Um conto de Rosa Morena
Rosa Morena nasceu em Itapipoca (CE). Graduada em Pedagogia. Lançou os livros: Movimentos Intransitivo (2015), Jaci, a filha da Lua (2016), Pedro, o menino do mar (2018), Micropoemas (2018) e A menina e a garça (2019). Em 2019 recebeu o 1º lugar no XXI Prêmio Ideal Clube de Literatura – Prêmio José Telles. Ainda em 2019, foi selecionada em trabalhos inéditos no Prêmio de Literatura Unifor e lançou A menina e a garça.
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Perversos são seus olhos
Estava na varanda, olhar repousando na memória. Não imaginava voltar àquela casa. Ouvia na morbidez do jardim, os gritos da minha mãe e os gritos do papagaio em suas repetições. Era seca e áspera. Bendito aquele papagaio que me impedia de ouvir todas as palavras dela.
Quando meu irmão queria dormir na minha cama, já sabia que estava brigando com o meu pai. Recostava-se no meu corpo, trêmulo. Roía as unhas, soluçava e não por acaso, o colchão amanhecia úmido. Escondia para que ele não recebesse mais um castigo.
Naquela tarde me pareceu mais alegre. Saiu levando um brinquedo novo, queria mostrar aos amigos da escola. Nunca tinha algo para mostrar. Ela gritou para que ele não perdesse o brinquedo. “Custou uma fortuna para o seu pai”, repetia. Como de costume, começou a roer as unhas em movimento frenético. Voltou e deixou o brinquedo sobre o sofá. Em troca saiu carregando a sua tristeza habitual. Por que minha mãe o castigava tanto? Não compreendia. Comigo exercitava a sua indiferença, com ele, a sua perversidade em forma de castigos e ódio nos olhos. Nunca nos abraçou como faziam as outras mães, nunca comparecia as reuniões da escola. Aquelas lembranças ainda me atormentavam. Ter que voltar àquela casa depois de tantos invernos me incomodava. Polifonias a arranhar a minha pele.
Passava da hora dele chegar da escola, não chegou. Comecei a ficar preocupada, ela não. Lavava a louça com o rádio ligado e cantarolava desafinada.
Voltei a olhar o jardim que estava morto. Ela cuidava bem das plantas. Só das plantas. Tento interromper os pensamentos. Fecho a porta da casa e saio pela rua vazia. Em vão, pensamentos me acompanham. Novamente o papagaio. Um suor frio me percorre, exatamente como naquele dia.
Temendo que meu pai chegasse e não o encontrasse, ela, vai até a escola. Volta sem notícias e com a tranquilidade intocada. Meu pai o procura, como de costume, para pedir-lhe café. “Não voltou da escola, deve estar na casa de um amigo”, diz. Ele se altera. Sai e bate a porta com tanta força, que me apavoro. O tempo da espera é feroz, corrói minhas artérias, até que meu pai abre a porta trazendo-o pelo braço. Alma nova até que ela o pega pelos cabelos. Intercedo sem me dar conta de minha fragilidade. Ela o arrasta para o quarto. Não chora, não rói as unhas, tampouco diz uma palavra diante dos gritos. “Por que fugiu seu capeta dos infernos?”, repete o papagaio. Os olhos dele estão distantes. Porque não percebem. Sofro. Ela tem ódio nos olhos, mas não o bate, coloca-o de castigo e serve o jantar cantarolando.
Espero-o sei que está com medo, mas não aparece. Adormeço.
Acordo com os gritos: “A culpa é sua”, diz o meu pai, segurando os seus cabelos e indo para a sala de estar. Desespero-me. Busco-o. Não está no quarto, vou até o quintal, ele tem seus esconderijos. Não está em nenhum deles. Os gritos são mais estridentes. Ela chora. Ele está sobre o telhado, com o brinquedo nas mãos. Olhos distantes. Grito para que desça. Não me ouve. Fica de pé e caminha sobre as telhas, até atingir o vazio.
Na rua sou atropelada por uma buzina, deixo cair a chave da casa e sigo.
Pela primeira vez a vi abalada, mas já era tarde.