Um croniconto de Bruna de Camargo
Bruna Areias de Camargo nasceu em Santos, São Paulo, no dia vinte de setembro de dois mil e um. Em uma vida de vaivéns, aos cinco anos de idade veio para Cuiabá, mas chegou a passar alguns momentos, também, em Curitiba. Hoje, aos vinte anos, ainda reside na cidade mais calorosa do Brasil. Cursa Letras (Literatura) na Universidade Federal de Mato Grosso e é encantada pela ideia de ser professora um dia, para poder compartilhar com o mundo um pouco da sua paixão pela língua e por sua escrita. Tende a escrever com melancolia e ainda não conseguiu encontrar um final feliz que coubesse em suas histórias – há algo belo no trágico, afinal.
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Gaia
Coisa alguma que não inventada, imaterial e palatável, sanguínea e visceral, pedaço de chama, filha da ira, criada pelo quebrar de ossos e fruto do som gutural da guerra dos homens. Vício que baila pelos espinhos das clavas e pelas pontas das lanças, febre alimentada da macia carne cortada por espadas afiadas.
Devore o coração amedrontado da não mais tão casta rainha da pureza. Eva foi feita para ser saboreada, afinal. Deguste-a, tome-a para si. Maçãs vermelhas não se dão apenas em macieiras, os pomares são outros quando o corpo padece da fome. Permeie-a o ventre, traga consigo o fim.
Deite-se sob Caim esta noite, envenene seus punhos com a sua maldição, arruíne-o, como também aos homens. Quebre seu pescoço, lamba as lágrimas vermelhas que decoram suas arredondadas bochechas. Você o matou, agora ele pertence a você.
Olho por olho, dente por dente. Dentes, unhas e vísceras expostas ao chão de terra ensanguentado. Colete todas elas, as almas que encontrar pelo caminho. São suas antes de pertencerem a qualquer outro, ó mãe do ódio mundano.
Suprima a piedade, tudo está vermelho. Não há tempo para o amanhã, como haveria? Sequer há o agora, momento pérfido e pútrido. Vermelho, apenas vermelho, como o sangue que goteja das nuvens na manhã do fim do mundo. Mas não é apenas isso.
Decepe, atire, exploda. Esteja lá. Nas frias peles dos mortos, nas odiosas íris dos que os mataram. Transforme-se dentro de suas mulheres, deixe que venham ao mundo os filhotes da besta sem chifres, com cinco dedos em cada mão e um latente coração permeando-lhe o tórax. Homens. Humanos. Você os tem enrolados em seus dedos.
Fantasma da mortalidade, seja o ardor de uma paixão vibrante, o calor que sua pelos olhos cruéis e agourentos de um amante traído, os nós esbranquiçados dos dedos dele, o rosto pálido e sem vida dela, que partiu de lábios cerrados e olhos abertos. O que viu em seus momentos finais? Que a face do fim seja teu rosto, esculpido em mármore pela eternidade.
Atire pedras e palavras, empurre a mente ao limite do abismo. E, quando o homem finalmente despencar, mastigue-o e o engula sem medo, recolher-se-ão os fragmentos dele, se tornarão um valente brado de guerra, gritado por pulmões trêmulos no mais frio dos invernos. E você estará lá, mais uma vez, manipuladora mestra das marionetes, para roubá-los de si mesmos. Delicie-se nas guerras que travam, em uma delas, eles irão acabar.
Desde os primórdios da Terra, a violência prevalece. É o que é e o que será. Que estimada seja tua coleção de males e pestes.
Você, vírus humanamente irremediável, está dentro deles. E dentro de mim. Manipule-os e exista até o último dia, renasça a partir deles. Quando formos embora, tu restarás.
Habite sozinha um planeta corrupto. Você o corrompeu. Silenciou-se o eco que eram as vozes, o vento agora pode fluir livremente, o destino seguiu seu curso. Findamo-nos a nós mesmos, somente tu prevaleceste.
Prefácio e epílogo da Terra, raiz que enterrou o último corpo no chão de asfalto. Você venceu.