Um conto de Regina Ribeiro
Regina Ribeiro se formou em Comunicação Social e publicou em diversas revistas literárias no Brasil antes de ir para Paris, onde se graduou em Filosofia pela universidade Paris-Sorbonne. É mestre em História de Filosofia, Metafísica e Fenomenologia e professora de filosofia em um lycée na França. Seu primeiro romance, Ignóbil, será publicado em 2021 pela Kotter.
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A fábrica de presunto
Comprou cerveja na pane e tomou um gole pra colocar as ideias em ordem. Era o primeiro dia no trabalho novo, puta que pariu, queque tinha que ter ficado de porre, bebendo com um povo nada a vê num bar de merda, daqueles com mesas amarelas de plástico da Skol, clientela mal encarada e a dona, uma tiazinha bizarra ? Passou pra ver a namorada e de repente já tava lá, contando as anedotas, puta merda, que vergonha. Aí teve aquela vaca da amiga da namorada. Uma menina de óculos de aro grosso e vestido florido, com pêlo até debaixo do braço. Uma babaca. Ela. disse. algo. que. não. desceu. Xingou ela de vaca pra baixo e aí o bar todo contra, defendendo a guria, uns tipos segurando e jogando pra fora e a namorada perguntando se não tava cansado de ser o idiota da cidade.
Veja o que você se tornou, o palhaço do bar, ela despejou.
Ia pros bares quase todo o dia mesmo, mas fazia o povo rir, não fazia? Talvez fosse essa sua missão na vida, trazer alegria, não? Mas ela: alegria? Eles riem nas tuas costas. Você conta toda vez as mesmas piadas, é um fracasso total.
Merda.
Enquanto dirigia para a fábrica, olhava o estado do carro. Tinha dormido nele nos últimos dias e não dava pra dizer que tava um brinco. Tinha umas vinte garrafas ali, de cerveja, vinho, cachaça, uma inclusive pela metade, tinha guimba de cigarro, tinha pacotes de chips e roupa suja. O fedor de urina causava um leve enjoo, bebeu mais um grande gole da cerveja pra afastar a ressaca. Depois do expediente ia lavar o estofado, isso era certo.
Estacionou e andou até os grandes galpões metálicos. O tipo ontem já tinha explicado tudo. Entrava, se dirigia ao vestuário e depois batia o ponto. O mais legal é que tinha primes para os minutos em que trocava de roupa. Ia ganhar por isso. Não muito, mas qualquer trocado fácil já fazia feliz.
A roupa.
A roupa era plastificada, branca, cobrindo todo o corpo. Pensar na roupa causou um grande mal estar. Algo. que. foi .dito. ontem. No bar. Antes de toda a confusão. A memória quase voltou, mas o tipo, o mesmo do dia anterior, tava esperando. Torceu pra que não sentisse o cheiro de álcool, mas foi só se aproximar pra notar que esse não seria o problema. O cheiro ali era sangue e morte.
O tipo dava as instruções de como colocar primeiro a calça assim, pra depois enfiar a blusa assado e todas essa viadagens. Foi só quando tava vestido que lembrou do que aquela vaca quatro olhos esquerdista mal comida falou. Tava contando como tinha sido a visita à usina pra namorada, contou da roupa e do prime pra vestir a roupa e a intrometida soltou essa
« Mas o dono da empresa fica com os milhões e não se suja »
e depois deu risada da própria piada. Jênia. Esses esquerdistas acham que inventaram a roda, sempre com essas observações óbvias, a vaca nem sabe o que é ter que ganhar a vida, nasce num berço de ouro, depois vai para faculdade e fica fumando maconha por quatro anos e acha que tem uma visão mais larga que a pessoa que tem que batalhar o pão de cada dia no mundo real. Acha que porque votou em um torneiro mecânico que fodeu o país entende a situação de quem tá do outro lado. O dono da fábrica não se suja. Que agudeza de visão!
O tipo mostrou os últimos detalhes e aí fica lá, ao lado de seus novos companheiros de trabalho, numa cadeia infinita. O porco passava e eles só tinham que descer a manivela. Moleza! E não era mal pago não.
Vem porco e desce a manivela e pá!
Vem porco e desce a manivela e pá!
Vem porco e desce a manivela e pá!
Vem porco e desce a manivela e pá!
Vem porco e desce a manivela e pá!
Vem porco e desce a manivela e pá!
Aiiiiiii
Um tipo reclama de tendinite e tira todo mundo do estado de torpor embalado pelo barulho dos porcos passando pendurados. O lugar é sufocante. O cheiro de sangue e morte. A luz artificial. Faz os cálculos. Chegou ainda era noite e, quando sair, vai ser noite de novo. Será que têm direito a uma hora de caminhada no sol? Merda, e a vontade de tomar um trago que tá dando.
A essa altura, a roupa dos companheiros já não é branca -mas o dono da fábrica está provavelmente num escritório espelhado num arranha céu no centro da cidade vestindo terno e gravata e bebendo scotch. Isso não é vida, meu Deus. Precisava beber algo, senão não sobreviveria ao dia. Aquela. cachaça. no. carro.
No intervalo diria que esqueceu os cigarros. Aproveita e toma um trago. O carro tá nojento, mas agora já não cheira a mais nada. O cheiro de sangue e morte impregnou as narinas. A roupa. A pele. O sol branco do inverno na cara. Toma mais um pouco. Sai do carro com a garrafa e senta no capô. Aquela. Vaca. Palhaço da cidade. Sei.
Tinha que parar de beber. Ia virar homem sério. Iria ficar sóbrio, frequentar o AA, ficar limpo mesmo. Vida nova. Limpo mesmo. Viria trabalhar sóbrio, viria todos os dias, sóbrio, e sóbrio viria todos os dias cortar presunto sóbrio. Viria sóbrio e ia descer a manivela todos os dias. Ia fatiar os presuntos e descer a manivela sóbrio. Homem. Sério. Palhaço da cidade. É nada. Acordaria cedo e viria sóbrio e aí cortar presuntos. Descer a manivela uma, duas, três, quatro, cinco, centenas de vezes por dia. Com a roupa de plástico. E sóbrio. Passar a vida cortando porco. Descendo a manivela bem sóbrio. Esvaziou o resto da garrafa. Entrou no carro e deu partida. Para. bem. longe. Não, não precisa ser tão longe.
O bar de mesas amarelas agora serve.