Um conto de Sara Athouguia
Sara Athouguia é doutoranda em História no Instituto Universitário Europeu. Vive entre Florença e Frankfurt, embora a sua alma seja lisboeta. Com artigos científicos e contos publicados em inglês, Sara acredita, porém, que há muitas histórias dentro de si que só existem em português.
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Memento Mori: A Morte Procura Escritor Russo Desaparecido
As melhores histórias são aquelas que nunca aconteceram. Talvez seja uma afirmação ousada para começar, porém mantenho-me firme: as melhores histórias são aquelas que nunca aconteceram porque a verdade nunca contentou ninguém. O que a verdade tem de estimulante aos nossos olhos são meramente todas as hipóteses que vai deixando em aberto no seu caminho. Por isso, amigo leitor, sejas tu quem fores, façamos já um pacto: eu vou contar-te uma história, uma dessas tantas histórias que ficaram mudas nos corredores do tempo; o que ela tem de verdade caberá apenas a ti decidir, porque já deixei claro que a verdade me interessa muito pouco. Por isso, companheiro de sonhos, encara esta história como te aprouver e aceita essa liberdade como um aviso: não te percas na certeza inverossímil da existência de uma clara definição entre o real e o sonhado, pois ambos convivem e lutam tão acerrimamente na alma humana quanto o bem e o mal. Semeia antes a dúvida, chave-mestra para todas as crenças, fés, ateísmos e ceticismos.
Feitos todos os avisos pertinentes, é momento de te contar a história do meu amigo Nikolai Gógol. Talvez reconheças o seu nome – ele fazia magia com palavras e, através delas, vive para além da Morte. Isto de ‘fazer magia com palavras’ poderia ser apenas um floreado no meu discurso, mas sou um narrador confiável, caro leitor; tão confiável que, nas minhas palavras, não encontrarás adornos, conto tudo tal como aconteceu e cada palavra significa exatamente o que tu consideras ser o seu significado. Não faço nenhum exercício discursivo, apenas é necessário que te conte esta história, por isso confia no que te digo: por capricho do destino ou por coincidência da vida, Nikolai Vasilievich Gógol foi um desses génios amaldiçoados que enganou a Morte.
Mas comecemos por onde começam todas as histórias dignas desse nome: pelo princípio. Tu irás, certamente, perdoar este narrador que, mais do que inexperiente, é relutante, mas existem acontecimentos cuja causa nos é tão alheia ou, pelo contrário, tão próxima, que se torna difícil situá-la. Talvez a melhor maneira de começar seja revelando o maior medo de Nikolai Gógol, já que não o podemos ouvir confessar: o seu grande medo era morrer. Simples, não é? A gente esperaria mais originalidade vinda de um escritor de alto gabarito, de um artista inconformado, de uma alma criadora… enfim, a vida é cheia de surpresas! Já a Morte, nem tanto…
Nikolai Gógol começou por sofrer de uma doença que ninguém sabia explicar, uma doença que o enfraquecia e o fazia sofrer crises imprevisíveis e indefinidas. Essa doença, fiel leitor, nada mais era do que a manifestação do seu medo. Todas as pessoas vivem à beira do abismo da Morte, mas há aquelas que se deixam hipnotizar pelo medo ou pela promessa de descanso soprada pelo doce hálito da Morte. Não sei ao certo qual era o caso de Gógol, talvez ele quisesse abraçar a Morte porque nunca gostou muito de viver ou talvez o seu desgosto com a vida não justificasse abraçar seu medo. A verdade, ainda que não interesse para o caso, poderá estar nas entrelinhas dos seus livros. Talvez a alma de Gógol já estivesse morta antes que ele pudesse abraçar o seu medo…
Tentarei não divagar mais, amigo leitor – afinal, continuas pacientemente à espera da história que te prometi. Falava da doença do meu amigo Gógol… Por causa dessa doença, Nikolai Gógol entrou num sono letárgico; parecia morto para o mundo, mas vivia dentro de si. Durante esse sono em que o tempo não existia, foi visitado por um ser maravilhoso, aquilo que julgou ser um Anjo. Esse ser que emanava uma beleza pura e luminosa anunciou algo que mudaria o seu destino: a sua escrita era necessária ao mundo e, por isso, o mundo precisava de Nikolai Vasilievich Gógol.
Acordou, então, convicto de sua nobre missão. De forma a fazer cumprir o seu destino, Gógol passou a dormir sentado, para que nunca mais o julgassem morto erroneamente, e fez questão de exigir num testamento apressado que a família só o enterrasse quando o seu corpo, carecendo de vida, entrasse em visível decomposição.
Gógol não era propriamente o amigo que todos desejaríamos ter. Para resumir, digamos que, como qualquer escritor, era um sujeito bastante egocêntrico. Não era um cavalheiro que o público feminino pudesse considerar bem-parecido, por isso também não teve grandes paixões; e mesmo que tivesse agradado a alguém, considerando a propensão de muitas mulheres – e também de alguns homens – para almas perdidas, duvido que o ego de Gógol lhe tivesse permitido amar.
– Se alguma vez eu tivesse um grande amor, isso acabaria dando cabo de mim… ainda bem que nunca aconteceu! – Respondia Gógol àqueles que questionavam o seu coração desocupado. Sabedoria de um pensador ou cobardia de um desiludido; isso são considerações que ficam ao teu critério e à mercê do que a vida te foi mostrando, amigo leitor.
Por aquela altura, Gógol dedicava-se ao único amor que teve: Almas Mortas, a sua obra-prima, escrita numa prosa poética, épica, lírica… ele não se poupava a pomposos adjetivos quando se tratava da sua criação. Aquela seria a obra que daria a Gógol um lugar nesse altar sem templo dos grandes escritores e, assim, consumaria a posteridade que ficara prometida ao seu nome. Nikolai Gógol planeara uma obra grandiosa, porém, a viagem do vigarista Chichikov, o personagem que deambulava pela Rússia tentando comprar almas mortas, seria o início da descida aos infernos do seu criador…
Almas Mortas não era um simples livrinho, caro leitor. A divina providência que inspirara a escrita de Gógol exigia a tríade do costume: três volumes, que metaforizariam o sinuoso caminho já percorrido por Dante Alighieri. Por uns tempos, Almas Mortas pareceu seguir as peugadas do poeta-maior italiano, para ingénuo regozijo do meu amigo Gógol. Sou capaz de pressentir um desconfiado franzir de sobrolho do prezado leitor, dada a comparação implícita – é, por isso, necessário que esclareça que o ilícito paralelo não saiu da minha mente. O que fazer? Ao que parece, o pretenciosismo é um dos requisitos nessa longa lista que qualifica e certifica um escritor!
Gógol ignorou, todavia, que, para escrever A Divina Comédia, Dante teve de perder Beatriz. O que teria de perder o escritor de Almas Mortas?
O comité de censura do tzar da Rússia pôs uns quantos problemas à publicação do primeiro volume – perceberás que o título Almas Mortas era, na melhor das hipóteses, uma blasfémia e a Igreja Ortodoxa, indissociável da Coroa, não poderia permitir tal atrevimento… Porém, Gógol era muito admirado no meio artístico, visto como um sucessor do mestre Pushkin; bastou-lhe falar com uns quantos ilustres intelectuais para que o primeiro volume de Almas Mortas fosse publicado, em 1842.
O sucesso foi estrondoso: Chichikov e a sua infame jornada estavam na boca da Rússia e Nikolai Gógol passou a ser uma celebridade. No entanto, o escritor não gostava especialmente de ser o centro das atenções e refugiou-se na quente solidão de Itália para fazer o que realmente lhe interessava: terminar os restantes volumes da obra.
– Senhor, por favor, tendes de descansar… – Implorava o fiel criado que, em virtude de uma profunda admiração, seguia o seu amo para todo o lado, ainda que não pudesse cobrar-lhe o justo preço da sua dedicação.
– É essencial que eu escreva! – Retorquia Gógol, desfigurado pelo cansaço. – Eu prometi ao Anjo que terminaria!
E o criado afastava-se, abanando a cabeça com reprovação. Desistira de chamar o seu senhor à realidade: ele já só vivia para a sua preciosa obra, escrevendo freneticamente e sem atender ao mundo em seu redor.
Sabes o que eu acho, amigo leitor? O grande problema dos escritores é que passam demasiado tempo dentro da sua própria cabeça, o que é um perigo…! Na sua cabeça – esse mundo paralelo para o qual todos eles fogem – os escritores assumem o papel de Deus, por isso, não conseguem suportar o mundo real, no qual são tão impotentes como qualquer outra criatura. Pensa: se te dessem a escolher entre ser rei ou escravo, qual preferirias? Mais importante ainda: em qual desses papéis serias tu mais livre?
A liberdade não é mais do que uma ilusão necessária ao equilíbrio do mundo. Não faz sentido que o ser humano se apresente como moderadamente livre, porque a liberdade ou é plena ou é um honroso nada; no entanto, nunca me cruzei com uma pessoa que fosse totalmente livre. Consideras, porventura, que Nikolai Vasilievich Gógol escolheu escrever até ao limite das suas forças? Ah, amigo leitor, não deambularei mais por questões infrutíferas, o que importa para esta história é perguntar: que força empurrava Gógol para o fatídico labirinto da escrita?
Certo dia, quando o já exíguo sol crepuscular invadia languidamente o quarto, aconteceu algo estranho. Gógol escrevia quando uma dor intensa atravessou o seu peito. Parecia uma lança que, ao penetrar o seu coração, queimava todas as suas entranhas lenta e dolorosamente. Gógol caiu no chão, o seu corpo tremendo ainda que dentro de si um fogo desesperante ardesse inexplicavelmente. Tentou chamar o criado, julgando que estava a ter uma das suas piores crises, quando notou algo extraordinário: o seu corpo estava a desaparecer. Sim, prezado leitor, o corpo de Nikolai Gógol estava a desaparecer literalmente, ainda que ele insistisse em observar com descrença a sua mão intermitente, que aparecia e desaparecia como a luz de um trovão. Finalmente estabilizou, como se o que se passara tivesse sido apenas um pesadelo inconsequente.
Gógol sentou-se novamente na cadeira e, ainda incrédulo, enfrentou o seu manuscrito. Pegou nas páginas como se estivesse a conhecê-las pela primeira vez e não viu as palavras que, com toda a dedicação da sua alma, tinha escrito. Encontrou apenas o seu horrorizado reflexo: as páginas tinham-se transformado num desfile de espelhos, ainda que mantivessem a textura do papel. Gritou; o grito de Gógol invadiu grotescamente a beleza do pôr do sol italiano, como o aflitivo rugido de um animal ferido.
O seu criado apressou-se com preocupação e quando entrou no quarto deparou-se com um amedrontado Gógol encostado à parede oposta à escrivaninha, olhando-a com pavor, enquanto tapava os ouvidos como se o seu próprio grito o tivesse ensurdecido.
– O que se passa, senhor? – Acudiu o criado, amparando um Gógol que lhe pareceu, então, um ancião.
O escritor apontou, com o medo brilhando febrilmente nos seus olhos, para o malévolo manuscrito. Perante o terror paralisante do seu amo, o criado aproximou-se da escrivaninha, procurando o motivo para tão monumental reação…
Encontrou apenas folhas comuns, preenchidas pela tão familiar caligrafia apressada de Nikolai Gógol. Olhou-o confuso e sobressaltou-se quando os lábios secos e sem cor de Gógol se moveram debilmente para ordenar, num tom tão vulnerável que mais parecia uma súplica:
– Acorda-me! Acorda-me deste terrível pesadelo! – O criado aproximou-se dele e guiou-o até ao canapé junto à janela. Quando Gógol se estendeu, gritou repetidamente, como se estivesse num sofrimento atroz: – Ele quer roubar a minha alma! Acorda-me já, se não ele conseguirá roubá-la!
– Acalmai-vos, senhor. – Pediu o criado, enquanto lhe punha a mão na testa para verificar qualquer indício de febre. – Mas delira…! – Comentou para si mesmo, quando verificou que a temperatura de Gógol era perfeitamente normal.
– Acorda-me, acorda-me, ele está a roubar-me a alma aos poucos!
– Mas quem, senhor?
– O livro! O livro! – Gritava Gógol, chorando como uma criança desolada.
A partir desse dia, houve algo que se tornou mais imprescindível a Gógol do que a sua escrita: a necessidade de encontrar redenção para a sua alma aparentemente perdida. Tornou-se um peregrino descrente e vagueou até à Terra Santa, procurando uma solução que acabou por nunca lhe aparecer. Esta fase errante de Gógol consumia-lhe ainda mais energias do que a sua laboriosa escrita. Pois é, amigo leitor, a demanda pela fé funciona para os aleijados da alma como o ouro para os alquimistas – um fim que justifica todos os meios.
A certa altura, Nikolai Gógol cansou-se de viajar: decidiu voltar à Rússia do seu coração e encontrar na rival Ortodoxia um desesperado, porém necessário, consolo. É neste momento que aparece um personagem sombrio e, por isso mesmo, de extrema relevância para esta história. A incursão alucinada de Nikolai Gógol pela fé levou-o ao encontro do Frade Matvei. Ai, quanta ingenuidade – quando estava perdido, foi pedir ajuda precisamente a quem que não sabia o caminho!
O Frade Matvei ouvia-o sempre com muita atenção, enquanto os seus dedos ossudos penteavam pensativamente a longa barba embranquecida pelo tempo.
– Meu filho, és um pecador. – Anunciava o Frade, num tom grave e pesaroso. – Um sacrifício, um grande sacrifício!, é o que tens de fazer para que os teus pecados sejam absolvidos!
Gógol, na sua cega obediência, fazia todos os sacrifícios que Matvei lhe recomendava, seguindo as suas instruções à risca, qual prescrição médica! Nenhum dos sacrifícios resultava, mas quase todos agravaram o seu estado: jejuar, rezar durante horas com os joelhos assentes no frio e doloroso chão de pedra… sacrifícios deveras nefastos para a já tão frágil saúde de Nikolai Gógol!
Surpreendentemente, era o falhanço daquela fórmula que parecia intrigar o Frade: mostrava-se sempre admiradíssimo quando um débil Gógol regressava à sua infeliz companhia, constantemente derrotado.
– O Anjo disse que eu precisava de me entregar à escrita; eu não lhe falhei! – Exclamava um Gógol desesperado, como incoerente resposta à constatação de Matvei da sua natureza pecadora.
– Talvez essa aparição não tenha sido mais do que um embuste que Satanás usou para te tentar… – Ponderou o Frade, num dia de rara inspiração.
A flor da esperança que Gógol ainda conservava murchou perante aquela suposição; o seu génio, o seu talento, o trabalho da sua vida, simplesmente não poderiam ter nascido do Mal. Essa possibilidade era tão desesperante que Gógol quis acabar com tudo ali, naquele momento. Ajoelhou-se aos pés de Matvei e rogou, desesperado:
– Por favor, eu faço tudo o que for preciso! Faço tudo para que este sofrimento termine!
Matvei pousou paternalmente a mão na cabeça de Nikolai Gógol e questionou numa voz tão doce que enjoaria o próprio mel:
– Farias o sacrifício máximo?
– Qual? Dizei-me qual!
Matvei obrigou Gógol a olhá-lo nos olhos enquanto dava o veredicto:
– Renunciar ao que mais amas.
O Frade julgava, então, que, tal como Abraão ofereceu o filho, Isaac, em sacrifício para provar a sua dedicação a Deus, também Nikolai Vasilievich Gógol, não tendo esposa nem descendência, teria de abdicar do produto da sua apaixonada obsessão.
O escritor, por sua vez, não estava totalmente convencido – afinal, nada do que fizera anteriormente resultara. Por aquela altura, Gógol fixara-se na residência de um afamado Conde seu amigo. A sua confiança naquele cavalheiro ia ao ponto de querer dar-lhe para as mãos o seu maior tesouro. Julgou que isso seria o bastante para manter o seu manuscrito em segurança, bem como para apaziguar o deus ciumento advogado por Matvei.
– Não aceitarei tamanha responsabilidade. – Negou-se o Conde. – Tendes de acabar a obra!
Tenta compreender, caro leitor: o Conde considerava injusto apoderar-se de uma obra inacabada e queria incentivar o seu genial amigo a terminá-la, sem saber que a sua inócua recusa provocaria um desastre…
– Queimarei as partes que mais possam desagradar ao Divino. – Planeou Gógol, ainda relutante em sacrificar o segundo volume de Almas Mortas por inteiro. Quanto ao primeiro volume, nada podia fazer, visto que já o dera a conhecer ao mundo, mas o segundo ainda era só seu; ainda ia a tempo de o tornar mais fiel aos ensinamentos do seu Senhor, abdicando das ideias que merecessem a Sua desaprovação, transmitida pelo severo julgamento do Frade Matvei.
– Estais certo de que quereis fazê-lo? – Questionou o criado, quando um resoluto Gógol o interpelou para que queimasse umas quantas páginas do seu manuscrito. Temendo que aquela ideia não passasse de um delírio, mais tarde resultando em agonizante arrependimento, o criado aconselhou o seu amo: – Pensai melhor esta noite, peço-vos…
Gógol concordou com a triste resignação de um condenado. Sentou-se no cadeirão onde dormia, enquanto o criado preparava a colossal lareira para combater o insistente frio da noite de inverno. Estava sozinho no quarto, mirando as chamas que dançavam à sua frente, quando o fogo pareceu chamá-lo, espelhando-se no brilho louco do olhar de Gógol.
As chamas ondulavam sedutoramente, enquanto a lenha crepitava em tom de comando. Parecendo perder o poder sobre o seu próprio corpo, Gógol agarrou no manuscrito e ficou frente à lareira. Os seus pensamentos corriam incoerentemente pela sua cabeça, atordoados pelo pânico. As suas mãos, que naquele momento não lhe pertenciam, ergueram o pesado manuscrito e atiraram-no ao fogo, que rapidamente se alimentou do papel. Recuperando a capacidade de controlo sobre o seu corpo, Gógol tentou desesperadamente salvar as páginas que se contorciam de dor, jorrando lágrimas de tinta que rapidamente se desvaneciam no fogo.
Admitindo finalmente a sua impotência, Gógol sentou-se no chão, como se se prostrasse defronte a um caixão. Pôs os braços à volta do seu corpo e embalou-se, enquanto chorava o derradeiro e involuntário sacrifício.
Foi então que a dança do fogo deixou de ser um ondular e ganhou forma de Anjo. Esse ser alado em chamas apenas lhe disse, numa voz que contrastava com o tétrico cenário pela alegria quase infantil:
– Em troca da tua alma, viverás para sempre, Nikolai Vasilievich Gógol! – E, num piscar de olhos, o Anjo desapareceu na valsa das chamas.
Mas de que serviria a Gógol viver eternamente se não tivesse a sua alma? Já não seria ele… E, sendo assim, a eternidade não poderia ser mais do que um eco de vida, um interminável choro enlutado pela sua alma perdida. Sem a sua alma, a eternidade seria um vazio ainda maior do que a Morte.
Quando o sol anunciou um novo dia, o criado entrou cautelosamente no quarto e deparou-se com Gógol já apático, olhando o nada de cinzas que ocupava o lugar do fogo já extinto.
– Satanás entrou no quarto e eu queimei tudo. – Revelou-lhe Gógol, sem qualquer emoção na voz. O arrependimento, a tristeza, o desespero eram então sentimentos demasiado humanos para a sua dolorosa eternidade.
Numerosos e prestigiados médicos foram chamados pelo Conde, preocupado com o estado de apatia do seu amigo Gógol. O escritor não comia e mantinha-se aprisionado no quarto. Porém, o seu corpo debilitado apenas anunciava a metamorfose exigida pela eternidade que lhe fora concedida. Nenhum médico soube dar respostas, porque claramente estas estavam para além da capacidade da ciência.
– Ele não quer continuar a viver… – Observou de forma perspicaz um dos médicos, dispensando mais diagnósticos.
E foi com essa convicção que um Gógol sem alma fechou os olhos, querendo então abraçar o seu maior medo. O coração congelara e já não respirava, porque o seu estado imortal já se alojara em todas as suas entranhas. Fechou os olhos e deixou-se ficar assim, ouvindo os lamentos à sua volta, sem vontade de os desdizer.
Enterraram-no em março de 1852, com todas as honras que o seu génio merecera, mas sem cumprir os requisitos que Gógol designara, incitado pelo medo que tinha de morrer. O seu corpo foi colocado no caixão muito antes de entrar em putrefação… Esse incumprimento seria, afinal, benéfico para todos, uma vez que a decomposição do corpo de Gógol jamais se verificaria.
Antes que dê esta história por terminada, impõe-se que viajemos no tempo, amigo leitor. Proponho-te que avancemos até à década de 1930. A Rússia muito tinha mudado desde os tempos de Gógol, mas descansa que não é de Stalin que te quero falar.
O cemitério onde Gógol estava enterrado teria de ser desmantelado, uma vez que naquele espaço se construiria um reformatório – no entanto, não era necessário que o conjunto de defuntos anónimos mudasse de morada; esses podiam permanecer, porque já ninguém se lembrava deles. Mas até o vento russo continuava a pronunciar o nome de Gógol, pois ninguém viera ocupar o seu lugar no altar dos grandes mestres da palavra. Esse não poderia ficar perdido naquela morada já olvidada!
Foi, então, designada uma comitiva para transladar os restos mortais de Gógol para nova e, esperava-se, mais permanente sepultura. Com o tradicional secretismo soviético, rapidamente desenterraram o caixão. Os especialistas estavam a postos para examinar os restos mortais e prepará-los para a viagem… Quando se depararam com um caixão vazio.
– O que fazemos agora, Pavel Ivanovich? – Questionou um jovem da equipa ao especialista encarregue da missão.
– Que maçada! Isto vai ser um problema com a papelada… – Comentou o doutor Pavel, um cientista outrora brilhante que aprendera a não dar muito nas vistas, seguindo à risca todas as etapas que a burocracia exigia. Passeou o olhar pelas campas em volta e, muito entusiasmado, apontou para uma: – Aquele ali morreu no mesmo ano, quase com a mesma idade…
– Não pensa realmente que deveríamos… – Começou um outro membro da comitiva, com inconfessada culpa cristã a roubar-lhe a cor das faces.
– Teremos de escrever um relatório extraordinário, claro, mas não podemos chegar de mãos vazias! Precisamos de um corpo! – Concluiu o doutor Pavel, com uma voz urgente e decidida, emanando tamanha autoridade que ninguém se atreveu a questioná-lo.
Se procurares por provas da transladação do corpo de Gógol para o ínclito cemitério de Novodevichy, o mais provável é que nada encontres. Dos obscuros registos soviéticos não ficou nada e grande parte da comitiva presente aquando da abertura do caixão calou-se para sempre após essa missão. Se foram calados por interesses stalinistas ou por motivos transcendentes à plausibilidade humana, deixo ao critério da tua interpretação.
Os únicos dois membros da equipa que viveram para contar a história (ou talvez tenha sido o contrário e contaram a história para viver) nunca chegaram a acordo. O que naquela altura era um simples aluno do doutor Pavel considerava que o mais provável era que a sepultura tivesse sido profanada ao longo dos quase oitenta anos que separam a transladação do suposto óbito de Gógol; o outro sobrevivente, mais supersticioso, jurava ter visto arranhões no interior do caixão. O mistério adensa-se…
O pano desce e eu vou-me despedindo, amigo leitor; despeço-me tal como o ator que, despindo a pele do personagem que foi em palco, acena ao seu público após repetidas vénias de agradecimento. Esse é que é o final, porque só então a máscara cai. Se estás a ler estas palavras é porque ficaste até ao final e muito te agradeço por isso. Espero que tenhas sido invadido pela dúvida, porque não há musa mais bela.
Guardei para o final a única verdade que te posso garantir: continuo à procura da alma do meu amigo Gógol. Aproxima-se o momento de que ele finalmente se encontre… E isso só será possível no meu abraço. Se encontrares o que restou da alma de Gógol nos seus livros, diz-lhe o que procurar. Sim, tu sabes como e o que procurar, amigo leitor, por isso diz-lhe! Diz-lhe, já que esse conhecimento tão poderoso – uma verdadeira maldição para o ser humano – é irreversível…
Um dia, querido leitor, também tu irás encontrar o meu abraço. Talvez isso seja daqui a muito tempo, mas o tempo é como a verdade: não me diz nada.