Um conto distópico de Marianna Marimon
Marianna Marimon, 29, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).
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perdigotos
antes as histórias eram contadas em diferentes mídias. celulares, computadores, televisores, sites, revistas, livros, rádio. histórias que chegavam em questão de segundos, percorrendo longas distâncias e conectando as pessoas em todo o mundo. agora, contamos histórias dentro de nossas próprias mentes. até os tradicionais contadores de histórias não podem mais recorrer à oralidade. é preciso silêncio, se mover em silêncio, dentro das normas estipuladas em uma sociedade que se entranhou em si mesma. da janela do meu apartamento escuto o barulho de um enxame de abelhas. mas estou em são paulo, aquela que era a maior cidade, hoje é uma ilha de concreto. não há abelhas sobrevoando os céus… são os drones de vigilância que cruzam os ares a monitorar os cidadãos em suas residências. no começo do ano de 2020 a humanidade não poderia conceber situação tão distópica. quando a crise da covid-19 começou, muitos não acreditaram no potencial da doença, mas a sua transmissão acelerada fez as coisas mudarem mais rápido do que podíamos assimilar. ainda seguíamos trabalhando nas estações adaptadas que criamos em nossas casas, ainda era preciso produzir, quando fomos atingidos por novos decretos dos governos. depois do isolamento social, veio o lockdown. para sair às ruas precisávamos estar munidos de autorizações especiais, emitidas em sites específicos, criados para atender a demanda da população, que pressionava para voltar a dita normalidade… não aconteceu. com o lockdown, muitas pessoas foram presas e encaminhadas para as novas prisões, emergencialmente abertas para tirar a liberdade daqueles que se recusavam a perder a sua liberdade de ir e vir. as estações de trabalho adaptadas se tornaram verdadeiras prisões. a partir daquele dia, tínhamos que ficar em nossas casas, ou onde estávamos, não podíamos mais sair. os drones garantiam o monitoramento contínuo de todos os cidadãos e projetavam em nossas mentes aquele barulho de enxame de abelhas ensurdecedor. o básico dos alimentos nos eram deixados em nossas janelas por outros drones, os chamados drones de abastecimento. assim como remédios e outras necessidades urgentes. olhar pela janela era ver o vislumbre de um mundo que não existe mais… as ruas continuam ali, mas estão inertes, seu uso foi abolido da rotina de todos, ou pelo menos, de quase todos. penso no último dia que fui fazer compras no mercado. não imaginaria que ficaria mais de 365 dias sem sair de onde estou. estou só. levaram os animais de estimação, sem maiores explicações… penso nas minhas gatas, será que estão vivas? bem alimentadas? será que um dia nos veremos novamente?
pensamos que este era só mais um vírus de gripe, ainda que com uma letalidade maior, realmente acreditamos que a cura seria descoberta, ou ao menos tratamentos com remédios seriam eficazes. não contávamos com as inúmeras mutações do vírus. não imaginávamos que cada pessoa que adquirisse o vírus o transformaria em um vírus novo, com um potencial de se modificar a cada corpo infectado, fazendo com que fosse impossível de prever seu comportamento ou encontrar uma maneira eficaz de liquidá-lo. algumas pessoas davam a sorte de não apresentar sintomas, mas as que apresentavam, precisavam dos hospitais para respirar. quando as notícias ainda passavam e existiam jornais, pensamos que luvas e máscaras nos protegeriam, mas ir aos mesmos hospitais era a garantia de contrair o vírus em suas infinidades de mutações… era escolher entre morrer em casa ou morrer no hospital. um número deveria ser acionado em caso de emergência por infecção ao vírus, e logo, drones de resgate chegavam para levar aquela pessoa… mas não sabíamos mais se existiam vagas nos hospitais, ou se ainda existiam hospitais… o certo era que quem ligou para aquele número, nunca mais retornou. sei disso. já vimos acontecer antes nesse prédio onde estou.
penso que aqui, lá pela década de 70/80, era um hotel. o apartamento é pequeno, por volta de 35 metros quadrados, equipado com uma cozinha, um banheiro e uma varanda. tive sorte de estar aqui quando o lockdown chegou. não sabemos o que aconteceu com quem estava na rua… se puderam voltar para suas casas, se foram levados para as novas prisões, ou hospitais para serem testados… separaram os saudáveis dos doentes… imagino que sim, porque desde que tudo começou, não apresentei nenhum sintoma da doença. se seu corpo muda de temperatura, os drones conseguem detectar escaneando todos os prédios, de 15 em 15 minutos. se a sua temperatura corporal muda, se você tosse ou espirra, um drone chega rapidamente para testá-lo. se deu positivo para o vírus é retirado do local, que é imediatamente desinfectado, e todos os outros moradores são testados. dizem que o vírus pode ficar voando nos ares durante algumas horas, até se agarrar a alguma partícula e permanecer vivo por dias… por isso ninguém mais pode sair… para sair é preciso requisitar essa autorização especial. eu mesma nunca consegui. solicito uma ida ao médico para examinar meu ouvido, sinto um chiado constante que fica insuportável com o barulho do enxame de abelhas… até agora não obtive resposta… afirmam que a saúde pública está voltada para atender aos contaminados, mas realmente não temos como saber o que acontece lá fora.
um dia, depois de 2 meses sem autorização para sair de nossas casas, uma movimentação na rua começou a surgir, ouvi gritos vindo das outras janelas e fui até a varanda… uma pessoa corria na rua, perseguida pelos drones de vigilância que acionavam alarmes e sirenes, avisando que se não parasse, seria impedida. não tenho como saber o que esse impedimento significa. depois de alguns minutos, o som desapareceu… não havia mais o enxame de abelhas, nem o trepidar de pés desesperados avançando pelo chão, nem sirenes ou alarmes, nem vozes robóticas mandando indivíduos pararem para não serem impedidos… seja lá o que isso significa.
meu trabalho não é mais o mesmo. eu costumava ser jornalista, escritora, poeta… agora conto a quantidade de alimentos para serem distribuídos nas zonas 99 até 120. preciso verificar os pacotes recebidos e os que serão encaminhados. nem todas as semanas temos os mesmos produtos… as vezes temos arroz, nem sempre temos feijão, mas temos muitos alimentos ultra industrializados, como macarrões instantâneos, bolachas e sucos adocicados. não recebemos verduras frescas… recebemos uma ração humana como base alimentícia, três pacotes de macarrão instantâneo, um pacote de bolacha, dois sucos de alguma substância não identificada. se as colheitas de arroz e feijão podem abastecer o mercado interno estão na cesta, mas são alimentos cada vez mais escassos… as minhas últimas reservas estão acabando. como muito pouco e durmo mal, trabalho mais de 10 horas por dia, conferindo estoques e entregas, recebendo os pedidos e analisando.. é um trabalho que não tem fim. não sei o que outros fazem, mas acredito que quase o mesmo que eu… só que para outras demandas e áreas.
conto essa história na minha cabeça para não me esquecer do mundo em que vivi… andava a pé todos os dias na rua, respirando aquele ar poluído, mas era livre, escutava música nos meus fones de ouvido, chegava ao trabalho, lia notícias, falava com as pessoas que eu amo, sabia o que acontecia lá do outro lado do globo, comprava pão fresco na padaria, tomava café, via filmes, comprava livros em sebos, almoçava e jantava em lugares diferentes, e valorizava uma boa comida no meu fogão… a gente se apaixonava. e podia se tocar. sinto falta do toque, de outras peles que não a minha, de olhar fundo em outros olhos que não os meus, de dividir silêncios e risadas… sinto falta de tanta coisa que não posso descrever…
graças à tecnologia que proporcionou o mapeamento facial, o controle remoto das geolocalizações, e os inúmeros aparelhos que usávamos, os governos conseguiram nos restringir aos nossos “campos de acesso”. o meu campo de acesso são esses 35 metros quadrados… estou restrita a este ambiente. separo as roupas de cama sujas com meus uniformes e deixo na varanda, onde serão recolhidas pelos drones de limpeza. esses mesmos drones fazem a inspeção de nossos ambientes, que precisam ser minuciosamente limpos.
lembro que minha preocupação com os drones era mínima… até achei curioso como começaram a usar o dispositivo no modo “falante” para evitar aglomerações… isso foi no Rio de Janeiro e naquele momento não teríamos como imaginar o que estava por vir. penso que devia ter ligado para a minha mãe naquela noite, quando as operadoras ainda nos permitiam fazer ligações. não nos preocupamos mais com contas, o governo cuida de todas, sabe-se lá como, mas nos mantém ocupados para mantermos essa nova estrutura abastecida e funcionando… sei que ainda existem trabalhadores que podem viver ao ar livre, mas devem ser poucos, afinal, até as lavouras foram automatizadas e um único funcionário pode programar e monitorar tudo, do cultivo à colheita… o lado bom é que escuto os pássaros que vivem na pequena floresta atrás do meu prédio. lembro que antigamente, antes mesmo de ter adotado minhas duas gatas, eu dava frutas para os passarinhos. um dia eu os vi na varanda de casa e resolvi deixar mamão e bananas… no outro dia acordei com as frutas totalmente destruídas pelas bicadas esfomeadas. não temos mais acesso à Internet, o que temos hoje é um sistema do governo, que remotamente modificou todos os dispositivos dos cidadãos, nos tirando totalmente do controle de nossas vidas… ou do que achávamos que tínhamos controle… as câmeras de celulares e computadores servem para nos conter e nos avaliar, com a ajuda dos drones, que cerceiam o espaço externo… penso que se todos os prédios fecharam, os funcionários do governo, em todas as áreas, permanecem onde estavam, então médicos e enfermeiros devem estar nos hospitais, mantendo-os em funcionamento… mas qual foi o alcance dessa mutação do vírus? estariam todos imunes? não, muitos devem ter morrido ou sucumbido à loucura do enclausuramento. eu contei todos os grãos de feijão que tinha em casa e racionei em pequenas porções. eu tinha, orgulhosamente, mais de mil grãos de feijão, e em menores quantidades, lentilha e ervilha. até cheguei a cogitar a hipótese de escambo por outros produtos que eu ansiava, como café ou chocolate… mas não temos contato com os outros moradores. até se cantarmos somos identificados pelos drones que se botam de vigília em nossas janelas. no começo ainda podíamos ouvir as panelas batendo, todos os dias, no mesmo horário, 20h30, mas depois, pouco a pouco, elas foram sumindo… tenho dúvidas se as pessoas foram “impedidas” pelos drones, recolhidas, elas ou as panelas, ou mesmo, se apenas cansaram de bater em vão e protestar por melhores condições de vida… a verdade é que realmente… o ser humano se adapta a tudo.
o meu campo de acesso é também a minha estação de trabalho remoto, é por isso que entendo que outros trabalhadores devem estar em presença física em algum lugar, desenvolvendo alguma atividade da qual eu não tenho conhecimento, e talvez não tenha nunca… quando penso em governo, também não sei se devo me ater ao que até então existia no mundo, não sei se o governo é o mesmo como o conhecíamos, se está dividido em esferas, ou se é ainda baseado no estado-nação… chego a conjecturar que as grandes corporações podem ter tomado conta de tudo quando o momento se mostrou conveniente… afinal quem mais faturou com a crise? as empresas de tecnologia que vendiam os equipamentos e ferramentas de segurança para esses mesmos governos… o que eu sei é que muitas teorias da conspiração surgiram antes de perdermos nossos acessos, e a grande maioria estava ancorada na realidade, em fatos… é fato que a coreia conseguiu contornar a expansão da doença através de aplicativos no celular dos cidadãos, onde podia monitorá-los, seus passos e as pessoas com as quais se relacionou, formando uma intrincada teia de acontecimentos dispersos, e reunindo todos os dados possíveis. penso que muitas notícias não chegaram a nós nos momentos anteriores ao lockdown… lembro de uma informação veiculada em jornal sobre testes de segurança feitos por outros países, enquanto os estados unidos tentavam conter a proliferação do vírus… aquele era um indício de que tudo mudaria mais depressa do que prevíamos… foi um dos inúmeros indícios. e agora, em perspectiva, penso que todos os sinais do que aconteceria no mundo estavam ali, e nós é que não soubemos ler, talvez sejamos ingênuos demais… outro pensamento recorrente é sobre as ilusões que alimentamos de conseguir vencer o sistema capitalista, a concentração de renda, a desigualdade, a miséria… nós chegamos a dialogar sobre um mundo mais justo e harmônico, respeitando todas as espécies e formas de vida… mas enquanto pensávamos em utopias, os gigantes se moviam depressa para assegurar o poder… não penso que se trata apenas sobre riqueza material, mas sobre poder. a sede de ditar os rumos da humanidade no planeta Terra. essa sede nos trouxe até aqui.
sei que ainda somos o celeiro do mundo, nossa tecnologia e ciência não conseguiriam bater os países desenvolvidos. a nós cabe a tarefa de alimentar as bocas não mortas de fome. essa e outras conclusões eu tirei analisando os dados que chegam até mim sobre abastecimento de alimentos… não produzimos mais verduras como antes, ou se produzimos, não chegam até nós… disponibilizam uma cesta semanal por campo de acesso, de acordo com o número de habitantes. assim recebemos o nosso principal alimento: uma ração humana… creio que feita de soja, o gosto é parecido, e também porque nossas plantações hoje se restringem a arroz, milho, feijão e claro… soja. a maioria é exportada, e o que sobra é consumido internamente, por isso nem sempre sabemos se vamos contar com arroz ou feijão. são alimentos que temos racionado ao máximo. também é importante economizar a comida, pois já ficamos algumas semanas sem receber novas cestas. penso no último dia que comi laranjas, a boca lambuzada feito criança que descobre o doce da fruta. parece outra vida, outro mundo. também não recebemos sal, açúcar ou temperos. condimentos são artigos de luxo. mas temos uma quantidade absurda de produtos ultra industrializados, apesar de sabermos há um tempo que não se tratam de alimento, de comida de verdade… e mais que nunca a saúde é importante… ninguém quer descobrir para onde levam os doentes…
eu costumo pensar muito no jogo sujo do poder, na geopolítica, e como essas forças se moviam e forjavam nossas vidas, totalmente alheias aos nossos quereres… de certa forma, já não tínhamos muita liberdade, mas agíamos como se tivéssemos algum controle sobre os acontecimentos do destino. reflito sobre o que estava para acontecer naquele ano. era ano de eleição nos estados unidos, e aquele que se recandidatava já era conhecido por suas artimanhas de mexer as peças nos tabuleiros sem se importar com direitos… mais teorias da conspiração para passar o tempo desse dia sem fim que nunca acaba.
temos poucas informações, algumas vezes os drones fazem anúncios com suas vozes robóticas automatizadas. nada de muita importância, mas como lembretes de que precisamos ficar dentro de nossos campos de acesso. não temos acesso à internet, mas temos uma programação cotidiana de filmes e séries, que são transmitidos remotamente em nossos aparelhos de televisão. não escolhemos e não temos como mudar de canal. é esse dito governo que seleciona o que assistiremos. os filmes geralmente são comédias enlatadas, pronta para consumo imediato.. algo que não nos permita o pensamento crítico, tampouco a reflexão, é meramente uma válvula de escape, uma maneira de nos manter contidos e livres das tentações de buscar uma forma para voltar à nossa vida anterior. eu ainda espero o dia em que eles virão tomar meus livros, mas creio, que a orientação é evitar ao máximo o contato entre seres humanos, por isso, fomos presenteados com a possibilidade de manter o que temos em nossos campos de acesso.
algumas notícias antecipavam o desenrolar dos fatos. diversos países começaram a agir como piratas desbravando os sete mares. os saques marítimos e aéreos visavam as preciosas unidades de respiradores, que decidiam o destino de todos os seres humanos. esse fator decisivo era conhecido desde o início da crise, mas as perseguições surpreenderam a todos. quando ainda havia leis, as aquisições dos governos ficavam presas em alfândegas, com as amarras invisíveis da burocracia a determinar o que entra e o que sai – ou quem vive e morre. a pirataria moderna parecia ter surgido de um enredo, de um roteiro cinematográfico. as imagens ao redor do mundo mostravam os cargueiros enormes, as armas potentes, os caças sobrevoando os céus… todo o inventário do poder usado para intimidar os oponentes. é claro que nesse jogo de vida e morte, muitos se atiraram sem pensar duas vezes… afinal, se antes o dinheiro era o que mandava, agora a força bélica, industrial e tecnológica ditava as regras. dinheiro é meramente papel e um papel que não serve nem para limpar bundas.
o que é preciso imaginar, agora, é o tamanho do caos e do estrago que reinava naquele momento, antes de sermos enclausurados em nossos campos de acesso. não lidávamos apenas com o vírus mutante e potencialmente mortal, mas, uma luta insurgia contra o ódio, contra o preconceito, o racismo, e o fascismo. o projeto dos governantes era claro: necropolítica e higienização. quanto mais pessoas vulneráveis morressem, melhor para aqueles que estavam no poder. as pessoas não morriam só da doença, morriam todos os dias pelas mãos das forças oficiais de segurança. quando a polícia entrava na periferia era bala “perdida”, afinal, não interessava se acertasse uma criança ou um traficante, o que importava era morrer gente. tinha que morrer gente. menos dinheiro para gastar com esse bando de vagabundo. sic. eu sigo me questionando sobre o modo como estávamos levando nossas vidas, o que fazíamos com a nossa dita liberdade, como lutávamos ou nos esquivávamos para o silencio sepulcral das feridas que ainda sangravam. cada dia, uma nova cascata de notícias perturbadoras sobre o rumo das coisas… eu imaginava uma guerra civil, e não um mundo orwelliano. nós menosprezamos a capacidade de controle e vigília da sociedade que criamos, da sociedade da informação.. e foi precisamente isso que nos venceu.
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(Fotografia: José Luis da Conceição)