Um conto de Teresa Maciel Ferreira
Teresa Maciel Ferreira nasceu em Manaus, há 24 anos. Estuda Letras – Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Tem histórico como pesquisadora em Literatura Brasileira, com o projeto Erotismo e violência em Olhos d’água, de Conceição Evaristo, e como integrante do grupo de pesquisa Relações de gênero, poder e violência em literaturas de Língua Portuguesa. Publicou Funeral, no Entre linhas, memórias e outras passagens, segundo e-book do projeto Te conto em contos, além de ter sido coautora do artigo Lugares da Catástrofe: três espaços do horror em Gonçalo M. Tavares, pela revista Decifrar. Espera para ter pesquisa publicada no dossiê do LiterAmazônicas, cujo projeto inclui trabalhos escritos por e sobre mulheres da região Norte do Brasil. Trabalha como revisora de livros na Editora Valer. É escritora de Literatura.
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Angústia
A ansiedade, gritando em vozes tresloucadas, traduz meus maiores medos, dos mais assustadores, a loucura e a morte. A vontade de fugir impedida pelo corpo. A mente entristecida pelos maus tratos do tempo. A possibilidade de liberdade, mera ilusão. Fui criada por homem, quis igualar-me a ele, quem mais mentiu e ocultou meu real destino: a angústia. Pelo corpo, gordo e velho, indesejável. Velho à suspeita de qualquer cansaço por horas intermináveis de angústia do trabalho, muitas vezes não remunerado. O corpo é que não me deixa fugir, trair, e a mente sofre, pelo ódio ao que se vê no espelho. Escondo-me para não ouvir os comentários, quando não ingênuos, terrivelmente maldosos. E a saudade de engolir a ebriedade, misturada à lembrança de minha vó quebrando garrafas, ferindo pessoas, dormindo na rua. À lembrança de meu pai, com meu grito de louca, a ida ao puteiro. Com meu grito de louca, sabendo ter agido em ato irreparável, contra o maior amor da vida, minha: ele, meu pai, o que me ocultara a angústia, quero crer que para o bem da ilusão. Quedei-me ao lado de minha mãe, como não ousaria o contrário, como não trairia a mim mesma, à minha natureza de fêmea sempre traída, sempre temerosa pela traição. Desilusão é que digo, quisera eu ter sabido desde sempre o meu fiel destino: angústia! Quisera eu não terem me ocultado a verdade. Os privilégios, dos mais escassos, eram para o outro corpo, somente em razão de existir o outro corpo, pelo qual desejo e ardo, inflamo por mim, que já não sou. E nunca me disseram. Reneguei o homem que me iludiu, quem eu mais amei e quem mais me amou por ser meu duplo, e o igual não nos cabe nem nunca caberá. Iguais é que gostávamos de nos considerar: iguais em alma, amparo na dor, conforto na vida. Ou, eu. Eu gostava de considerar, quando amparada, sem nunca o ter amparado. Nunca me perdoarei por não ter feito, por tê-lo deixado amarrado à árvore, deitado na rede sem quarto, morto desde vivo porque morto pelo abandono. Fiquei ao lado de minha mãe, por quem nunca fui preferida, pois, parece-me, estar certa é mais gratificante que tudo. “Estar certa ou ser feliz?” Indagava a minha irmã, a cada membro isolado da família. Eu dizia: ser feliz. Mentindo, sem saber, até que meus atos demonstrassem toda a feiura do meu egoísmo, a minha pior face. Como pude tê-lo atingido, logo ele, com o pior dos tratamentos, a negligência? Logo ele, quem mais me amou por sermos iguais e quem eu mais amei. Fiquei ao lado de minha mãe, como nunca teria feito diferente, por minha natureza de fêmea traída, desrespeitada. A natureza que meu pai escondeu de mim, talvez por nunca ter sido tangível a ele nem isso nem nada. Só ilusão, só instabilidade, desde sempre. Os tons de Milton anunciavam o sentimento de morte por ser quem se é, por não ser mais quem se foi sem nunca ter sido. Amargurava-o a opção pelo casamento. O vício chamava, sempre, em consonância com as lembranças da juventude, como se sair para as ruas fosse o antídoto da velhice, das regras matrimoniais, das responsabilidades com as duas filhas, a quem nunca faltou, talvez à Olívia, mais parecida com minha mãe e por ela mais amada. Nunca faltou afeto nem presença, ouso dizer, mesmo tendo descoberto, eu, que coração é terra em que ninguém mais pisa. Por ser constante a inconstância, a inconformidade, ouvia-o nos domingos piores dias, os mais monótonos, de vazio quase absoluto, o Milton, clamando a nostalgia e a liberdade dos tempos da Casa. Nunca amou a mulher, melhor no trabalho, no ofício de historiadora, na oratória de professora, quem tanto a ele dedicou, cuidou, venerou, como tenho descoberto ser de praxe. Com ela, é que eu deixaria meus filhos, se os tivesse, com ela e com a cópia-amorosa, anjo, não com meu pai, nem se fosse vivo, posto serem elas, minha mãe e irmã, mais íntegras de personalidade. Nada reparou aquela ida ao puteiro e os meus gritos de louca, desnorteada, decepcionada com os erros do macho, tão característicos e repetidos, erros de vício, para além disso, os de adolescente egoísta, aprendiz dos privilégios concedidos à individualidade do sexo. “Eu não traí”, ele dizia, “Tu achas que eu conseguiria? O coração me fodeu”. De físico, “menos mal”, recordo ter pensado, deixando a lembrança do desrespeito para os momentos de banho hipnótico nada relaxantes, mesmo que finjamos a existência. Pela minha mãe, mulher traída, extensão de mim, mulher traída, fiquei com ela. A ansiedade grita em vozes de angústia por não existir ilusão que supra o peso da realidade da angústia. Desnorteada, absorta, em trejeitos dos meus mais característicos, de sol sem luz, de leão sem reino, de saudade do que eu era, fingindo ainda existir no que eu era, sem nada mais ser senão desconforto por nada mais ser, mergulhada em mais profunda depressão, posto ser mais profunda a mais moderada ou grave, leve ou grave. Grave, tudo. Coração é terra em que ninguém mais pisa. Ressoava a voz da pessoa raquítica que fez tanto estrago, nunca mais cantora, desde o começo dos delírios e agitações, revelando o descontrole da própria personalidade: ela, no mais alto grau de si mesma. Eu, no mais alto grau de mim. Eu no mais alto grau de mim, desnorteada, absorta, com trejeitos de sol apagado, de leão com fardo de coadjuvante da própria história, fingindo não entender o que acabava de ser dito, até que a mais nova quisesse dizer com palavras mais diretas: “Os infartos não deixam mais o pau subir”. E eu olhava o homem sem nenhum mérito segurando em vão o pranto mais sincero. O pranto mais sincero. Não por desrespeito a esposa e filhas. Não por ter procurado adolescente recém iniciada na maior idade. Adolescentes recém iniciadas na maior idade. Adolescentes: as mais fáceis de ludibriar. Eu mesma! Eu mesma assim o fui. Eu mesma. Eu! “Mais nova que eu, mais nova que a Olga”, eu dizia, abismada, sem tê-lo estado verdadeiramente, por ter conhecido, como é cruel, a angústia como destino. A angústia, sempre ela, em todo canto: ela. Em todo tempo. O corpo gordo sempre mentirosamente apreciado por ele, ou, pelo menos, ignorado às atribuições pejorativas, preterido ao corpo de adolescente, como nunca nos foi encenado ser possível. Queda da torre. Desmoronamento. “Deixa cair quando é para cair”, “Deixa desmoronar”, dizia sabiamente a mais nova, a mais esotérica. A fidelidade sempre nos foi encenada como possível. A estabilidade. A estabilidade no homem de alma mais instável, unido à mulher segura, de melhor trabalho, de melhor ofício, organização, estabilidade. Mulher sempre insegura, como sempre somos. E tudo em razão de a pessoa raquítica ter-nos feito entrar, todos, em estado de surto coletivo. Entrou, ela primeiro, em alucinação, em agitação, em esquecimento, atormentando a vida dos últimos que restaram para cuidá-la: minha mãe, primeira e única filha de coração, grata pela vida inteira, à mãe que não a pariu, à tia-mãe, que, depois, veio a tornar-se tia-avó, minha, de minha irmã, tia postiça de meu pai, a quem presenteou com o pior dos presentes, um espaço no terreno de sua casa, o que nos levou ao estado de presença em sua fase última, em que surtava ela e a todos, bando de depressivos hereditários, herdando as escolhas dos antepassados, destinados a sofrer antes mesmo de nascer; minha mãe, primeira e única filha de coração, eu e Olívia: únicas restantes na terra capazes de aguentar a criatura pequena e insuportável, mas amorosa, a quem fomos gratas, pelas garras manipuladoras de quem diz “fica”, escondendo o “eu vou precisar de ti quando ficar velha”. A quem fomos gratas e mantivemos quieta, isolada à casa, apartada de nós, até que veio o carma. O carma-consequência das escolhas de outrem, posto que creio serem as crianças isentas de culpa. Eles escolheram, antes de nossa vinda, e nós continuamos pagando dívida alheia. Tranco-me no quarto, nego o fardo. Olívia tenta abraçar as circunstâncias, tal como faz Eli, a mãe perfeita para a pessoa pequena, que não enxerga o carinho gelado em toda a sua complexidade, porque é, agora, criança, sendo velha. Também eu não o enxerguei, à minha época. Talvez ela tenha preferido o carinho estonteante, alegre, como boa adoradora do fogo e do vermelho, cor predileta, sem nunca ter desamparado a criança séria e retraída, que precisou ser adulta antes do tempo, já que a mãe que a pariu estava caída nas ruas, quebrando garrafas, ferindo gente, xingando quem dissesse “Dercy, já chega por hoje”, “volta para as tuas meninas”. E a criança obrigou-se a crescer rápido demais. Tornou-se séria e fria. O carinho gélido, percebi-o eu, como filha que o teve por recebido e o preteriu durante a maior parte da vida, mais tarde, em revelação amena, como verdadeira vocação materna, se é que existe: amor, só pode. Cuida quem ama. E Eli amava aquela criatura pequena, com eterna gratidão, com paciência. Todos nós, os outros três, que compunham o quatro encenado na estabilidade que tanto me fez feliz, surtando em comunhão com a pessoa demente. Dada uma vez aos bons tratos, controlada com as medicações, parece ser, simplesmente, ela, no mais alto grau: ela exacerbadamente existindo nela e matando aos poucos todos nós. Minha irmã gritando, à primeira vez, e chorando porque Z a xingou. Nós, loucas descontroladas, berrando com a senhora idosa, acometida pelo mal. Minha mãe calada em desgosto. Olívia gritava, chorava, quebrava a cadeira, na primeira vez. Meu pai, enfurecido, empurrava Z para longe dela, temendo o estrago emocional comum. Empurrava sem bater, preocupado com possível queda, característica dos idosos. Empurrava para dentro do quarto, esperando que o esforço fizesse calar a mulher, fizesse sumir a mulher, a mulher fonte de todo problema. Na segunda, gritava, chorava e quebrava os vidros todos da janela. Meu pai a ajudava a quebrá-los e sangrava com sangue fácil de anticoagulantes. Empurrava sem bater, empurrava mais com a cara e as falas agressivas. Cresci cercada por muitas mulheres, acreditando na ilusão de que eu e meu pai éramos iguais. Meu pai, o único homem do terreno, com mais oito mulheres ali vivendo, reinando, decidindo, por manipulação ou ordem direta, o funcionamento de tudo. Minha mãe, Eli, de vocação materna, se é que existe, preferiu, na verdade, e é inegável a quem pergunta-se, o talento para o trabalho, para a pesquisa e escrita como historiadora, para a oratória impecável, fascinante. Apesar disso, como talentosíssima, sempre fora atingida pela inveja azarenta. Meu pai foi quem eu mais admirei, pela estranheza e introspecção, pelo talento menos aparente, subjugado sobretudo por si mesmo, por não ter um pingo de amor próprio. Pelo choro, pelo abraço, pela raiva sempre seguida de um pedido de desculpas. Pelo choro e pelo amparo. Pelo choro, sobretudo. E me veio aquela notícia com as putas, com o desrespeito à minha mãe. Senti pena de mim por ter escolhido a pessoa errada para amar. A pessoa mentirosa, desrespeitosa. Eu, mulher traída, via-me inevitavelmente ao lado de minha mãe, mulher traída. E não sei bem se devia ter gritado com o pai como quem grita a um filho, como péssima mãe e como péssima filha. Gritei ao pai infartado, livre e traidor. Livre para sair sem rumo, sem satisfações, quaisquer que fossem, a ninguém. Livre para ser só, em egoísmo. Voltando, sempre alcoolizado, à pessoa substituta de sua própria mãe e de suas várias irmãs, que o cuidavam e mimavam mais que aos outros, por ser ele o caçula. A esposa, ridicularizada. Tudo em razão de a criatura pequena ter-nos feito surtar a todos, trazendo a verdade à tona. É a verdade que sempre dizem que sempre vem. E veio. A encenação de mais de vinte anos caiu por terra. E eu descobri que meu pai sempre quis ser o jovem da Casa, embriagado, nunca o pai e marido, comprometido. Posso chamá-lo de alcóolatra, posto que é. E depressivo crônico, para além de renal crônico e infartado. Estranho é que a superproteção moldou um homem sem confiança. E eu o admirava porque ele mesmo não percebia o quão maravilhoso era, o homem que tanto me amou, desorganizado, sonhador, clamando por liberdade, nos escritos lindos e autodepreciativos. Eu o admirava mais que tudo, em egoísmo, simplesmente por ele ser meu duplo, extensão de mim. Minha mãe atraiu-se por alguém a quem cuidar. Existe uma sina para cada um, um enlace neurótico. O que me atrai eu odeio, mas me atrai, inegavelmente, a alma grita, pulsa, me impede de ignorar, que o que eu odeio é o que me atrai. E vejo-me com um homem sem nenhum requisito para ter o meu amor, e, ainda assim, fico. Fico, mesmo que a pouca ardência de personalidade seja um martírio para mim, sem ser. O carinho gelado me prendeu e eu o xingo, xingo com todas as minhas forças, até o menino sentir dores no peito, parecendo “água que desce na garganta de maneira estranha”, como dizia meu pai sobre os infartos. Eu o xingo, desidratando-o com tanto choro, por tantos meses, agora anos. Ele me ama e é homem. E eu o odeio e sonho sonhos bizarros causados pelo antipsicótico. Em todos eles, sou traída. De todas as formas, traída. Meu espírito é atormentado pela existência ao lado do ser que eu odeio e que me ama, e não o deixo nem ele quer, sigo xingando-o, o homem lindo, de pés no chão, que eu tanto amo. Sério, escondendo o afeto com a indiferença mentirosa, xingo-o, para tirar o frio da aparência e trazer à luz o menino-choro, quem eu quero e por quem me atraio: o menino que se faz gelo para disfarçar o choro. Depois de anos, o mistério é pouco. Apesar do afeto, nunca as flores, nunca o êxtase, nunca o grito. E eu o xingo e o faço ter dores no peito. Xingo-o pela certeza de que fui traída, sem nunca o ter descoberto. Quedo-me, traindo-o, eu mesma, com as moças lindas de todas as formas, por quem me atraio pelo sexo e pelo afeto, em mente, sempre, em todas as vezes. Eu, horrível. Elas, as criaturas mais lindas. Quedo-me pelo afeto, a esse ser por quem guardo escárnio e por quem me atraio pelo afeto e pelo sexo. Pela seriedade. Pela razão. Por tudo o que eu mais abomino e por tudo o que mais me inflama, por ser eu sol sem luz, leão sem reino, adoradora do fogo e do vermelho, não da terra, sim. Sim, da terra! Terra-mãe, terra-irmã, terra-amor. Da fogo-tia-avó, de espírito romântico, tímido e espalhafatoso, herdei muito, talvez mais dela e de minha avó, terra-avó, adoradora do fogo. Meu amor é sádico e eu sofro com o peso de ser a minha pior versão, a mais feia, a mais egoísta, a mais destrutiva. Meu pai morreu. E, quando morreu, eu quis morrer junto. Lembrei dele amarrado à árvore, na rede sem quarto, dormindo com o cachorro. Morreu quem eu mais amei. E eu gritei como louca com o homem quatro vezes infartado.
Jorge
❤️