Um conto de Rafael de Oliveira Fernandes
Rafael de Oliveira Fernandes nasceu em São Paulo em 1981, é formado em Direito pela USP, escritor, autor dos livros de poesia Menino no Telhado, 2011, ed. 7letras, Cadernos de Espiral, 2014, ed. 7letras, e do romance Vista parcial do Tejo, 2018, ed. Patuá.
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Último dia de aula
Meu pai sempre foi muito rígido
Brigava comigo para ensinar-me a estudar.
Não era professor, era marceneiro.
Ainda assim, ficávamos noites a fio com os livros.
Ele dizia que era a única maneira de melhorarmos de vida.
Erros não eram tolerados. Havia sempre uma tábua à vista, ao lado da escrivaninha de madeira que ele construíra para que eu estudasse. A cada erro eu ouvia o barulho da tábua se chocando com a cadeira. Eu estudava e estudava. A vida não ficava melhor, pelo contrário. Não havia tempo para jogar bola, conversar com os amigos, para estar com o pai fora da sala de estudos. Ele aos poucos deixava de ser um pai, ao menos um parecido com os dos colegas da escola. Era uma figura amedrontadora. Sua presença constante era como a de Deus. Um Deus que via tudo, que castigava.
Eu aprendi a andar de bicicleta com a de um amigo. O pai parecia não se aborrecer quando caía e me machucava. Ele me ensinou a nadar em uma das poucas viagens à praia. Ia até a parte funda do mar e pedia que o alcançasse. De início eu não conseguia. Faltava-me o ar. Eu o amaldiçoava nas vezes em que poderia esticar a mão e não o fazia. Como nas noites em que estudávamos juntos, não havia elogios a cada avanço. Apenas críticas ou uma tábua de madeira que brandia a poucos centímetros de meu rosto. Eu demorei algum tempo para flutuar perfeitamente e alcançar o pai no fundo. Enquanto não conseguia, treinava escondido. Nos treinos, para não me afogar, usava uma tábua pequena, que para minha surpresa flutuava, que peguei de uma casa em construção, perto de nossa casa alugada. Era uma espécie de tábua de salvação.
Os estudos, e os sacrifícios, tornaram-se minha vida. Destaquei-me na escola. Não tive dificuldades em passar no vestibular mas não senti alegria alguma com o sucesso. Na época já quase não falava com meu pai que me culpava por estar sempre absorto com livros e preocupado com provas. Deixei a casa. E quando apareceu uma vaga na escola municipal do bairro para onde havia me mudado, foi natural candidatar-me ao cargo de professor de português.
Ali, aos poucos, passei a sorrir novamente. Parecia que depois de anos de trabalho poderia ajudar alguns jovens a encontrar seu caminho. Era dos alunos mais fracos que mais me aproximava. Passava tardes depois das aulas os incentivando. Sabia que boa parte deles tinha o estudo como único amparo. Nesses tempos, uma única vez voltei à antiga casa. Um dilúvio de proporções bíblicas praticamente destruiu a biblioteca da escola. A direção decidiu reconstruí-la mas quase não havia recursos. Lembrei-me das ferramentas de meu pai. Dos pedaços de madeira descartados no armazém. Eu o observara trabalhando muitas vezes. Sabia manejar um martelo. Auxiliei os pedreiros a construir prateleiras para a biblioteca. Trouxe alguns livros de meu antigo quarto e ajudei a repovoá-la com minhas leituras preferidas. Quando ela foi reinaugurada, e melhorada, tive a impressão de ser meu dia mais feliz.
Anos depois, surgiram os primeiros sinais do Alzheimer de meu pai. Eu já tinha um cargo de direção no colégio, mas pedi transferência. De início não foi fácil. Meu pai não se acostumava com minha presença. Os alunos demandavam demais minha atenção. Mas a diretora era uma antiga colega de classe. Aos poucos entramos em sintonia. Organizei meus horários. Passei a fazer grande parte das tarefas em casa. A cuidar do pai de forma eficiente. Todos os dias estive ao lado da sua cama como no passado quando exigia que eu lesse e fizesse centenas de contas.
Agora, contudo, ele quase não notava que eu estava ali. Ele se esqueceu primeiro de que o filho era um filho. Depois de que era um professor. Aos poucos, em função de estar a todo tempo a seu lado, me confundia com a figura de Deus e seus mensageiros. Quando tinha uma alucinação, por exemplo, confundia a leitura sublime do capítulo de um romance com uma reza. Às vezes confundia minhas broncas com a palavra de um sacerdote severo. Quase sempre porém, via no homem sem rosto que o carregava quando não tinha forças, que se parecia muito com seu filho, e ouvia suas injúrias sem rebatê-las, a imagem de um santo excomungado.
Foi nessa época, nessa escola, que conheci a Luciana. A professora de Geografia. Namoramos um ano. Nos casamos. E nos acomodamos na casa de meu pai para não abandoná-lo. Passei a ter mais tarefas, mais obrigações. Foi preciso contratar uma pessoa para me ajudar, para nos ajudar.
Conheci Alberto, o enfermeiro. Na verdade reencontrei-o através de um anúncio. Ele tinha 28 anos e embora eu não recordasse, havia estudado na escola em que eu dera aulas anos antes. Era muito comum que isso acontecesse. Havia muitas turmas em cada escola. Era impossível, ainda que desse atenção a todos os alunos, lembrar-me de todos eles. Eram muitas histórias. Às vezes me esquecia delas como meu pai se confundia. O aluno, o Alberto, além disso, havia se tornado um homem. Havia se tornado um pai. Depois um enfermeiro e um cuidador atencioso.
Alberto, de maneira diversa, se lembrava muito bem do professor que eu era. Disse que gostava de minhas aulas. Me fazia companhia ao final da tarde, quando tomávamos café. Tornou-se um bom amigo. Tinha um grande senso de humor. Era bom contador de histórias. E se lembrava, para minha surpresa, de algo que eu costumava contar nas últimas aulas de todos os anos letivos. Ele contou-me um dia enquanto tomávamos cerveja e meu pai ainda dormia. Era uma história sobre meu pai. Envolvia o fato de ser muito rígido. Não deixava de ser uma anedota. Ele a contaria para mim muitas vezes ainda. Deixa eu te contar também meu filho. Certo dia, eu estudava a Revolução Francesa. Meu pai estava ao meu lado, certificando-se de que eu não esqueceria nenhum fato importante, de que não confundiria nenhuma data. Mas eu estava muito cansado. Estivera estudando por muitas horas. Ele me deu uma bronca terrível quando confundi o dia da queda da Bastilha. Como eu poderia decepcioná-lo assim? Depois de tanto estudo! O fato ocorrera no mesmo dia do meu aniversário!
Ah sim, eu já te contei essa história, meu filho. Eu me lembro. Me lembro também de ter dito que eu me sentia tão pequeno no meu aniversário. É claro que não me esqueci disso. Não. Não era porque meu pai o esquecia. Nem porque ele apenas se lembrava quando estudávamos, quando eu confundia as datas da Revolução Francesa. Porque estou te contando esta história agora? Para te dar essa perspectiva. De como me sentia pequeno. Perante meu pai? Não. Perante a vida, acho…sua complexidade, sempre me senti assim. Se sinto a falta dele? Acho que sim, talvez um pouco. Ele foi um homem importante para mim, de certa forma. Não, não estou perdendo a perspectiva. O que disse? A história está um pouco diferente? Qual parte? Engraçado, acho que não mudou não. Bem, talvez tenha razão. As datas. Apenas isso. Agora que me lembrou acho que acabo de dizer que contava a história aos alunos no último dia de aula. Está certo, na verdade sempre te disse que contava aos alunos sobre o pai no início do ano apenas. Porque no início do ano? Tentava mostrar a eles tudo o que havia pela frente. Dar-lhes certa perspectiva. Mas essa forma, como lhe contei agora, era a maneira como o Alberto contava. Foi a forma que me veio à mente, acho. Ele contou a história a mim mesmo muitas vezes. O Alberto sempre me ajudou muito, eu me via nele, um pouco mais jovem. Tinha esperança de que se tornasse alguém melhor que eu. Ele foi, de certa maneira, durante um período tão difícil, minha tábua de salvação. Mas estou divagando não é mesmo? Voltemos ao assunto. O que eu dizia a você? As datas? Ah sim. Mudaram as datas, a história continua a mesma. Pode se apoiar nela. Acho que é por isso que estou te contando. Quero que a compreenda bem. Saiba que me sinto tão pequeno diante da morte. Ainda assim, não deixo de pensar que, mesmo agora, posso fazer algo por você… e por mim. Espero que não se lembre da data de minha morte, apenas dessa nossa conversa. Que ela sobreviva ao meu último dia de alguma forma, que minhas palavras continuem ressoando em seu espírito e sejam o início de uma pequena revolução para a gente. Não, não estou chorando. O quê? Como meu pai? Não, não deixei você corrigir as datas de propósito. Estou falando a verdade. E não se preocupe comigo. Não quero que fique todos os dias aqui no hospital. É certo que morrerei de forma confortável. Gosto do quarto. As enfermeiras cuidam bem de mim. Não, já disse que não estou chorando, acredite. Oh, desculpe, meu filho, eu não devo falar sobre essas coisas, eu sei.