Um conto de Rodrigo Novaes de Almeida
Rodrigo Novaes de Almeida é escritor e editor. Carioca, reside em São Paulo. Em novembro de 2016 criou a Revista Gueto, portal de literatura que publica, divulga e lança escritores e poetas em língua portuguesa. É autor do livro Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), do qual este conto abaixo foi extraído.
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[brecha]
Meu avô paterno nasceu em Kumrovac, na época território do império Austro-Húngaro. Chamava-se Franjo, mas quando partiu para os Estados Unidos trocou seu nome para Frank. Ficou lá apenas dois anos, logo após a primeira guerra, e veio para o Brasil. Manteve o Frank. Já minha avó, esposa de Frank, nascida Marija na vila eslovena de Podsreda, desde que passou a morar na vila da fábrica de cimento no Engenho de Dentro, escolheu ser chamada de Maria, porque abominava ser chamada de Marilha pelos nativos. Meu pai se chamava José na certidão (e Josip em casa) e morreu muito jovem durante uma greve na fábrica. Ele era anarquista no final da década de 1930 e tinha apenas dezenove anos. Quando morreu, eu não era gente ainda, mas espécie de cancro mole na barriga da minha mãe, mãe aos dezesseis anos que não foi viúva de meu pai, expulsa de casa pelo seu, um avô que não conheci, brasileiro, e de quem não lembro o nome. Acho que mamãe me disse uma vez. Ela preferia me contar a história da família do meu pai, a quem nunca deixou de amar. Minha avó materna se chamava Elsa, era cristã-nova portuguesa. Também não conheci, mas mamãe diz que ela me conheceu muito pequeno e me segurou no colo uma única vez, as duas escondidas, antes de mamãe e eu partirmos para o Chile. Penso essas coisas agora porque sonhei com um pai que nunca tive. Estou há pouco mais de uma hora sentado no sofá, sozinho em meu apartamento, a tevê desligada, o controle remoto na mão esquerda, o relógio na parede marca três da tarde — eu ia levantar para fazer o quê? Levantei para ver se tinha deixado o fogo aceso na cozinha, não era o fogo. Voltei, sentei no sofá — o que eu ia fazer? Às vezes acontece, a gente vai fazer alguma coisa e no meio do caminho não lembra mais. Eu dormi no sofá e tive um sonho lúcido. São três horas da tarde e estou vestido com um ridículo pijama de flanela. Faz muito frio, estamos em julho. É o meu pijama ridículo mais grosso. No único retrato do meu pai que resistiu às intempéries de nossa família, que fomos a vida inteira apenas mamãe e eu, ele usava um bigode fino. Parecia buço, na verdade. Tenho hoje mais de quatro vezes a idade que meu pai tinha quando morreu e o dobro da de mamãe, vencida por um câncer de colo do útero aos quarenta e dois anos. Eu seria avô daquele garoto anarquista estúpido, mas ele no sonho não era aquele garoto. Eu era o garoto, eu era de novo um jovem, e meu pai, sétimo filho de Franjo e Marija, era um homem feito, duro, porte militar, e os olhos tinham algo de fanático, eu olhava aqueles olhos assombrado e amava o homem, e, o que era mais terrível, eu sentia saudades dele. Ele me contou que seus pais não conseguiram fugir da guerra iminente para o novo mundo, que todos passaram fome na Europa e que ele saiu de casa para trabalhar como maquinista em Sisak. Lá ele se envolveu pela primeira vez com o movimento operário (e eu pensei que certas coisas realmente não mudam, não importa o mundo em que estamos, não importam quais brechas atravessemos, certas coisas realmente não mudam, seja o meu pai do Brasil, seja o meu pai da Croácia). Depois entrou para o exército Austro-Húngaro, ele prosseguiu sua narrativa, tornando-se sargento e servindo no vigésimo quinto regimento croata, com base em Zagreb. Contou-me que fez propaganda pacifista logo no início da primeira guerra e foi preso. Ficou um tempo na fortaleza de Petrovaradin. Mais tarde foi enviado à Galícia para combater os russos. Aí algo dos sonhos, mesmo os lúcidos, aconteceu. A incoerência. O pacifista destacou-se em batalha, tornando-se o mais jovem sargento-major daquele exército. Mesmo assim, foi capturado e levado para os Urais, para um campo de trabalhos forçados. Meu pai anarquista foi então eleito o líder dos prisioneiros. Veio a revolução e, libertado, se uniu aos bolcheviques e lutou com eles. Voltou à sua terra, viveu na ilegalidade, adotou nomes falsos, tornou-se membro do serviço secreto soviético antes de estourar a segunda guerra, recrutou soldados para lutar contra Franco na guerra civil espanhola. Depois, quando seu país foi invadido pelo exército de Hitler e suas lideranças fugiram, inclusive o rei Pedro II, meu pai e seus colegas tomaram para si a tarefa de libertação nacional. Eles foram chamados de partisans e operavam atrás das linhas inimigas. Eram a resistência ao nazismo. Eles criaram as brigadas proletárias, ajudaram na fuga de judeus e tiveram judeus lutando ao seu lado. Mataram e empalaram nazistas por todo país. Filho, me falou ele, sobrevivi e não deixei descendentes, enquanto o rapaz de dezenove anos nesse seu retrato morreu e fez você. Encontrar você, portanto, me dá certa tranquilidade insólita. Veja, eu morrerei logo, já perdi uma perna. Estou velho e muito doente. Obrigado por estar aqui comigo. Agora vou colocar esta faca na sua garganta e você vai dar um grito seco e acordar, porque é dessa forma que são reabertas as brechas para se escapar de sonhos lúcidos — eu ia levantar para fazer o quê? Levantei para ver se tinha deixado o fogo aceso na cozinha, não era o fogo. Bebi um copo de água. Acendi um cigarro e voltei para o sofá. Toca o telefone. Atendo. “Alô? Tito, querido, é você?”