Um conto de Raíssa Varandas Galvão
Raíssa Varandas Galvão é graduada em História e doutoranda em Estudos Literários pela UFJF. Está há vinte e nove anos lutando com as palavras e amando até mesmo os momentos de nocaute. No momento trabalha na publicação de seu primeiro livro de contos.
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Como se os olhos atirassem à queima-roupa
O cara na tevê me lembra você. Fico atenta aos olhos e nariz que se assemelham tanto aos seus. Levo um susto com o estalo que a palma da mão dele emite ao se chocar com a face da mulher. Sinto arder na minha bochecha esquerda, ainda que eu permaneça do lado de cá da tela. Talvez sejam os lábios. Alguns minutos antes eu me sentia estranhamente atraída pelo rapaz em cena, a forma como a boca se movia durante as falas ensaiadas.
Minha cabeça faz associações estranhas e tenta tomar olhar por tapa, como se a violência dos olhos não se distinguisse daquela das mãos. Um olhar não equivale a um tapa. Ainda assim, sinto suas pupilas vazias queimarem o meu rosto como se aquele dia fosse nesse instante e como se eu assistisse, novamente, o muro de proteção erguendo-se sobre as suas retinas. Tão alta a murada de pedra que eu me sentia ainda menor. Tão cautelosamente construída que nenhuma fresta me daria acesso a você. Restava ficar ali, soldado inimigo ao lado da barreira, ou bater em retirada pela porta da rua, deixando a sua chave para trás e carregando o pouco que me pertencia: um colar recentemente recuperado, poucas notas amassadas na carteira e a placa de acrílico para tratamento da DTM que eu havia levado para passar a noite.
Disfunção temporomandibular. Nome dado pela dentista para explicar as dores e estalos da minha mandíbula. Ainda me parece estranho que eu precise de uma barreira entre os dentes para me impedir de quebrá-los durante o sono. Como se meus músculos permanecessem em vigília, preocupados em travar minha boca para que nada seja dito durante a vulnerabilidade do sonho. Sinto as articulações da mandíbula doerem nos últimos dias. As arcadas que mal conseguem se abrir para uma mordida. Inicia-se com um volume imenso bloqueando a faringe, cresce para as amídalas, infla a língua. Engulo antes que me escape por entre os lábios, o bolo raspando as paredes internas. Aperto os dentes.
Gostava quando você falava sobre o meu olhar. Porque os olhos têm sido minha parte preferida do corpo, mas ninguém nunca havia reparado nisso. Que minha mãe tenha dito que os meus fuzilam nos momentos de raiva não significa muita coisa, ninguém quer ser lembrado pelos tiros à queima-roupa diante do pelotão. Eu lembro dos seus olhos sobre os meus naquela festa, em um momento em que nada precisava ser dito para que eu conseguisse te entender. Como quando nos vimos na rua pela primeira vez e, embora não soubesse seu nome, eu tenha pressentido seu desejo de aproximação. Estou quase certa de que fazia frio, porque eu vestia uma meia-calça cinza, e de que você cumprimentou apenas a minha amiga.
Sempre me acreditei um pouco vidente por conseguir intuir a reação das pessoas. Nada semelhante às visões da infância: os vultos andando pela casa durante a noite, ou os pesadelos que descortinavam os perigos de uma vida passada. Apenas um pressentir dos sentimentos do outro. Uma coceira persistente por detrás de cada um dos meus pensamentos, que eu sempre teimei em ignorar por ser incapaz de distinguir intuição de transtorno obsessivo-compulsivo. Qual Cassandra amaldiçoada, não por Apolo, mas por mim mesma, condenada a sempre duvidar das minhas próprias predições.
A poeta Anne Carson, diante dos gritos de Antígona, relembra Hegel: a mulher como eterna ironia da comunidade. Antígona, a histérica. Cassandra, a louca. Na mitologia a fêmea é sempre sinônimo de ardil. Digo ao meu amigo que vou virar piada na mesa do bar. Toda mulher é sempre um caso engraçado a se contar. E tem mesmo graça certas coisas que a gente faz como levar à sério Vinicius de Moraes, andar atenta no transporte público, sentir-se desconfortável com o próprio corpo e acreditar que se é “feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor e para ser só perdão”. Tem graça não saber fazer um samba e se achar sempre culpada porque, afinal, o pecado original foi o que nos trouxe até aqui, nesse exato momento da queda.
Tento ler os padrões dispostos sobre a mesa, ainda que você tenha insistido em me privar de informações. Para não entregar o jogo, disse. Depois voltou a se calar, impassível diante da minha necessidade de decifrar algo seu, de compartilhar uma experiência mínima. Não grandes confissões, mas a impressão causada pelo filme em preto e branco na tela ou pela camiseta laranja de Frank O’Hara. Ou, ainda, partilhar “uma coca-cola com você”, que nós dois facilmente trocaríamos por duas canecas de café, enquanto a garrafa de coca permaneceria meses na sua geladeira. Mas você se cala e eu já nem me recordo se cheguei a te enviar aquele poema a despeito da sua insistência em não gostar de poesia. Você se cala e eu não posso reclamar, porque sempre andei com cautela, as botas aderindo ao asfalto, com receio de levantar poeira.
O silêncio é a mais sutil demonstração de poder. Mantém opaco aquele que silencia, inacessível ao olhar do outro.Toda leitura é uma invasão e você nunca quis se deixar invadir. Irônico que agora se aproprie do meu texto e que me faça recordar quea escrita é também um convite à intrusão.
Na minha história, Cassandra é expulsa das muralhas de Tróia por desejar saber demais. Justo quando você deu todos os indícios de que deveríamos permanecer apenas da superfície do corpo. A piada aqui é que a mulher quer sempre submergir.