Um conto de Regina Ribeiro
Regina Ribeiro contribuiu em diversas revistas literárias, como Germina, Gueto, Ruído Manifesto, Zunái. Foi colunista do blog da editora Kotter, pela qual lançou seu primeiro romance, Ignóbil, em 2021. É professora de filosofia na França, onde mora há dez anos.
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A OUTRA MÃE
Ficou em dúvida se pegava o social ou o de serviço. Pôde escutar os gritos e a correria das crianças quando ainda estava subindo. Perguntou-se se deveria tirar a máscara.
A porta se abriu assim que pisou no corredor. Atrás dela surgiu, não as crianças, mas a mãe, Letícia, que exibia em cada um dos trinta dentes branquíssimos e simétricos uma felicidade genuína. Pudera, dividiram uma filha. Dividiram uma filha e essa é uma relação para a qual os dicionários não têm nome.
— Bea! Quanto tempo! Letícia a abraçou.
O menino mais velho apareceu logo em seguida.
Amava o menino mais velho, mas não era seu filho. Quando chegou já era grande, de modo que não o embalou no colo enquanto ele fazia cachinhos numa das mechas do seu cabelo nem o ouviu sussurrando que tinha sorte por ter duas mães. Não, a menina era sua única filha.
No início, Letícia ficou com ciúmes. Achou que pagaria por trabalhar tanto, perdendo a própria cria para outra mulher, uma mulher que não pariu, mas que testemunhou cada uma das suas conquistas, os primeiros passos, a saída da fralda, os dentes de leite e o primeiro que caiu. A mulher que colocou o primeiro dente caído debaixo do travesseiro dela e, durante a noite, trocou por uma moeda. A mulher que conhecia a menina mais que ela mesma, conhecia seus rituais, a temperatura da água do banho e a do leite, que esteve lá por ela em cada gesto, que aguentou com paciência sua teimosia e suas violentas crises de choro.
Letícia arranjou mais tempo pra passar com os filhos: percebeu que não tinha o que temer porque sua menina tinha tanto amor pra dar que não precisava fazer escolhas. Não estava submetida às mesquinharias dos homens nem aos seus amores propriedade privada. Amava espontaneamente quem cruzasse o seu caminho. Especialmente as duas mães. Uma, abandonada pelo marido e tendo que trabalhar o dia todo para sustentar família. Outra, contratada, sem filhos nem marido, dedicada apenas aos frutos de outros ventres.
O menino pegou Bea pela mão e a conduziu até a sala onde a mesa estava posta com quitutes elaborados, milimetricamente arquitetados, o formato quadrado com uma bolinha do tamanho de uma cereja por cima, o que fez Bea pensar na expressão « cereja do bolo ». Para beber, refrigerante e vinho.
— Encomendei num traiteur que tá bombando — explicou Letícia — Não tenho coragem de cozinhar pra você não. Aliás, a gente morre de saudade da tua comida.
O menino concorda:
— Lembra, mãe, quando a Bea fazia nega maluca?
Bea pensa que hoje não é dia de nega maluca, é dia de comer como gente bacana.
A única vez que ela e Letícia comeram juntas, apesar de dividirem uma filha, foi quando Letícia tirou dois dos dentes sisos que tinham crescido dentro da gengiva e que empurravam todos os outros. Consequentemente, a mordida começou a ficar torta, o que era um desperdício dos longos anos durante os quais exibiu um sorriso metálico. Ficou de atestado e Bea fez sopa de lentilha batida. À mesa, percebeu que Letícia estava sem jeito. Dividiam uma filha, mas tinham pouca intimidade.
Bea esperou que o menino pegasse o primeiro salgado, não queria parecer gulosa ou mal-educada. Não queria que pensassem que era uma morta de fome, apesar de ter recebido um salário pra cuidar da filha.
Os quitutes eram recheados com carne seca. A carne estava dura. Bea não disse nada, apenas mastigou, mastigou até os músculos da mandíbula ficarem doloridos.
Aí a menina que amou como se fosse sua surgiu timidamente de trás da porta, primeiro um pé, depois uma perna e de repente o corpo todo. Andou devagar em direção ao grupo sem coragem de olhar para frente, como se não acreditasse que a segunda mãe realmente existia, como se tivesse começado a crer que essa mãe postiça era mais uns dos frutos da sua imaginação, um dos sonhos vívidos da primeira infância, daqueles que há pouco tempo aprendeu a distinguir das coisas que existem realmente no mundo material. Não podia explicar tudo isso assim, em tantas palavras. A única coisa que conseguia conceber era que a mãe postiça realmente existia!
Estava maravilhada.
Viram-se pela última vez há pouco mais de dois anos. Depois, as máscaras, o álcool gel, as quatro paredes e todas as suas manchas. Entretanto, para uma criança da idade dela, dois anos é um terço da vida, é muito, especialmente nessa fase em que vinha perdendo muitas coisas, as visões, os sonhos lúcidos, as alucinações, para se adaptar à lógica dos adultos. Começava a fazer certas distinções, o visível e o invisível, o real e o imaginário. O cérebro ia se transformando, o mundo se limitando.
Isso se traduzia também na aparência. Para a mãe substituta estava irreconhecível. Fixou a menina durante toda a visita como se procurasse naquela criança bem-falante, a menina que tinha ninado e que ainda falava pouco e errado. A menina que não foi feita da sua carne nem da sua pele, mas a quem dedicou uma devoção tal que só uma mãe. O mertiolate, o band-aid, a colher de mel.
— Ela cresceu, não cresceu? perguntou Letícia.
Esticou. Não tinha mais a barriga de passarinho, agora estava toda fina, desengonçada. Os dentes de leite tinham caído, dando lugar a dentes permanentes. A nova dentição acabou modificando sua arcada e, consequentemente, o seu rosto de maneira a expulsar o bebê que tinha sido um dia. Não encontrava nenhuma dificuldade em mastigar a carne dura dos quitutes.
Bea pensou que com os dentes, a menina poderia se defender de qualquer mal que viesse assombrá-la, podia até morder o monstro debaixo da cama, mas o monstro debaixo da cama não lhe incomodaria mais, pois dizem que tem medo de dentes. Falou isso para a menina, que riu, escancarou a arcada fazendo com que Bea se desse conta que a menina, — que mal conhecia — não precisava de duas mães, uma só bastava. Ao ir embora, disse que avisaria quando estivesse na cidade.
Saiu de lá sabendo que nunca mais se veriam.