Um conto de Stéfanie Medeiros
Stéfanie Medeiros é escritora e roteirista. Faz mestrado em Escrita Criativa na PUCRS e é autora do romance O último verso (Carlini & Caniato Editorial, 2016), vencedor do Prêmio Mato Grosso de Literatura.
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A vez do plano A
I
Você entra na livraria e logo sente que é o Leitor de Calvino. Passa pela estante de literatura estrangeira e vê a capa de Se um viajante em uma noite de inverno. Você recorda o primeiro capítulo enquanto passa por todos os livros que estão na sua frente. Os livros que você não leu.
Mas olhando em volta, você pensa em todos os livros que não escreveu. Pensa nas milhares – milhares! – de pessoas que escreveram livros antes de você. E pensa que, se escrever algum dia, vai estar espremida em alguma prateleira de autoras que ninguém nunca lê. Mesmo assim, não consegue evitar de andar pelos destaques e se imaginar ao lado de Elena Ferrante, Chimamanda, das reedições de Tolstói, do Nobel de 2017, dos livros do Dan Brown, dos livros dos youtubers e dos outros best-sellers.
E então você vê aquele rosto familiar. Aquele livro escrito por um amigo que teve mais disciplina que você. Um amigo que não tinha mais tempo, que até tinha mais trabalho, mas que, de alguma forma miraculosa, conseguiu espremer horas de escrita em uma semana – em uma vida – corrida. Até que o livro estivesse terminado. E revisado. E publicado. E agora ali, na sua mão, na livraria, à venda. À venda bem na frente, não em uma prateleira qualquer.
Você recorda o lançamento, ao qual você foi. Lembra das palavras do seu amigo: “Dizem que a inspiração é um mito, mas de que outro jeito explicar essa força que me fazia escrever madrugada adentro mesmo depois de oito horas na redação?”. Ah!, você pensa. Meu amigo, meu amigo…. meu amigo é um idiota. Então aquele monstro pedante que vive dentro de você deseja que o livro seja esquecido. Você coloca o livro de volta na estante e finge que não pensou isso.
Você vai embora amargurado, sem comprar nada porque já gastou dinheiro em um Kindle. Vai embora nostálgico, tentando recordar os dias em que entrar em uma livraria era revigorante, não deprimente.
II
Sábado. Você, com 23 anos, está em casa. Seu amigo idiota postou uma foto em um bar com a seguinte legenda “La Vie Bohème”. Ainda é permitido falar coisas assim? São dez horas da noite, horário perfeito. Contra as indicações médicas, você faz um café. Quando o café está pronto, você muda de ideia e faz chá mate. Quando o chá está fervendo, você lembra que ele também tem muita cafeína. Então você muda de ideia de novo e pega o café, que agora está frio. Você esquenta a xícara no microondas. Gosto esquisito. Talvez seja melhor o chá. Mas agora a língua já está marcada com o gosto do café.
Então você para no meio da cozinha, de pijamas, xícara na mão, gosto ruim na boca e se pergunta qual é o seu problema. Mas você sabe qual é. Segue para a escrivaninha, onde o computador já está aberto e a sala em silêncio. Você senta com o café ruim ao lado. Agora é só escrever. Só escrever. Só isso.
De súbito, aquela sensação de pânico retorce seu corpo. Isso acontece não porque você não consegue escrever, mas porque lembrou de algo. Você tem que entregar um artigo de 15 páginas na segunda-feira. De dez a 15 páginas. Você fica ansiosa porque, no momento, tem zero páginas. Respira fundo e abre uma pasta com o fichamento de vários livros sobre o tema do artigo.
Nada de pânico, o que é isso? Você tranquiliza-se pensando que ainda é sábado. Ainda tem domingo. Você organiza as citações e coloca um texto irrefletido entre elas. Em uma única sentada, escreve seis páginas. São quase uma da manhã. No dia seguinte, você continua.
Você deita na cama. Ainda acordada – culpa do café – sente a melancolia espalhando-se pelo corpo. Você escreveu seis páginas do seu artigo e nenhuma do seu livro. Há justificativas, é claro. Ninguém vive de ser escritor no Brasil. E embora ser escritor seja o plano A, há de se convir que é o plano B que irá te sustentar pelo resto da vida.
III
Eis o plano B: terminar a faculdade, mestrado e doutorado em letras para tornar-se professora universitária. Nesse meio tempo, você imagina que seu romance vai sair do limbo da sua mente e ganhar espaço nas livrarias, um até melhor que o do seu amigo idiota.
Claro que a imaginação não para. Você imagina seu romance como uma sensação maior do que os livros dos youtubers. Vai vender mais que os dos pastores. Mas não só isso: seu livro vai ser daqueles raros best-sellers aclamados pela crítica. As escolas irão adota-lo como leitura obrigatória e as universidades produzirão teses atrás de teses sobre as camadas complexas da sua prosa. Seu livro tem tantos níveis! Pelos corredores, as pessoas sussurrariam a palavra “genial”. Absurdo! Por que sussurrariam? Gritariam a plenos pulmões: Genial, genial, genial! Você imagina um número musical no meio disso. Mas aí já é demais.
Depois de um primeiro livro com a potência de um furacão no mercado editorial, seu público espera mais. Você não só corresponde às expectativas, mas as supera: seu segundo livro é daqueles que ficam em primeiro lugar em todos os prêmios de língua portuguesa. É ele também o navegante que cruza fronteiras e torna-se fluente em mais de 15 línguas. Seu livro circula o globo. Seu terceiro livro também. O quarto também. O quinto traz para casa, pela primeira vez na história, um Nobel.
Esse dia é declarado feriado nacional. Coincidência ou não, esse feriado é no dia do seu aniversário.
IV
É domingo. Enquanto o plano A não acontece, é preciso dedicar tempo ao plano B. Você termina seu artigo no começo da tarde. Depois, joga-se na cama e liga a Netflix. Ao invés de assistir algo novo, coloca a mesma série de sempre. Você não quer pensar. Amanhã, segunda-feira, o plano A vai entrar em movimento. Mas não agora.
Segunda-feira, sete horas da manhã. Mesmo querendo morrer, você acorda e vai para a faculdade cumprir as obrigações do plano B. Mas quando chegar em casa, vai escrever seu romance. E como vai!
Você chega na faculdade. Seus colegas estão com expressões tão cansadas quanto a sua, exceto por aquela uma pessoa que sai distribuindo sorrisos. Seu monstro interno deseja que ela seja atropelada. Você finge que não pensou isso, mas pensa de novo quando a cretina passa por você gritando “bom dia!”.
Você entra na sala de aula com os outros zumbis, seus iguais, e senta no fundo. Tira seu artigo da mochila. Por três horas seguidas, acontece um tipo de blackout. Quando a aula acaba, é como se você tivesse tomado seis shots de tequila: você não lembra de nada. Mas de uma coisa você lembra: este é o penúltimo semestre. No seguinte, TCC. Neste, pré-projeto.
Por um momento, você sai do seu estado letárgico e sente vontade de morrer, mas não pode. Não antes de entregar o pré-projeto.
V
Segunda-feira. Você tem 25 anos e está começando o mestrado. Você não conhece a cidade, nem tem amigos. Mesmo assim, sai da cama cedo e vai até a faculdade. Antes de piscar, está envolvida em uma espiral de artigos, palestras, congressos e o primeiro rascunho da dissertação – que, aliás, está atrasada.
Sábado, fim do primeiro ano. Você está exausta. Pega um caderno em branco, um livro e senta em um café cool no centro da cidade. Seu plano: pelo menos delinear a trama do romance que ainda não saiu da cabeça. Trazem um mocca. Você tira foto do livro ao lado do café e posta no Instagram. Agora pode começar.
Então escuta uma voz chamando seu nome. É um colega da faculdade, amigo de um amigo de um colega que faz engenharia. Ele pergunta se pode sentar, você diz que sim. Ele faz mestrado na área de exatas. Vocês conversam sobre o universo acadêmico. Do café, vão para um bar; do bar para uma pizzaria; da pizzaria para casa.
A dissertação consome toda a sua energia. O resto é consumida pelo namorado. Você gosta dele, ele de você. Os dois planejam o doutorado logo depois do mestrado. Vocês passam. No primeiro ano, moram juntos. No segundo, casam. No terceiro, você engravida. No último, entrega a tese enquanto sofre as dores do parto.
É uma menina. Você acha ela bem feia, mas diz que é bonita. Sua família está feliz e ao mesmo tempo triste por você morar longe. No primeiro ano de vida, a menina fica mais bonita e engraçada, menos parecida com um presunto. Nesse mesmo ano, enquanto você lida com as dores nos mamilos em carne viva, seu marido passa em um concurso. Agora vocês são uma família no sentido margarina da palavra.
Você começa a estudar para um concurso também. O plano B segue a pleno vapor. É difícil estudar porque a menina quer andar pela casa e precisa de ajuda. Quando você coloca ela no andador, ela chora. Quando você coloca no cercadinho, ela chora. Quando você liga a televisão e ela fica quieta, você sente culpa. Então você segura a mão da menina enquanto ela ri andando desajeitada pelo apartamento. Sua coluna dói, mas você se convence de que a risada da menina é todo o remédio que precisa.
Edital para um concurso bom, salário excelente, na sua cidade. Você estuda com mais afinco e deixa a menina na frente da televisão. Seu marido vê e implica. Você grita que precisa de ajuda. Ele diz que está sobrecarregado. Você chama ele de boçal. Ele dorme no sofá. Você acha até bom.
Dia de prova. Você se sai bem. Fica de bom humor. Tão bom humor que pede desculpas ao marido. Ele volta para o quarto. Vocês comemoram. No dia do resultado, duas surpresas: você passou no concurso. Você está grávida. Dessa vez é menino.
VI
Sábado, você tem 36 anos. Seus filhos pequenos foram ao cinema com o pai. A casa está em silêncio. Agora vai. Você senta no escritório e abre o computador. Pega o caderninho com anotações que fez ao longo dos anos. Então sente o cansaço. Você faz um café. O café é bom, bem feito, um primor. Você senta novamente. Pega o celular e tira uma foto do café, do computador, das anotações.
Então começa, mas sente dificuldades. Na verdade, você não sabe por onde começar. Sua história é um emaranhado de ideias desconexas. Você suspira e pensa em um esquema. Começa a fazer o esquema. A coisa flui um pouco, mas então você ouve o barulho da porta, a voz do seu marido, a menina e o menino gritando “Simão, fantasma bundão!”.
Tarde da noite. Você tenta mais uma vez e, mesmo cansada, não quer desistir. A casa está em silêncio novamente. Então você ouve a menina chorando. Ela vem até o escritório, os olhos e nariz vermelhos, a camisola grande demais. Você pergunta qual o problema. Ela diz que não consegue descosturar a sombra do pé e agora a sombra fica seguindo ela o tempo todo. Ela aponta para a sombra projetada na parede. Ela está aos prantos. Ela culpa o irmão. Foi ele quem costurou a sombra no pé dela.
Você leva ela ao quarto. Conta histórias. Fica ao lado dela até que durma. E dorme também. Quando acorda, já é o dia seguinte e você tem que planejar aulas, corrigir provas, levar as crianças na escola, passar no mercado e ir em um aniversário à noite. E dedicar todo o seu tempo ao plano B, que agora é o único plano.
VII
Sábado. Você, com 23 anos, está em casa. Seu amigo idiota postou uma foto em um bar com a legenda “La Vie Bohème”. Contra as indicações médicas, você faz um café. O café fica ruim, mas você ignora.
Você ignora o café ruim, seu amigo idiota e as tarefas atrasadas. Você desliga o celular, abre o computador e começa a escrever. E não para. É como se essa fosse sua única chance. Você sente que é a única chance. Então escreve.
Você lembra do artigo de 10 a 15 páginas que tem que entregar na segunda-feira. Você para por uns momentos, considera deixar seu romance de lado e fazer as obrigações. Então pensa que foda-se e continua. Porque agora é a vez do plano A. Você tem medo, é claro. Imagina mil possibilidades de infindáveis vidas diferentes. Mas a que mais te dá medo é morrer enquanto página em branco. Então você escreve.