Um conto de Ramon Barbosa Franco
Ramon Barbosa Franco (Paraguaçu Paulista 1979) é formado em Comunicação Social habilitação em Jornalismo. Quando do seu primeiro livro de contos, Contos do Japim (Carlini & Caniato: MT, 2010), convidou o romancista e contista paraguaçuense Adauto Elias Moreira para assinar o prefácio. Depois vieram Laurinda Frade, receitas da vida – em coautoria com a jornalista Silvia de Paula (Poiesis Editora, Marília: SP, 2010), A próxima Colombina (Carlini & Caniato: MT, 2014), Getúlio Vargas, um legado político (Carlini & Caniato: MT, 2015) e participação nas coletâneas de poemas da Confraria dos Poetas, de contos do Mapa Cultural Paulista de 2010 e do V Concurso de Contos Prêmio Prefeitura Municipal de Niterói, Rio de Janeiro, após ser classificado no terceiro lugar da competição nacional. Atualmente vive em Marília, onde trabalha como jornalista e assessor de imprensa. Desde o ano de 2013 é correspondente da Folha de S. Paulo. É casado com a paraguaçuense Ieda de Paula Ribeiro Franco, tem dois filhos Guilherme Miguel e Gustavo Eduardo.
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Cabotagem franciscana
“Larguem o Bahiano,
para que ele cumpra
a sua sina!”
Osório Alves de Castro (1901-1978)
Osório voltou do fundo da alfaiataria com a tesoura na mão. Se deparou com aquele homem segurando um exemplar de domingo do ‘Diário Paulista’. Usava um antigo, mas conservado, panamá. O chapéu, que era companhia comum nos passeios pela São Luiz a galopes do Richaço, estava bem surrado nas abas, mas se mantinha intacto e bem vistoso no topo. Preferiu fazer primeiro um gesto nobre, ao seu ar cosmopolita e de boas maneiras: tirou o panamá e só assim, de cabeça limpa, começou a conversar com o alfaiate carrancudo:
– Ainda é boa tarde, não? Com a permissão, é o senhor Osório Alves de Castro, sim?
– Boa tarde, ‘tá’ escuro assim por conta do temporal que deve cair já, já. Sim, o senhor acertou. Sou Osório e fico feliz e tranquilo em saber que o senhor é o Zé Geraldo, não é?
O visitante sorriu:
– Correto! Tinha a vaga ideia de que me conhecia de vista.
Colocou o panamá no balcão, folheou rapidamente o ‘Diário Paulista’. Como Osório já tinha notado, tratava-se da edição de domingo, que continha a resenha. O alfaiate pensou consigo: ‘Lá vem…’.
O visitante se aproximou um pouco mais e, calmamente, falou que lera o artigo na edição e que, apesar da franqueza de todas as palavras empregadas e pelo peso dos comentários bem elaborados, a crítica sobre ‘A quadragésima porta’ poderia ter sido publicada em qualquer um dos grandes jornais do Brasil.
– Osório, você não sabe o quanto sou grato por esta resenha! Muito obrigado, é por isso que aqui estou. Sua crônica poderia ser publicada em qualquer jornal brasileiro, traduzida para o inglês e ganhar as páginas da Life ou ser convertida para o espanhol e percorrer os campos da Andaluzia, os pampas argentinos e as ruas do México! Sabe, gostaria de lhe dizer isso pessoalmente por isso vim até aqui, na afamada Alfaiataria Rex!
Osório sentiu autenticidade nas palavras de José Geraldo, disse, então, para o visitante esperar um minuto. “Vou desligar o rádio e quero lhe fazer um pequeno pedido”, e dizendo estas palavras caminhou para o fundo da Rex, deixou a tesoura perto de uns manequins. Passou pelo amontoado de casimiras e da estante, que subia até o teto, retirou um livro. Voltou rapidamente e atravessou a portinhola que ficava no canto do balcão, apertou a mão do visitante.
– Vamos se ‘achegá’ lá para o fundo da alfaiataria, há umas cadeiras de descanso e posso passar um café novo para nós, se bem que pelo horário poderíamos abrir umas garrafas de algo mais forte e menos ‘católico’.
O escritor aceitou o convite e caminhou para dentro. Eles se sentaram, havia, então uma atmosfera que remetia à leitura, a livros, e ao universo da escrita. Uma pequena estante acomodava livros, periódicos do dia e velhos, alguns cadernos rabiscados e vários lápis. Osório viu que José Geraldo tirou uma carteira de cigarros de dentro do bolso do paletó, seus olhos notaram que o bolso apresentava um rasgo, pequeno, mas que poderia comprometer a roupa.
– Tire o paletó, vou acertar este ponto do teu bolso. Isso pode desfiar e vai lhe dar muita dor de cabeça ainda!
Zé Geraldo disse que não precisava se incomodar, que aquele paletó era o das aventuras com Richaço. Debalde, pois Osório persistiu. Mas antes, pediu:
– Por favor, autografe para mim – e estendeu um exemplar de ‘A quadragésima porta’ – Faço uma coleção de obras autografadas por seus autores, quero deixar de ‘herança’ para um dos meus meninos.
O escritor fez sua letra e dedicou à obra ao autor da melhor crítica lida sobre seus esforços literários. Osório iniciou o reparo no bolso do paletó do visitante. Carrancudo, mas bondoso.
– Sabe – disse o visitante – o seu ofício é muito, mas muito mesmo, parecido com o meu.
– Ah, sim. Também escrevo por aí. Só que ainda estou inédito, no prelo, como se diz.
– Não, Osório, não me refiro à escrita: nela somos idênticos. Escritor, pelo que aprendi ao longo de todos estes anos, independe de editora: escritor, Osório, escreve com a alma e imprime com o coração. Sei que é meio piegas, mas é a pura verdade. Tu és escritor, Osório. Digo a semelhança com que faz com a tesoura, a agulha e a linha: você costura casimiras, corta fazendas e transforma retalhos. Eu costuro, corto e transformo retalhos também, mas ao invés de tecido, tenho como base outra textura, a do corpo humano. Sou médico, Osório.
Os dois riram. Osório olhou para a sua alfaiataria e depois para o jornal nas mãos de Zé Geraldo:
– Sabe que o Hipólito José da Costa disse sobre a chegada da imprensa no Brasil?
– ‘Tarde, desgraçadamente tarde!’ – respondeu Geraldo.
– Pois, é assim que me sinto: tarde, desgraçadamente tarde para me tornar um escritor publicado. Cedo, desgraçadamente cedo para desistir das minhas convicções comunistas. Tenho tantas ideias, mas me falta a oportunidade de apresentá-las ao público. Não mal digo este chão, que me deu casa, comida e trabalho, mas este isolamento cultural… Aqui, Geraldo, me sinto encalhado, feito uma barcaça que dorme agonizando no leito raso do São Francisco, fincada num ‘bancão’ de areia, com água ralinha roçando-lhe o casco.
Osório falou mais. Geraldo escutou, com paciência e solidariedade. “Sabe, Geraldo, a gente é o que a vida nos permite ser. Nem sei se é uma ideia original minha, mas é isso mesmo. Você, Geraldo, é um escritor publicado, lido aqui em Marília e lá em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, entende outros idiomas. Eu, sou apenas um baiano, um baiano meio tietê. Entendo um pouco das letras, porque gosto e me faz bem, relembro os ABCs dos baianos, aqueles que os cegos declamavam nas barrancas do São Francisco, vendo as barcaças na sua sina de cabotagem, a cabotagem franciscana. Fiz cabotagem franciscana, hoje faço cabotagem tieteana. Você, Geraldo, é rio de fora, rio de mar. Eu, sou rio de dentro, feito o Tietê”.
– Mas Osório – repeliu Geraldo – rio é rio, sendo rio de fora ou rio de dentro: todos vão dar no mar, onde nascem e onde morrem.
Anos mais tarde, após esta conversa, Osório foi publicado. Geraldo assumiu vaga na cadeira de Monteiro Lobato, escreveu outras tantas quadragésimas portas. O mesmo Osório que se tornou lido em ‘Porto Calendário’, se tornou um voluntário da pátria, se tornou um rio. O rio que passava pela aldeia de sua literatura. Um dia, Osório virou o São Francisco e suas cinzas lá permanecem flutuando até os dias de hoje, feito os ‘caboquinhos’ que podem tombar um bote, feito as gotas de água que roçam os cascos das barcaças encalhadas. Mas, antes de Osório virar rio e livro, ele viu mais. Viu seu porto se transformando num jabuti, o do ano de 1962.