Um conto de Tatiana Lazzarotto
Tatiana Lazzarotto é natural de Santa Catarina e mora em São Paulo (SP) desde 2011. Formada em Jornalismo e em Letras-Português pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR), atualmente é mestranda em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP). Venceu o ProAC de obras de ficção (2020) e este ano publicará seu primeiro livro.
***
Clube dos Mancos
Entrei para o Clube dos Mancos numa terça-feira, na hora das Ave-Marias. A cabeça ressoava com os passos duros na entrada do metrô, a impaciência de cidadãos esperando o ônibus, os ambulantes gritando suas bugigangas. Telefonei para saber o estado do meu pai e em 20 segundos recebi no colo a minha sina, a de minha mãe, a dos meus irmãos, a da humanidade inteira.
– Teu pai acabou de falecer.
Manquei. Senti a fisgada na perna e a certeza de que jamais andaria certa pela vida. Na calçada de anônimos, diante de um corredor de asfalto, não pensei no que seria óbvio. Eu, já defunta, embarquei numa turnê de horrores e levei nenhuma bagagem necessária. Foi a primeira vez que me dei conta da capacidade de Deus em me sacanear.
Já no dia seguinte o Clube dos Mancos me recebeu de portas e pálpebras semicerradas, circunstancial pompa de uma curiosa organização de dor que, embora pública, era-me secreta até então. Apenas soube de sua existência quando foi tarde, como manca entrei sem inscrição prévia ou carta de aceite. No Clube as reuniões são sob demanda e as pessoas soluçam pouco seu mancar. Pondera-se mais em como o correr dos dias transforma tudo em presença, tudo em saudade, que tem uma cor meio dourada, meio aveludada e é tão densa, improvável, palpável como nuvem. Para mim lembrança boa e ausência de dor ainda eram lenda, mas me consolaram dizendo que tudo mudaria quando eu conhecesse o nosso mediador. Ele nunca se apresenta, mas tem uma autoridade tão altiva que todos lhe curvam a cabeça e reconhecem sua agudeza.
Tu não o verás, desfiam na ladainha, mas ele sabe de teu sofrimento, intercederá por ti. À medida que o ancião passa, tuas fagulhas compulsivas se transmutam em unguento. Quando te deres conta, tuas lamúrias serão mais espaçadas e, ao olhares no alto, buscando vozes entre as camadas de ar, teu corpo será só mansidão. Flutua, incitam-me os companheiros, flutua que logo o encontras, menos nos ponteiros, mais na imensidão.
Encaro os mancos e mapeio suas imperfeições. Alguns puxam da perna esquerda, outros da direita, os santificados se desequilibram nas duas. O que me manca é a direita, pois meu pai se foi e os que dividem comigo essa condição têm uma aura de desamparo. Todos os mancos se reconhecem numa foto em que falta um pedaço. Nosso distintivo é uma fissura, um olhar mais fundo e o fôlego perdido em contar quantos aniversários remaremos sem leme. Uma revoada de muriçocas passa e eu tento bater palmas para matar algumas. No fundo quero assassinar o tédio e umas memórias para que em alguma delas meu pai não esteja. Falho. Tudo que minha cabeça conta o revela em algum lugar, armando algo que um dia transbordaria.
A cabeça do meu pai gestava borboletas. Seus pelos da cabeça e do rosto mudavam dia a dia, cortava e descoloria a cabeça e a face, sendo assim, durante o ano ele não era um, mas três. Como somente um deles estava ali rodeado por velas, rezei baixinho para que os outros dois me aparecessem súbito num abraço dizendo que eu era mesmo um monstro de sabedoria e ninguém mais seria capaz de me ensinar. É desesperador perder alguém que não sabia desaparecer.
Fora do Clube dos Mancos as dores são dissipadas pelas primeiras notas de pesar. Os outros se desesperam com a aplacável raiz do sofrimento: como foi lhe acontecer isso? Exigem de nós uma resposta, como se acessássemos as justificativas para as sacanagens dos céus. Há um tom grave e logo depois se assinala que ora, ora a vida é assim mesmo, não há motivo para mancar. Uma colega que por certo não desconfia da existência do Clube conta empolgada para me distrair que faz uma aula na academia para queimar calorias. Altíssimo retorno em pouquíssimo tempo. O corpo é coberto de eletrodos e leva choques, você pede mais ou menos deles, enquanto se exercita. O músculo trabalha tanto que no dia seguinte mexe sozinho.
Minha dor também é de espasmos.
O Clube é etéreo e coexiste em várias habitações. Por vezes observo os trejeitos de um desconhecido no vagão, tentando captar um cacoete por mais discreto que se pareça. Anoto no meu caderno que o rapaz de mochila é manco da direita, a senhora de turbante, também. O violinista de óculos puxa da perna esquerda, por certo, mas a moça do uniforme não sei, será que manca? Não parece ter 30 anos, com menos de 30 é óbvio que se manca mais. No meu macabro jogo da adivinha aprendo a notar o invariável caminhar coxo, habilidade que só quem é membro do clã pode colecionar e me espanto como só agora enxergo. Há pessoas que se arrastam como se uma das pernas já tivesse desistido. Talvez os mancos sejam como um móvel bambo. Só se sabe que lhe falta um calço quando lhe encostamos. A ferida acessada pela dor do outro faz a mesa bambear. Muitos deles recebem a notícia da entrada de mais um membro com um tímido marejar nas janelas. A dor, gasta, é sempre nítida.
Acordo de um gole só para a realidade da asseveração e para a porta que se abre com o avançar tímido. Reconheço o ar de quem perdeu a noite de sono, o feitio, o norte. Mais um de nós acaba de chegar e ele bambeia, acostumando-se à nova condição. Nem bem pisquei e já estou na porta, a mancar e a repetir solene: “seja bem-vindo, meu querido. Essa é a sua mais profunda e incurável experiência. Desfrute do consolo, enquanto outro de nós não chega”.
tatiana lazzarotto
Obrigada pela oportunidade de estar aqui.
Feliz e honrada por publicar um texto tão simbólico em uma revista que acompanho há tanto tempo. sigamos, ruído manifesto!