Um ensaio de Denize Dall’ Bello
Denize Dall’ Bello. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Professora do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Mato Grosso.
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Cuiabá, 17/08/2019
Pré-escrito: eu escrevi este pequeno texto motivada pela leitura de um livro chamado o PULSAR DA VIDA, do professor Ciro Marcondes. Sugeri que os alunos da graduação em Comunicação da UFMT lessem e “descrevessem” a dança que cada um realizava na universidade, na vida. Resolvi escever junto com eles.
QUANDO A AULA É UM ENSAIO
Denize Dall’ Bello
Para começar a escrever eu demorei um pouco. Desisti de reler os demais capítulos que eu mesma havia pedido para vocês lerem. Abandonei a regra. Porque pensar, às vezes, não tem a ver com regras. Aquelas as quais, mais ou menos todos aqui, compartilhamos, mesmo que nem nelas falemos, que nem as tenhamos tão explícitas nas paredes. Mas elas existem e estão no ar, nos bons discursos escolares que nos tentam convencer sobre como deveríamos agir, pensar, escolher, andar.
Eu que ia falar da dança começo pelas regras e pelo pensamento que delas quer fugir.
No entanto, falo eu de dança, eu acho. Falo eu de uma dança bem difícil de descrever com palavras. E, no entanto, estou aqui ensaiando movimentos erráticos feitos de pensamentos que tentam dançar. Que desafiador! Que dificuldade em criar uma reflexão que dance! Como o deus de Nietzsche.
A dança é um conjunto de movimentos que se apresenta e se desdobra. Que aparece e desaparece e continua. Que deixa uns tracinhos.
Bem assim:
Pensando bem eu acho que esses tracinhos poderiam ser os meus pensamentos ou a minha dança e a minha estória. Ultimamente, ela anda um caos, uma correria de episódios loucos que pouco se parecem com a representação acima e da qual eu tanto gosto. Quando há muitos anos propus um Ciclo de Conversas para falar da relação entre movimento e linguagem, eu a escolhi assim, totalmente sem cor.
Parece uma espinha de peixe e que não deixa de ser a minha também. Peixes e homens – na história da filogênese – compartilharam um mesmo início. E, na época, era assim que eu representava inconscientemente a minha dança.
Vocês não sabem, mas eu me interesso muito pelos mitos e pelos deuses criados pelo ocidente e pelo oriente. Um interesse ligado mais pela vivência do que pelo estudo ordinário e disciplinado exigido pelas instituições. Também não me interesso por tudo, porque nem tudo fez ou faz impressão sobre mim.
Há mais de 10 anos, um encontro – se é que poderíamos chamar assim – entre mim e uma imagem simbólica lançou-me num caminho sem volta. Às vezes, sinto saudades da minha inocência em relação àqueles acontecimentos que caíram sobre mim como um raio. Comprei alguns livros, pensando que eu encontraria as respostas e o consolo do qual eu tanto precisava. Jung e o seu livro VIDA SIMBÓLICA foi lido em sua inteireza e muito incompreendido. Eu estava desesperada por achar um sentido para aquele inferno a que me atirei. Foi em vão. Se me perguntarem “e, então, de que tratava a vida simbólica?”, eu pouco saberei dizer. No lugar dessa tempestade real, eu só me lembro de uma parte escura que ficou bem cristalizada no coração. Sou uma mulher que leva um coração manchado, mudado, tendo uma montanha ancestral dentro dele. A montanha que guarda os meus mistérios e os dessa experiência dura e irrepetível.
Demorou mais uns anos até que eu retirasse da estante do meu quarto esse e outros livros que testemunharam a minha descida simbólica. El UNIVERSO DE QUETZALCOATL é um livro que é quase sagrado para mim. Não serve para dar aulas. Não que eu não queira ou que o material não seja importante. Pelo contrário: foi escrito por uma arqueóloga, cujas obras foram publicadas no final dos anos 50 do século passado e é sublime.
Vejam um exemplo, lamentavelmente não do seu livro, mas uma reprodução que eu encontrei na internet e que está mais ou menos coerente com as gravuras selecionadas por Laurette Sèjourné.
Foi nessa obra e na figura simbólica de Quetzalcoatl que eu me dei conta do movimento. Conceito fundamental para a pesquisa em comunicação e para abordagens científicas menos sólidas.
De certa forma, o contato com este símbolo me preparou e até antecipou o que eu deveria viver com entrega. Mas as coisas não aconteceram assim. Travou-se um combate terrível dentro de mim. De forças inconscientes que tomaram de assalto a minha consciência. Eu estava perdida, furiosa, impossível. Muitas tentativas eu fiz para reerguer-me. Era como se internamente eu efetuasse movimentos muito parecidos ao que levaram à união de duas espécies inconciliáveis: pássaro e réptil no mito de Quetzalcoatl. No fundo, era como se eu tivesse ou procurasse no símbolo um modelo para representar a minha mudança para a qual eu já há muito havia sido levada. Podem imaginar que a hibridização não é um processo de investigação fácil. Caracteriza-se pela lentidão, sobretudo, onde ocorrem muitas conversões. Aconteceu com Quetzalcoátl. Acontece com os peregrinos e os seus enfrentamentos.
Enquanto escrevia este texto lembrei-me da nossa limitação e também da nossa dificuldade em expandir o que significa dançar do ponto de vista que o professor Ciro Marcondes propõe. Recordei-me dos depoimentos da sala de aula. E, em casa, fiquei pensando mais um pouco. Minha estória não é sobre atividades que eu tenha produzido e que foram bem-sucedidas. Estão aí os currículos para mostrar este percurso, por vezes, questionáveis.
No fundo, estou falando de um mundo interno ou das imagens endógenas de que trata Norval Baitello. Essas que o mercado e o capital não conseguem transformar em dinheiro. Do ponto de vista da disciplina de Linguagem, estou contando uma experiência comunicacional.
Essa era a dança que eu queria dizer que realizei. Uma dança que acontece lá por dentro da gente e tem a ver com o coração. No meu presente, aqui com vocês, o ritmo é outro, mas o vivido permanece depositado e ecoando montanha adentro.
(Foto de capa in México News Network).