Um conto de Rafaella Elika Borges
Rafaella Elika Borges nasceu em 13 de junho de 1995 e cursa Psicologia na UFMT. É autora da coletânea de contos Me LiterAtura, publicada pela Editora TantaTinta. Tem um conto publicado na coletânea Beatniks, Malditos e Marginais: Literatura na Cidade Verde e outro na antologia O Mistério das Sombras. Amante da cosmologia, ciência, filosofia, literatura, cinema, música e arte. Seu hobbie é ler os desejos e segredos mais obscuros das pessoas e depois publicá-los em forma de conto, ocultando a real personalidade dentro de uma personagem fictícia (até parece, diz a escritora).
O Coelho é um dos contos que integra Me LiterAtura.
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O Coelho
Era sábado, chovia muito, mas eu, realmente, precisava comprar uns livros de Direito Penal e lê-los, a faculdade estava me fodendo por todos os buracos e eu só tinha aquele final de semana para fazer três trabalhos.
Eu, realmente, precisava sair de casa naquela chuva.
Coloquei um coturno que aguentasse bem toda a água empoçada no meio-fio, uma calça jeans de cós alto que estava jogada na mesa e uma blusa preta de manga por dentro da calça. Peguei uma bolsa, dinheiro, o iPod e as chaves de casa. Apanhei um guarda-chuva e um ônibus, talvez voltasse de táxi, visto que molharia os livros se fosse embora no meio daquela tempestade.
Cheguei com a calça molhada só do lado esquerdo pela força com que o vento empurrara a água. A calça de jeans clara lavada estava mais escura só de um lado e isso fazia as pessoas notarem o fato de eu ter ido a pé até a livraria do Shopping Center. Senti um ar de vergonha pairar ao redor do meu corpo até conseguir entrar na livraria, que estava bem vazia para um sábado. Havia cinco pessoas espalhadas pelas gôndolas e dava pra ver só do nariz para cima de cada uma.
Fui direto para a seção de Direito e comecei a sondar os livros de que precisava para estudar. Duas tossidas fortes foram ouvidas por todos num ecoar bem incomodante. Voltei a me concentrar na pesquisa enquanto ouvia música e, aleatoriamente, fui até o final da gôndola ver se achava algo sobre Direito Penal e consegui avistar um cabelo loiro platinado muito longo na sétima fileira de gôndolas, acho que era Ficção Fantástica. Abaixei de cócoras para ver os livros de baixo e dei uma afastada da gôndola para tentar ver não só o cabelo dela. Estava com um livro meio aberto nas mãos, olhava capa, contracapa, meio e final, bem interessada.
Usava um vestido bege bem apertado nos seios e cintura, mas solto abaixo do quadril, era longo e de uma estampa muito alegre, mesmo sendo bege. Havia pequenas flores na barra e no busto. Estava com uma sacola jeans enorme escorada no ombro esquerdo e também parecia ouvir música, já que gingava levemente uma harmonia qualquer que só ela ouvia. De cócoras ali, com um livro enorme de Direito Penal nas mãos, metade da calça jeans molhada de um modo ridículo e com três trabalhos para fazer ao chegar em casa, e o que eu mais estava querendo fazer era tentar falar com ela. Talvez nos conhecêssemos, marcaríamos de sair e tudo mais, eu não precisaria ficar ali conversando. Mas eu, realmente, tinha de comprar os livros rapidamente e ainda chegar em casa e triar material digital.
Então, ela olhou, aleatoriamente, para mim, aleatoriamente para dentro dos meus olhos. Não conseguia enxergar muito bem, mas ela parecia ser bem sensual.
Fiquei sem reação com aquilo, afinal eu estava fantasiando coisas com sua pessoa naquele exato momento e em um ato totalmente aleatório ela olhou dentro dos meus olhos.
E riu. Com os lábios fechados, aquela risadinha sem graça que dá abertura pra você tentar fazê-la rir outra vez.
Eu levantei meio sensualmente – para certificá-la de que queria vê-la gemendo ao invés de só sorrindo sem graça daquele jeito –, apoiei os livros na gôndola, coloquei a mão direita na cintura e com a mão esquerda expus lentamente o lado molhado da calça clara com um sorriso refinado de aeromoça.
Ela riu novamente, colocando a mão direita na boca e o cabelo se movimentando com as pequenas gargalhadas.
Riu mais um pouquinho com a capa do livro nos lábios e levantou a barra do vestido florido. Estava com a perna direita engessada.
Eu fiz bico e uma cara de dó enquanto tentava levantar os dois livros de Direito na mão esquerda. Passei dois dedos na testa e suspirei terminando com uma “cara de bunda”.
Ela engoliu saliva e andou para dentro da gôndola com o livro ainda na mão.
Ocasionalmente, nos entreolhávamos.
Até que começamos uma dança de acasalamento, em que andávamos até o final da gôndola no mesmo ritmo, sempre rindo disfarçadamente. Brincando com nossos óculos.
Eu estava, realmente, louca para largar aqueles livros e levá-la pra casa. Deixá-la embevecida, dormente de tanto gozar à noite toda.
Estava quase saindo do meio das prateleiras para ir até lá cumprimentá-la e colocá-la dentro de um táxi que iria direto para minha cama.
Sentia meu corpo latejar, fervilhar minha libido. Já nos imaginávamos bebendo e transando em cima do material da faculdade. Já sentia meus dedos enrugados, todo o cabelo grudado pelo suor nas costas, e o lápis do olho umedecido e bem borrado.
Ela sorrindo, espontaneamente, enquanto eu chupava lentamente o indicador e folheava um grande livro.
Já não estava suportando passar todo aquele tédio de imaginar que, por um acaso, ela, talvez, não fosse a minha desculpa de protelar os trabalhos da faculdade.
Penso, logo desisto.
Um cara negro a abraçou por trás lascando um beijo em seu pescoço enquanto segurava uma rosa vermelha na outra mão. Ela o abraçou toda contente e começaram a conversar entretidos. Enquanto ele a puxava para o caixa, fiquei tentando medir o tamanho do papel de trouxa que eu havia feito.
Enquanto engolia à força minha seca realidade, ela voltou mancando até a seção que estava, pegou os óculos que havia esquecido e mostrou a capa do livro que comprara.
Alice nos País das Maravilhas.
Olhou por cima da gôndola diretamente para dentro dos meus olhos e foi ao encontro do parceiro na saída da livraria.
Metaforicamente, ela me deu um fora ou disse apenas para seguir o coelho?
Eu, realmente, precisava fazer aqueles trabalhos.