Um ensaio de beatriz rgb
beatriz rgb (Beatriz Regina Guimarães Barboza) é doutoranda em Estudos da Tradução na UFSC — trabalhando com os estudos feministas de tradução e/m queer —, assim como tradutora, revisora, escritora e editora. publicou a plaquete with a leer of love (Macondo, 2019), traduziu com Meritxell Marsal o livro Desglaç, de Maria-Mercè Marçal, como Degelo (Urutau, 2019) e publicou outros livros, de poesia: quartos esvaziados (Urutau, 2015) e Entre rios (Kazuá, 2017). edita a Pontes Outras com Emanuela Siqueira e Julia Raiz e, também com esta, a revista Arcana.
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Descongela sua casa com a língua
I am the searchlight
not the seeker, not the found
(“V [Island Song]”, These New Puritans)
Foi no Twitter que perguntei sobre literatura vaporwave, já que vir morar em Florianópolis me levou às sampleagens de Saint Pepsi e Infinity Frequencies, um lance híbrido — e possivelmente queer — de entidades artísticas no espaço digital que jogam com diferentes tempos misturados. E logo me responderam: leia A dakimakura flutuante, do recifense Camillo José, e ele realmente bota no papel aquilo que eu percebia na tela. Conversar com ele me mostrou a sampleagem em Ana Cristina Cesar, geminiana tradutora de Tarô ou a Máquina de Imaginar do Alberto Cousté, como se cada poema fosse o verso de uma carta de baralho a ocultar algo sem esconder a sua face. Especificamente, o Camillo me falou do poema “Nada, esta espuma” — que ele nem imaginava ser um de meus preferidos e, apesar disso, nunca havia desvirado a carta, influenciada pelo Lorca na escuta de sua frase “Solo el misterio nos hace vivir. Solo el misterio” —, revelando-me que Ana C. fazia referência ao poema “Salut” do Mallarmé, aqui na tradução de Augusto de Campos:
BRINDE
Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.
Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;
Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde
Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
um branco afã de nossa vela.
Se o recife de Mallarmé na boca de Haroldo parece o desafio da condição navegante-poética — alô Xerxes que dá o peito às ondas, ainda que isso seja uma provação masoquista para quem sabe construir barcos, sugeriu Bachelard —, o Recife de Camillo é “psycho killer na praia de boa viagem/ desovando caranguejos e amendoins// there is a mormaço that never goes out” e me lembro de escutar “There is a light that never goes out” no último ônibus de uma noite quente e úmida, na linha 137-Volta ao Morro/ Pantanal Norte, depois de um péssimo encontro no bar sapatão La Kahlo — e antes de ter dimensão da problemática política do Morrissey. De um litoral ao outro, volto ao desejo no poema da Ana C.:
NADA, ESTA ESPUMA
Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.
Na hora de transcrever esse poema, inconscientemente digitei “aprofundamento” ao invés de “afrontamento”, talvez porque chame para perto mais Escorpião do que Áries, ainda que venham ambos e sejam bélicos. Teimamos constantemente. Escorrendo uma paixão entre mulheres, a boca da poeta junto aos seios da sereia aqui ressoa em Maria-Mercè Marçal, escorpiana de 1952 — nisso soube que Ana C. é geminiana de 1952, eu geminiana de ascendente em escorpião só sinto —, em nossa tradução, de Meritxell e minha:
Te amo quando te sei nua como uma menina,
como uma mão ao léu, como um reclamo agudo
e terno que chamasse de uma rama nua,
como um peixe que esquece que existem anzóis.
Como um peixe assustado com o anzol na boca.
Como o estrago no olho da criança mutilada
no sonho, na carne. Como o sangue que escorre.
Nua como um sangue.
Te amo quando te sei nua como a navalha,
como uma folha oferecida, como um raio
que a calcina, cego. Como a erva, como a chuva.
Como minha sombra, nua no espelho gelado.
Tão nua como um seio grudado aos meus lábios.
Como o lábio aberto de um velho desdentado
que encara a morte. Como a hora desarmada
e aberta do degelo.
Da espuma ao gelo que derrete, insiste-se no verdadeiro querer, ainda que mutile no conflito, ainda que limite diante da incerteza. Porém, pouco sobrevive à postura que não se desarma: a hora do degelo chama à abertura que larga as facas. Com sede, buscamos os seios e oferecemos os nossos. Talvez seja preciso um certo esquecimento para apaixonar-se novamente, da ideia de si e das armadilhas de fora, que nos retorna a um velho confronto com o espelho e sua desilusão sem que isso nos force ao fragmentar-se. Apesar disso trago metade do poema “uma mulher que queria ser sereia” da Rita Isadora Pessoa, que me lembro tão bem de ser lido na voz da Lisa na praia do Leme numa noite de março:
uma mulher com um sentimento atlântico
que a decompôs
em territórios submersos
e pelo menos três continentes
a percorrer
num salto geográfico
uma mulher que não é uma ilha
mas está cercada de água por todos os ângulos
Uma mulher de tanto sentimento, em si e ao redor, dissolvendo atlante, me remete à Ana C. tradutora, que torna seu “Cisne” de Baudelaire — o primeiro poeta que li porque muito o lia a primeira mulher que amei — permeável às suas próprias experiências e leituras do tempo. Ana C. traduz de inúmeras posições, como disse o Álvaro Faleiros, como as águas que são o espelho do meio, como Evelyn que fica entre a água e o céu, e a água e a terra, no poema da Cecília. Mas há um perder-se para encontrar-se, como Ana C. traduziu
na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma
conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na
cidade, garganta ressecada,
talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num
instante esquecem que esqueceram e escapam do mito
estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades,
e olham de viés
o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem
poderem dizer que voltar é impreciso, desejo
inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.
E aqui me detenho, no alaúde sensível que ressoa assim que alguém o toca, como aquele na epígrafe do Edgar Allan Poe pro conto “A Queda do Solar de Usher”. A sede segue, chama-se tanto que se perde a voz, enrouquecida, e a mulher que é menina e navalha e peixe, amada no poema da Marçal, aquela que esquece que existem anzóis, é o bicho que esquece que esquece, porque escapar do mito estranho e fatal da terra amada é libertar-se da forma como fomos ensinadas a amar e assim poder imaginar para além dessa estrutura familiar. Nisso, lembro-me do texto de abertura à tradução de As metamorfoses de Ovídio — que fiquei incentivada a ler por conta de Jules e Elisa — em que Eliana De Carli, Thaís Fernandes e Zilma Gesser Nunes resgatam a seguinte passagem de Os remédios do amor, também de Ovídio, “aprendei a vos curar com quem aprendestes a amar”. Hoje mesmo, curiosamente, estava a ouvir sobre os rituais poéticos de CAConrad de que Jules me falou — por causa de meu ritual de levar água salgada e narrativas em garrafas, o mar maior —, e ele contava sobre esses rituais como processos de cura. Lembrei-me de conversar sobre isso com a Nayara uma vez, como se cada nova paixão chamasse o aprendizado de uma nova língua, e aprender outras formas de dizer pode nos fazer observar como falávamos antes e, ao revisitar esses lugares, sobrepor novas imagens, curando-nos das memórias daquilo que antes os havia percorrido. É por isso que costumo voltar aos lugares onde estive com as paixões que já não são mais, e busco dizer que é preciso, e o desejo, acabado como era naquele tempo, pode ser outro, nesse cruzar a ponte sobre o rio entre eu e a outra, você e outre. Aqui volta Marçal em nossa tradução:
Como o assassino que volta ao local do crime
tendo perdido memória e esquecimento
e no limiar encontra quem achava morto
e se faz seu escravo sem saber por quê
e torna-se cão, e vela pela sua casa
contra a morte, contra esse ladrão ausente
que pode roubar o preço de seu resgate:
assim retornava eu ao local do amor.
Talvez se não voltarmos à casa, ela não deixe de estar em nós, assombrando-nos com sua memória, chamando ao amor familiar — terra natal — do qual nunca nos libertamos para onde quer que sigamos. E sem a matar, não conseguimos imaginar como construir nossa própria que não seja um espelho renovado de alguém que se recusa a esquecer. Ali onde a ancestralidade se torna peso, sina, ao invés de herança espiritual e emotiva. E diante disso, a paixão deixa de ter sentido, a pessoa não se comunica, pois se recusa a aprender e ensinar outra língua. Assume-se a impossibilidade de traduzi-la. E aqui ouço as palavras de Claudia de Lima Costa, “Na tradução, há a obrigação moral de nos desenraizarmos, de vivermos, mesmo que temporariamente, sem teto para que a/o outra/o possa habitar, também provisoriamente, nossos lugares. Traduzir significa ir e vir (‘world’-traveling para Lugones), estar no entre-lugar, enfim, exsitir sempre des-locada/o”. Mas o exílio social traz outro desafio ao esforço tradutório: como Maria-Mercè Marçal, mulher, socialista, catalã e lésbica foi colocada à margem, é a partir dessa posição que ela busca “construir uma casa própria, um espaço público habitável, uma cidade generosa, um mundo onde a obra, a construção, siga libertadora, possível”, disse Mercè Ibarz. E essa luta, como muitas e muitos e muites sabem ao redor do mundo, é exaustiva e mata. Expulsas das casas da norma, a casa do afeto familiar muitas vezes é aquela que resta diante da impossibilidade de nutrir a sua própria forma de amar e ser amada. E Marçal, nascida no campo, ao escrever sobre seu fascínio pelas vilas junto ao mar, afirmou que “não há distância maior que a do desconhecimento”. Nisso, retorno a CAConrad, que acredita na imaginação, na criatividade, como ferramenta de cura — e aqui digitei crua por acidente, mas penso no fogo do cozimento, no calor do afeto — e talvez seja isso que busquemos alimentar quando a casa do desejo se encontra inabitável: a imaginação que a faça possível um dia.