Um conto de Samuel Severino
Samuel Severino é um contista amador, natural de Recife, Pernambuco. Influenciado pelos filmes Slashers dos anos 80 e pela bibliografia de Stephen King, Samuel sempre foi um amante de terror, suspense e drama. Dono do Blog ‘Cinema Mudo’, o mesmo escreve críticas de filmes clássicos. Cursa atualmente, o último ano do ensino médio. A revisão do texto foi feita por Mayara Litera.
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CAPÍTULO I
O dia 9 de fevereiro é o 40° dia do ano. E faltam ao todo 325 dias para acabar o ano. Em anos bissextos são 326; e em horas são 7.800. Naquele dia, o bairro dos Prazeres estava calmo por ser ao certo, 5h25 da manhã. Cruzando a pista vinha cambaleante e insone a cadela da rua, a qual (não se sabe ao certo) chamava-se Baleia. Idosa, a cachorra tinha 15 anos de idade e era da raça salsicha. Já não trazia mais nos pelos, o marrom brilhoso da sua mocidade. Os pelos em si não se encontravam ao todo, o pouco que restavam, ostentavam um cinza fosco e sem vida.
Baleia andava pela praça do bairro farejando um cheiro novo. E com a sua cegueira, sabia que podia confiar no seu olfato preciso, pois logo a frente, sentiu um cheiro acre de sangue. E pela primeira vez na vida, ela sentia o sabor de sangue fresco que escorria do corpo que logo ela descobrira no meio-fio, na frente de um cortiço esverdeado, agora com o verde forte e escuro de sujeira de anos. A cadela não poupou latidos quando sentiu o cheiro daquele corpo, que se atirou há pouco do viaduto encontrando no chão, a paz do sono eterno. E pouco importa o motivo, se era cedo demais para isso, quem poderia julgar certo ou errado já tinha ido embora quando aquele pescoço branco se partiu num mergulho perfeito naquele mar calmo de concreto e grama baixa.
Às 5:30, as luzes do apartamento 3, último do prédio verde, se acendem. Regina havia despertado do seu sono meteórico, e sentia cada fibra do seu corpo gemer de dor. No seu quarto bagunçado, tropeçava em jornais antigos no caminho até janela, para ficar incrédula com o que os seus olhos fotografariam. Um corpo! E logo a dor no corpo se misturou com um choque que a fez limpar os olhos e perder o fôlego.
Regina não tirou os olhos do corpo, e entendeu os latidos de baleia pela primeira vez. Como toda boa Jornalista ela precisava de uma fonte, e atendeu o chamado da cadela que lhe gritou a manchete: “Corpo nu de mulher é achado na praça Carlos Drummond de Andrade, em Prazeres. Não se sabe ainda os motivos da morte, muito menos a identidade do corpo.”. Pronto. Era a matéria perfeita para levantar sua moral no jornal “A República”, deixando de lado as palavras cruzadas, e tornando-se repórter de rua. Mas não seria fácil. Regina sentia-se dividida entre o seu lado profissional e pessoal. Ela queria ter conhecido aquela mulher mais do que a própria matéria. Queria saber, a todo custo quem era ela e como havia parado ali. Mas não seria fácil. E no ápice do seu querer irremediável, batizara tal mulher de Fernanda. – Eu preciso de você, Regina. – Disse a recém batizada. – Escreva a matéria. Para quê há de hesitar? O tempo corre contra você. Vá! – e ela foi. Chamou a polícia e escreveu a matéria, permanecendo lá até eles chegarem, com fotos já tiradas e uma sensação de euforia e êxtase. – Alguma noção de quem possa ser essa mulher? – lhe perguntou um policial. –Ah!… Nenhuma. – ao que o policial respondeu balançando a cabeça. – espera..! – exclamou Regina. – Eu sou do jornal. Pode me ligar caso tenha alguma novidade sobre o caso? – disse lhe entregando um pedaço de papel. Mesmo ele não respondendo, ela sabia que iria falar com ele novamente.
CAPÍTULO II
7 De Fevereiro.
Na calada da noite, o silêncio gritava angustiosamente na rua 84, no bairro de Cajueiro Seco. E nela, Gabiru dormia toda noite. O homem de 60 anos não podia mendigar por ela durante o dia, mas toda noite, voltava para ela, para varrê-la e dormir com alguma tranquilidade.
Naquela madrugada, Gabiru dormia na frente da barbearia da rua e ao longe ouviu bolsas de lixo sendo rasgadas, e a rua, sendo vandalizada. Indignado, não hesitou ao tirar satisfação com a mulher – Tá fazendo o quê, menina? – era “Fernanda” quem revirava tais bolsas buscando comida. Ele repara na garrafa cheia de cola de sapateiro entre as suas pernas. Ela vestia apenas uma camisa do Santa cruz desbotada e uma saia rosa fosca, com manchas brancas. – Responde, Drogada. – Fernanda manteve-se calada o tempo todo, e apenas continuou espalhando o lixo enquanto Gabiru tentava afastar aquela estranha e quem quer que estivesse com ela. – Tu quer comida? – Perguntou ele tirando um pacote de biscoito do bolso. – Pega e toma teu rumo. – E inalando a cola, ela agarrou o pacote, e seguiu o seu rumo até onde Deus quis e ele quis outras coisas como, naquela manhã do dia 9, que Gabiru mendigasse por Prazeres e espiasse de longe aquele corpo morto no chão e o carro do IML junto a ele, fazendo lembrar vagamente daquela menina drogada que fez ele lembrar de sua mocidade quando ela virou as costas com o biscoito, sem rumo. O venho foi tomado por uma dor angustiosa por não ter feito mais pela menina, mesmo sabendo que ela não ouviria.
voltou ao seu papelão quando varreu a rua de novo, e pensava em quem aquela menina poderia ser, e deveria ter se tornado um dia. E chamou de Alice, antropomorfizando aquele corpo sonâmbulo, com olhos negros sem vida, e parecia-lhe como o céu sem estrelas, sem esperança, na fartura de miséria em que se encontrava a sua pessoa. Se houver lugar melhor, que fosse para lá e ela foi, e mereceu cada palmo daquele lugar.
CAPÍTULO III
11 De Fevereiro.
“Parece que eu voltei, nessas últimas horas, a ser criança. ” escrevia Regina num caderno preto de memórias e rabiscos. Era um caderno escolar, qualquer, onde despejava coisas que lhe fazia doer as têmporas. “sem saber o que ia acontecer amanhã, e querendo evitar ao máximo que ele seja igual a hoje.” O seu escritório era o seu quarto, e todo espaço era enfeitado com pilhas de livros. Sim. De certo podia instalar estantes e prateleiras, mas gostava de se esgueirar como um floco de poeira naquelas pilastras de calhamaços novíssimos. E Prazeres, naquele momento, não tinha cheiro, nem sabor.
“Hoje eu provei o sabor da verdade e perdi o paladar, no lugar do apetite. Às 15h07 o meu telefone tocou e as únicas coisas que eu ouvi foram “drogada indigente” e “suicídio””. Regina não queria ouvir isso. Só uma vez, queria que as aparências enganassem, quebrando o estigma ao meio. Mas quem quer que fosse “Fernanda”, havia morrido quando aquela mulher pôs o pé no mundo pela primeira vez. O mundo era seu, e ela era imortal. Mas Regina Sentia-se perdida escrevendo oque viria a ser, a matéria final sobre o caso. Lembrou-se por um momento, do êxtase que lhe transbordou quando ouviu do seu chefe “Ótimo trabalho, Regina. Arrume algumas fontes, veja o que está acontecendo com o corpo.” Atrás da sua mesa, Augusto lia o jornal concorrente e se admirava com a qualidade. Ele sequer olhou nos olhos de Regina.
Mas sem dúvida, aquele foi o único momento de felicidade que a jovem teve no mês. Queria ser a mulher que contaria a história daquela pobre moça que deixara sonhos e uma vida inteira para trás, e decidiu se atirar de um viaduto. “ela precisou de muita coragem. Digam o que quiserem, não é fácil ir de encontro à morte” pensou naquele momento. Mas isso não era, de todo, verdade.
No fim das contas, Fernanda não tinha nome, e muito menos uma vida. Mas o simples fato de morrer bem na frente da casa da Jornalista novata que queria dar certo, a fez minimamente relevante pela primeira vez na sua existência.
E então, na manhã do dia 11 de Fevereiro, todos os leitores do jornal “A República” – Conhecido por ter sido criado nos anos 70 pelo então prefeito de Jaboatão Dos Guararapes, Policarpo de Melo, do extinto Partido Republicano Pernambucano. Morto por adversários políticos na frente do jornal. – Leram a matéria de Regina. A qual ela insistiu veementemente para falar o que sabia sem tirar nem pôr, e tudo o que ela viu do chefe foi um balançar de cabeça simbolizando “sim”. A matéria dizia:
indigente: Corpo achado em praça de Prazeres, não tem identidade. Ou “O meu relacionamento com Fernanda”.
“O corpo foi achado na terça-feira, 9, na Praça Carlos Drummond de Andrade. Em Prazeres. Na manhã desta Quinta-feira, 11, a jovem foi enterrada como indigente no cemitério dos Guararapes. Talvez nem Deus saiba quem seja essa menina feia e pobre, Pois ninguém se apresentou para identificá-la e reclamar o corpo. Como era de se esperar, eu fui a única pessoa no enterro; em respeito, acendi uma vela e deixei uma rosa vermelha para aquela alma atormentada que nada fez demais, além de morrer na frente da minha janela. Tal favor eu nunca vou esquecer, mas nunca conseguirei retribuir da maneira mais digna possível: falando sua vida jornal. Mas farei o possível.
Agora Imaginem se lançar no fundo do abismo, e ele abrir os braços numa demonstração irresistível de afeto. Quem não se sentiria em casa? Particularmente é difícil dizer se Fernanda (como a batizei secretamente num lapso de afetividade e empatia) estava sóbria o bastante para ver o abismo lhe sorri e abrir os braços. Mas aposto que não.
É difícil descrever o meu relacionamento com aquela mulher. Eu acreditei que ela poderia ser mais do que os outros dizem; mais do que me disseram quando atendi o telefone e ouvi “ – essa é só mais uma drogada indigente que cometeu suicídio.” Mas o que me importa é que eu fui para ela, o que eu queria que fossem para mim. Me dói perceber que se eu fosse Fernanda, eu não teria a mínima assistência de quem quer que seja. E mesmo que tivesse, seria de uma pobre jornalista que precisa destrinçar minha vida para vender jornais. Esse é o ciclo miserável da vida; um grande circo de sensacionalismo insensível e desumano. Eu continuarei de pé, na lápide de Fernanda até a sua vida fazer sentido, assim como a minha.”
CAPÍTULO IV
E Regina continuou em pé, até quando a tarde de camuflou com nuvens cinzas , olhando a cruz de madeira branca, diante do túmulo recém cavado, com o escrito em azul “555” e logo lhe ocorreu que aqueles 3 dígitos foram a única identificação que Fernanda teve na vida. A rosa Vermelha que ela havia atirado no seu túmulo, parecia um sinalizador em um deserto de areia escura; e a falecida, como se fosse a própria terra, sugava o vermelho de cada pétala para poder renascer como uma flor de carne quando viesse a chuva. E a chuva sempre vinha à noite para inibir os camundongos que perambulam pelo cemitério. A jornalista assistia cada gota solitária se desfazer na sua janela, buscando se encontrar a cada passo dado pelo quarto, com a ideia de que estava aonde queria estar, mas não sabia que era tão doloroso assim, estar ali.
E lá estava Gabiru, no cemitério dos Guararapes, com o jornal amassado na mão. O velho não sabia ler direito, mas sabia do que (e de quem) se tratava a matéria de Regina. Ele não dormiu naquela noite de garoa fina, apenas tateou por entre os túmulos até achar o certo. E mesmo não sabendo o número, sabia o que procurar: uma única rosa vermelha sobre o túmulo. E ele achou, e admirou aquela cena sem pensar em nada. Quando pegou a flor nas mãos, lembrou de sentir seus pés descalços correndo pelo barro batido da que viria a ser a rua 84. Toda tarde de sábado, jogava futebol com as outras crianças naquele terreno desassistido que sempre foi a sua casa. E em todo fim de tarde, aquele menino preto, desnutrido, de orelhas largas seguia com os pés descalços até Prazeres, e roubava uma flor de qualquer jardim para oferecer a Nossa Senhora dos Prazeres. Sua devoção era a única coisa que herdara da mãe, mas Nossa Senhora nunca lhe concedeu seu único pedido: saber em qual cova rasa sua mãe havia sido enterrada como indigente. E por isso, chorava devotamente na chuva, admirando aquela rosa intacta e de um vermelho hipnotizante. Depois de 47 anos, ele voltou a falar com Nossa Senhora. – Obrigado, minha mãe. – disse ele em prantos – por essa menina ter alguém na vida dela. – Gabiru devolveu a rosa e pegou um punhado de terra do túmulo, que logo se esvaiu pelos seus dedos. Indo embora, ele concluiu – Cuida dela, Mãe. Cuida dela…
CAPÍTULO V
– Queria me ver, Sr. Augusto. – disse Regina na sala do seu chefe. Era a manhã do dia 20 de fevereiro. E ela não conseguia captar no rosto enrugado do velho, qual seria o tom da conversa. – Sim… Pode se sentar. – disse o homem atrás da mesa com seu jornal devidamente dobrado nas mãos – Eu sei que você é nova aqui na casa, mas eu não poderia deixar passar essa oportunidade. – A mulher não poderia estar mais nervosa. Sentia suas mãos úmidas e o seu pulso em pleno disparo. – com a aposentadoria de Andrade, no final do mês, abre uma lacuna na programação da Rádio, de madrugada. Oque acha de apresentar as notícias no lugar dele? – Regina ficou sem reação, e o seu coração continuou eufórico. – Eu só posso aceitar. – respondeu com a voz trêmula. – Claro que aceito. – Augusto esboçou um sorriso tímido e balançou a cabeça em sinal de aprovação. – mas se me permite… – continuou Regina. – por quê o senhor pensou em mim para a vaga? – ela chegou a corar em prepotência, ou ostentar um acréscimo abusivo de autoestima. Seu semblante, quando não inexpressivo, parecia confuso.
– você não era minha primeira opção. – Regina revirou os olhos dizendo “certamente que não” – Mas quem era não pôde aceitar, então, parabéns, você foi promovida. – Augusto usara seu tom ameno o tempo todo, e não pôde esconder o fato de ter resolvido tal situação. Mas não tinha importância.
Regina tateou pela redação olhando aqueles rostos embaçados dos colegas e sentindo o seu peito palpitar como um samba do crioulo doido. Abriria, enfim, a porta para a prosperidade e o respeito, e só Deus sabia como ela queria e precisaria daquilo na sua vida.
CAPÍTULO VI
Naquela noite, não conseguia (e tampouco queria) pensar em nada. Se deliciava com uma garrafa de vinho tinto esparramada na sua cama larga. A noite estava fria como sempre, e a mesma buscava esquentar as coisas com uma carteira dos seus cigarros preferidos: 8mm. Que só fumava em ocasiões especiais. O primeiro trago da noite fora interrompido pelo toque do seu telefone às 23:39 da noite. – Alô. – disse Regina. – Mendigo queimado vivo na rua 84 em Cajueiro Seco. Já sabe o que fazer. – disse a voz rouca aparentemente desconhecida.
O cigarro estacionado nos seus lábios finos se atirou no chão. A moça iria reconhecer a voz logo depois, mas infelizmente nunca teve a chance de conhecer aquele Mendigo criado naquela rua. Gabiru não estava no lugar errado, por que não havia outro lugar para ir. Seu erro naquela noite foi querer olhar de perto a movimentação na frente do Açougue do fim da rua. Quando o Toyota Hilux SRX branca estacionou e saíram de lá três homens imensos tanto em largura como em altura, encapuzados e acima de tudo, não querendo ser vistos – como camundongos que se escondem na sua toca quando alguém se aproxima- ele deveria apenas guardar sua vassoura e deitado no seu papelão o mais rápido possível. Para o seu azar, aqueles camundongos gostavam de morder e não se escondiam em oportunidades como estas.
Sem saber exatamente o porquê, o velho acabou espancado, entre 3 pneus da Hilux em chamas. E isto foi nada perto do que eles poderiam fazer se o ‘Seu Antônio’ (ou Senhor Antônio) velho dono do açougue não tivesse pago sua dívida.
E durante aquela noite, Gabiru queimou silenciosamente sem motivo. No seu quarto, Regina deu um grande gole na sua taça de vinho, e falando firmemente.
– Estou a caminho.