Um conto de Thiago Costa
Thiago Costa é historiador. Autor de O Brasil pitoresco de J.B. Debret ou Debret, artista-viajante (Multifoco: RJ, 2016), tem contos em antologias literárias publicados pelo país. É sedentário e prefere filmes ruins.
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Terra Adentro
Era tão gorda que partes do corpo fluíam pelo assento de plástico amarelo. Bebia coca-cola light e examinava com pequeninos olhos estrábicos os caminhoneiros que se reuniam todas as noites por ali. Pardacenta, um quinto de tonelada mais alguns gramas. Sentada próxima ao bar, aguardava com calma o fim do dia. Cabelos escuros alisados, blusa decotada, batom. Perfume barato. O céu vermelho como terra. O sol se punha por detrás das grandes plantações de soja do outro lado da rodovia. Antes eram girassóis. Agora é a espera. Da noite e dos homens. Logo haveria um desfile de carretas e de caminhões, de viajantes sem nome, de homens da estrada. Com sorte encontraria algum que não fosse violento. Poderia não bater nela. Talvez a penetrasse com cuidado, talvez um carinho. Por isso preferia os que vinham sós, os casados e há muito longe de casa e da família. Havia um não sei quê de abandono nessa gente sem pouso, uma ausência, um silêncio. Ela também era um ser sem rumo. Desde criança, desde antes da barriga da mãe. Sua lembrança mais antiga era de dor, os pés chagados pela marcha comprida. A fome.
Terminou o refrigerante e pediu um pastel de carne com banana. O odor de combustível, o cheiro de óleo que vinha da cozinha, das paredes descascando, do pátio sulcado. Comia. Enchia a boca. Teve desejo de manga. De fruta doce igual a manga ou a bocaiuva. Sua primeira vez foi no mangueiral. Tinha ido levar a marmita do almoço ao pai que fazia a roça. Limpava o terreno para o plantio de mandioca e de milho. Ele caboclo grande, forte. Ela com onze anos e o corpo crescido, de mulher pronta para a vida. Foi o que o pai disse. Mulher. Depois do pai, houvera outros. O tio, os irmãos, os amigos do povoado. Era bom. Gostoso. Estava pronta para a vida. Foi quando a mãe evangélica descobriu e a amaldiçoou para sempre e a chicoteou e a fez chorar. E o chão ficou vermelho como o céu. O céu de Cuiabá em tarde quente, em dias de incêndio. Fugiu. Perdeu-se. Caiu no mundo.
O sol se demorava no horizonte rubro como que esquecido. Escurecia. Limpou a gordura das mãos e dos lábios. Ajeitou os cabelos e a maquiagem. Pagou. Andava com dificuldade, passos lerdos, arrastando os pés. Era boa só para os assuntos do amor. Ágil feito onça, feito bicho do cerrado em seu ambiente natural. Deteve-se um segundo para respirar. Cigarras, grilos, sapos. Lascas de pneumáticos e o verde-escuro do capim silvestre bordejando a pista. Os carros passavam. Luzes. O pátio sujo do velho posto, tão velho quanto a própria Terra. Lugar de adeuses, pensou. De vidas provisórias, de homens fantasmas. Lugar de ninguéns.
Camisa aberta no peito. Fumava. Engolido pelas sombras mornas dos ingazeiros. Encostara-se a um dos troncos para aliviar as costas e as costelas que doíam. Dirigia já há muitas horas sem paradas, só para abastecer. Não estava cansado, se sentia bem. Disposto. Só essa dor, que incomodava. E a saudade. Uma saudade soiteira que lhe invadia o peito e sufocava. Nem sabia mais de quê, tinha vindo de tantos caminhos. Nasceu nas estradas. Filho de rapariga. De mãe solteira com pai motorista que só conheceu por fotografias. Foi criado pelo padrasto, caminhoneiro, em boleias de caminhão, em bordéis no meio do caminho, nos cercados distantes. Rodando. Sempre longe. Em uma viagem que nunca tinha fim.
Passou a mão sobre a cabeça tentando afastar os mosquitos. Os cabelos rareavam. Segurou sem convicção o escapulário com a imagem da Virgem e do santo Cristóvão que trazia dependurado ao pescoço. À frente via as lâmpadas e os postes que cortavam a escuridão das matas. A borracharia, o posto em que deixou a carreta, a carreta carregada de castanhas-do-Brasil que levava para o sul, o bar iluminado, sujo. Uma vila escondida entre a vegetação e a poeira. No interior dos centros do esquecimento. Talvez pernoitasse ali. Pensou na esposa com quem não falava mais. No pequeno barrigudo que aniversariava. A casa sem reboco em que punha os dois fazia tanto tempo com promessas de um amor que não tinha para dar. Escutou passos, ruídos, a conversa ligeira e abafada das gentes em torno. Um aboio longínquo, o berro triste de bois noturnos. Uma agonia, uma aflição que vinha das bandas da capital e se espalhava ao redor e adiante, que se expandia na noite. Com o vento. Encheu os pulmões com a fumaça poluída do cigarro. Quente. Lembrou dos canaviais incendiados em época de ceifa. O fogo alto devorando as florestas de cana-de-açúcar. A crepitação como canção de morte, a fumarada negra tomando conta de tudo, subindo as serras, incinerando as cobras e outros animais. Quando menino tinha medo. Parecia que o mundo inteiro ardia naquelas chamas empretecidas. Para afastar as cobras, diziam, facilitar a colheita.
Sentiu um cheiro doce no ar. Delicado. Atraente. A brisa leve balouçava as folhas das árvores. A boca encheu de água. Um frio no estômago. Uma excitação. Virou-se. Mulheres da vida, amores passageiros, da estrada. Simulou uma prece. Um agradecimento ou algo assim. Acenavam. Exibiam seus corpos gastos, prometiam felicidades. Afastou as orações com um movimento repentino. Sorriam. Sussurravam seu nome. Olhou ao redor. Vaga-lumes. Eita! Que vida igual a esta não existe outra! E riu sem fazer barulho, sua gargalhada silenciosa, para dentro. Sorriso banguela, a língua entre os buracos dos dentes, olhos acesos do rebite e da cocaína. Levantou-se, esqueceu a dor nas costas e nas costelas, jogou fora o cigarro.
Pelo espelho retrovisor via a lua. Redonda. Bonita. Derramando um colorido prateado sobre as coisas embaixo. Toca para onde, dona? Achou engraçado aquele modo de falar, perguntando para onde ia. Podia fazer em qualquer lugar, de qualquer jeito. Nas matas, nas ruas, escondida, à mostra. Com um, com três, com dez. Gostava. Queria gozar e gozava. Todas às vezes. O líquido vaginal em contato com o quente da porra alheia, restos de orgasmos dentro dela, fora dela, correndo entre pernas. Teve um arrepio. Qualquer lugar, respondeu, sem desviar o olhar. A lua brilhante lá fora. Um deslumbramento de mar, de oceano, de amplidões infinitas. Ele ligou o rádio, uma canção de amor e de despedida.
O negror do asfalto iluminado pelo clarão dos faróis. A madrugada crescia, gemia naquele sertão profundo, sem começo e sem fim, terra de incêndios, no misterioso país do Mato Grosso.