é esperada e não falha. Talvez é o que deixe a semana, que sempre é pesada, mais leve de ser encarada. A introdução, destinada a Exu, pede força e calma na caminhada; prosperidade, coragem e energia. Por isso, é cantada com tanto entusiasmo pelos pretos que sentem a ancestralidade todos os dias em suas costas.
O dia é quase sagrado. A cerveja molha as palavras; a risada e o samba alegram; mas, acima de tudo, dão perspectiva e, por algumas horas, fazem que todos esqueçam da vida dura hoje, que já foi rica, cheia de histórias e luxos.
Maria, por exemplo, diariamente, passa por coisas que o olhar comum não vê, mesmo sendo ele o causador do problema. Doméstica, ela domina a ciência da cozinha. Mistura os miúdos e as partes do porco com temperos naturais. Dessa alquimia, sai a feijoada, pontualmente, às 15h. Todo domingo.
Durante a semana, a filha de Dona Madalena que cuida e cozinha para seus irmãos e irmãs, suja as mãos para limpar a casa dos nobres, como ela chama os patrões. Frutos de famílias abastadas, educadas nas melhores escolas do Estado. Antes de entrar no casarão, construído com suor e esforço dos negros escravizados, Maria faz a oração pedindo força aos santos, que não falham. Cuidando dos herdeiros, por alguns momentos, relembra os sonhos de criança.
Sendo da primeira geração que pode crescer sem ter a escravidão como guia de sua vida, sempre se imaginava como professora. Enquanto permitia ser levada pelas asas de sua fantasia, a realidade batia em sua porta. Com pouco mais de 11 anos, já era responsável por, além de cuidar dos irmãos e irmãs menores, lavar, cozinhar e dar prazer ao patrão, de uma forma que a cabeça de criança, que era quase parte da família, nunca entendeu muito bem.
O domingo de samba é sempre um alento. Tanto para Maria, quanto para os outros homens e mulheres que saem de suas casas com destino ao terreiro de Mãe Mulenji. Nos fundos do terreiro, o clima quente se mistura ao de alegria e à tensão. Mãe Mulenji, Maria e todos outros presentes sabem que essa reunião é um afronte, que mantém as tradições, mas despertam preconceitos. Muitos ali já foram presos injustamente por tocar samba ou jogar capoeira. Por menos, também já viram muitos serem mortos. Em comum, a cor da pele. A passagem dos irmãos torna todos que ficaram ainda mais fortes.
A vida corrida e as dificuldades deram calos nas mãos e feriram a alma. A segunda é a pior e, por mais que o tempo passe, não cicatriza. Cada um com seus traumas, compartilham histórias, risadas e choros. Lembram de cada irmão e irmã que se foi, comemoram os que estão por vir e, no samba, descarregam alegrias e frustrações.
Enquanto o garfo bate no prato, a mão soca a porta. O som parou. A alegria deu um tempo. Para todos, o domingo terminou ali mesmo, ainda com sol. Para Maria, a segunda-feira não irá começar.