Um conto de Wuldson Marcelo
A Serenidade que Estraçalha os Ossos
Diana acordou cedo. Café na mesa, a mãe esquentava o leite. Fogo baixo, música também em volume baixo, cozinha iluminada à meia-luz. A garota, 18 anos, pensou que a vida era bem mais ou menos, tudo baixo e à meia-luz.
– Vai chamar a Tereza, senão ela não levanta da cama.
A mãe já estava uniformizada. Mais um dia para atender os clientes de uma panificadora no centro de Cuiabá.
– Vida mais ou menos, dona Sueli. Tudo baixo e à meia-luz.
Sueli fez uma expressão estranha, de incredulidade ou de raiva. Olhou para a filha e não reconheceu a menina que corria pela casa usando sua fantasia já desgastada de sereia, tropeçando a todo momento na cauda.
-Não é sereia, mãe. É Iemanjá; retrucava a pequena Diana, convicta em sua razão infantil.
– É Iara, guria; gritava Tereza, que tinha uma fantasia idêntica.
– Só não se esqueçam que Iemanjá não é sereia; sentenciava Sueli. – Iemanjá é símbolo de fecundidade, de vida. Já sereia devora os desavisados.
– Ué, que que eu disse?; respondia Diana, um tanto irritada.
Nessa época, Diana tinha 10 e Tereza 7 anos. Sueli lembrou-se do episódio somente para esquecê-lo em seguida. Sentia muita emoção e acreditava que se distanciou das filhas por causa do trabalho, labutando que nem um ser explorado para compensar suas faltas e as do pai de suas meninas.
Sem dizer nada, beijou a face esquerda de Diana, e depois caminhou até Tereza, que, ainda trôpega, comia o bolo de laranja com uma contida satisfação. Repetiu o gesto cotidiano do beijo em sua bochecha, também a esquerda, e seguiu para a lida diária. Seis da manhã, para um deslocamento, de segunda a sábado, de uma hora até a panificadora.
Diana estava fazendo um curso preparatório para o Enem. Da última vez que encontrou o pai, há dois anos, ele riu de sua escolha.
– Precisa de muita dedicação. Ser bem informada, e escrever não é fácil.
Ela pensou em ser jornalista. A mãe aceitou pagar um cursinho, o pai, à distância, desejou sorte, sem contribuir com R$ 1,00.
– Aquela lá tem tudo, Di; lamentou Tereza a respeito de Sabrina, a meia-irmã, de 14 anos.
Diana não respondeu, esboçou um sorriso para Tereza, mas o gesto morreu na intenção.
À noite, Diana estudava, notebook ligado, pesquisa na internet em busca de melhores fontes. Precisava se superar e dar uma resposta para o ceticismo do pai. Porém, em sua mente, a frase de Tereza, “Aquela lá tem tudo”, ganhava traços, linhas, contornos e sombras, muitas sombras. Seria o ódio brotando? A inveja se manifestando? A pensão era suficiente apenas para as despesas mais prementes, com educação e saúde. Cursinho preparatório, não. Enquanto isso, Sabrina já conhecia São Paulo e o Nordeste. Quantas vezes sentiu vontade de colocar fogo na revendedora de automóveis do pai. Agora, não mais. Desistiu de entender o sentimento que a dominava. Só sabia que não era nem ódio, nem inveja.
Um dia, Diana e Tereza encontraram Sabrina em uma festa no Santa Rosa. Coincidência elas terem um amigo em comum. Sabrina estava com o namorado, um rapaz alto, meio desengonçado, mas bonito. As irmãs olhavam os cabelos pretos lisos de Sabrina, que, diferentemente delas, não assumiu o cabelo black power. Elas concluíram que havia mais dessemelhanças que similaridades entre elas, não conseguiram descobrir nada que as aproximassem. Um aceno de longe, um meio-sorriso. Nada mais naquela noite insólita.
– Tudo baixo, entre meio-sorrisos; lamentou-se Diana, que não teve coragem de convidar Sabrina para conversar.
Mais uma manhã de calor em Cuiabá, e a assalariada Sueli deixou o café da manhã pronto para as filhas. Diana recebeu o beijo na face esquerda. Quando a mãe saiu, ela ficou refletindo sobre o que a angustiava, a respeito dos pesadelos da mãe e de Tereza. Certamente a falta de amor, um pai ausente, a expectativa do futuro e um emprego marcado pelo sacrifício devem causar calafrios e crises de choro. Já a mãe de Sabrina era filha de um general. O que Diana sabia era que a mulher tinha um consultório odontológico, e que, no dia em que casou, tornou-se dona de casa. O que Diana sabia era que o pai, depois que vendeu o terreno herdado do seu severo genitor, decidiu sumir no mundo. Sumir entre aspas. Simplesmente abandonou a família e foi viver com a dentista que tinha acabado de realizar um clareamento em seus dentes. “Ele que se dane!”, declarou a si mesma a sentença, desejando condenar o pai ao esquecimento.
Diana percebeu que Tereza andava meio-inquieta como se guardasse um segredo, algo imponderável que não poderia ser relatado, no entanto, a sua revelação também não significava um crime abominável. Se a interrogasse, saberia a verdade oculta pelo desassossego.
– Que agonia tá neste coração, menina?; perguntou Diana, com calma.
– A Sabrina. Eu conversei com ela. É uma boa menina. Só que tem um defeito. Acha que o pai é um bom homem.
No dia seguinte à conversa com Tereza, Diana acordou cedo, tentou se recordar do último abraço que recebeu do pai… o dia especial não lhe veio à mente. A mãe ainda dormia, Tereza roncava. Ela foi até a cozinha e começou a preparar o café. Teria um dia árduo de estudo e a mãe de trabalho. Assim que Sueli despertasse, encontraria o café pronto, o bolo de fubá e o suco de graviola já na mesa. Depois, Diana despertaria Tereza, aluna do ensino médio, e proporia com delicadeza e firmeza a inversão da cena de carinho matinal, sendo que as filhas beijariam a bochecha da mãe que parte para o trabalho.
– Ela não tem tudo… Não viu a mãe dela fazer sacrifícios, e ainda acha o pai um bom homem. Nunca vai saber o que é dividir o material escolar e as roupas com a irmã; pensava Diana, querendo chorar, mas as lágrimas se recusavam a sair.
Ela então percebeu que não tinha inveja, nem ódio, apenas a serenidade de reconhecer o afeto por quem a criou e de não sentir a falta de quem escolheu se ausentar. E essa serenidade às vezes estraçalhava os seus ossos de tão pungente.
Diana e Tereza beijaram a bochecha esquerda de dona Sueli, que, apesar da felicidade, só pensava em mais um dia de trabalho para corrigir os seus erros e a do ex marido.
(Ilustração de Sevell).