Um conto de Rosane Cordeiro
Rosane Cordeiro é uma Mané de alma, coração e certidão de nascimento. Publicou pela Insular, em 2014, o livro de crônicas Teatro do Cotidiano, e tem, no prelo, também pela mesma editora, Olhares Cotidianos. De choros e velas: o feminino em verso e prosa é um livro para quem não teme o feminino sufocado em cada ser humano que necessita, mais do que nunca, de igualdade e justiça sociais. A autora tem publicado também em jornais e revistas da Academia São José de Letras.
O conto abaixo faz parte do livro De choros e velas: o feminino em verso e prosa.
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Erva daninha
Último dia frio de inverno. O termômetro marcava sete graus. A geada cobria os campos, os pastos, os pinheiros. Como nunca antes, a lenha queimava no fogão. Ela preparava-se para aquela noite que – segundo previsões – chegaria perto de zero. Tinha que sair dali o quanto antes. Para onde?
Agachou-se e ficou a observá-lo. Era um homem razoável. Tinha cara de macho. Ele era sempre apenas um corpo, tinha alma de cão sarnento. Aproximou-se dele e sentiu seu bafo sobre o rosto frio. Bateu nele com gosto, deu-lhe uns tapas na cara, chutou-o e voltou a si. Distanciou-se e, ao levantar viu, no chão, o facão que ele havia deixado cair. Sentiu um calafrio. Estava mais frio. Abaixou as mangas arregaçadas e dirigiu-se ao banheiro. Lavou as mãos sujas de tudo. Voltou à sala, onde ele estava inerte, um santo homem. Mudo. Surdo. Vulnerável. O facão sorria-lhe vermelho. Juntou-o, apoiou-o em uma mesa e sentiu ainda mais frio. Havia pouca lenha. Deitou-se ao lado dele. Acalmou-se. Nunca se sentiu tão bem ao lado do marido. Ex-marido.
Teve vontade de morder cada uma das partes daquele homem, na verdade, um desconhecido desde sempre. Queria chorar, mas há muito não havia lágrimas para sentimentos alheios aos seus. Queria de volta o que lhe haviam tirado aos 14 anos. Lembrou-se da mãe dizendo que casar com aquele homem seria uma bênção. E foi, do diabo. Estava frio. Que diabos de fogão que não esquentava mais?
Nem sempre recordar é viver. Recordou o dia que chegou naquela casa, era final de julho e estava tão frio. Tremia de frio, de medo, de dor, de saudades da adolescência que lhe foi roubada. Deixou as bonecas de pano que havia feito com a amiga Jô, apagaram-se os riscos da calçada, onde, quando voltava da escola, pulava amarelinhas com os poucos amigos que tinha. À escola nunca mais voltou, sentia saudades dos professores e dos amigos de sala. Lembranças boas transformaram-se em cinzas como os tocos de madeira no fogão a lenha.
Ouvia dizer que as meninas da cidade faziam festas de 15 anos. E o que foram seus 15 anos? Ele tinha quase o dobro de sua idade. Era um agricultor, proprietário de uma pequena terra que herdara de seus pais. Arava o terreno, plantava, cuidava, colhia. Ela sempre sonhou em ser regada como o bouganville roxo do quintal de casa. Ela, no entanto, não dava frutos, nem flores. Perdeu a conta de quantas vezes foi surrada: sangrou como uma porca velha. Sem atendimento médico, sem família, sem algum tipo de carinho. No corpo restavam-lhe marcas da dor. Mas a lembrança doía mais. Teve o braço arranhado, a cabeça cortada, teve alguns dentes quebrados. Mas a lembrança doía mais. Nunca teve de volta uma palavra de perdão ou carinho.
Aquele seria o último dia de desgraça na sua vida. Ao longe o sino da igrejinha da cidade soava o início da missa. Era o horário que ele chegava em casa. Viu pela janela que ele estava com o facão na mão. Naquele dia ela o esperava, atrás da porta, com um pedaço de madeira. Como quem mata uma barata, deu-lhe uma única pancada na cabeça. Não restou a ele tempo para nada. Caiu morto no chão. O sangue escorria feito cachaça amarga. Não aguentava mais o frio.
Era tarde, não havia mais lenha em casa. Olhou-o e resolveu torná-lo um marido mais útil e protetor, ao menos uma vez na vida deveria aquecê-la. O homem que lhe tirou a vida não a teria mais. Para que se a morte e a vida eram para ela apenas um ponto de vista. Pegou o facão e cortou-o como uma erva daninha em muitos pedaços. Jogou-os um a um no fogão. Por último jogou as roupas encardidas de terra, de suor, de sangue, de ódio. Viu a falsa aliança derreter-se e misturar-se às cinzas.
Adormeceu e acordou no outro dia encalorada. Seguiu sua rotina, preparando o café da manhã no fogão a lenha. Limpou a casa, tomou um banho e seguiu em direção à cidade. Os sinos da igreja soavam forte, era hora da missa de domingo. Levantou a cabeça há muito encurvada, olhou para frente e entrou na delegacia com a certeza do dever cumprido.
Ao ser encaminhada ao presídio, nunca, nunca se sentiu tão livre.