Um ensaio de Edson Flávio Santos
Edson Flávio Santos é cacerense, doutor em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/UNEMAT) e pesquisador na área de Literatura. É autor de Aldrava (2020) e escreve desde quando descobriu seu amor pela poesia. É colaborador da Revista Pixé e faz parte do Núcleo de Pesquisas Wladimir Dias Pino (PPGEL/UNEMAT – Tangará da Serra).
“O profano absoluto que é absolutamente profundo” é um ensaio sobre o álbum Profano absoluto de Helvio Moraes.
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O profano absoluto que é absolutamente profundo
Helvio Moraes é professor e músico. Recentemente, lançou, pela gravadora Black Wall Music, seu primeiro álbum PROFANO ABSOLUTO. Em pouco mais de cinquenta e quatro minutos, Helvio nos entrega canções autorais de extrema qualidade e poeticidade única.
Profano absoluto não é um álbum para ser ouvido apenas. As 14 faixas são poemas artisticamente elaborados transpostos para suas versões musicais.
A literariedade das letras de Helvio Moraes, um amante da Música Popular Brasileira, é tão marcante quanto os acordes e ritmos que passeiam pela bossa nova, levada e pelo samba.
O artista reconstrói, como um aedo dos dias de hoje, uma imagem muito expressiva dos grandes clássicos da literatura: a poesia Homérica, que recorre às filhas de Mnemosyne detentoras, segundo Hesíodo, do passado, do presente e do futuro. Aquelas que inspiram – divinamente – o canto do aedo. Em uma das faixas, antes de cantar o seu Profano Absoluto, Helvio Moraes cita suas grandes inspirações.
A faixa de abertura que leva o nome do álbum nos põe na trilha musical de Helvio Moares, em que a música “é sempre mais que mera palavra”. É um “quase susto” como “uma língua de fogo lambendo as bordas da escuridão”. Seria o profano absoluto um despertar? Mas de quê? Absolutamente o que teria sido profanado?
Sair, mudar-se não resolve muita coisa, pois desde que me mudei de você revela um eu entregue à solidão em que nem as palavras podem fazer companhia, uma vez que esse mudar-se “faz a cidade emudecer” e nos “põe deserto em meio à multidão”, bem ao modelo camoniano que ainda persegue as antíteses dos versos “muda explosão” e “ecoar o avesso da voz”
Canções como esta são um misto de “Dor e paz” permeados pela imagem poética, incrível, de “é a pedra do cais/que insinua o mar”.
E não, não foi tudo em vão. Em mandinga o apelo poético “pra quem perdeu a ginga” é vestir “suas cores” e viver “seus amores”. O gesto da alegria que invade a vida, lava a alma e espanta “a urucubaca”.
É um samba “pra quem esqueceu do verso”, mas que nunca pode esquecer do molejo. É a lembrança do passo de viés do Malandro. Por isso, “ouse a teimosia”, “declare alegria” e deixa a praça virar um salão, como diria Chico Buarque. Porque amanhã é outro dia!
E, nesse todo dia, é preciso ter a “fé do equilibrista”. Mesmo que eu não seja da sua laia, o azar é seu, mas a sorte é nossa pelo deleite dessas canções “sem maldade e sem vergonha”.
Porque a vida não é uma farsa. Mesmo carregada por uma melancolia irônica de “doce redundância”, é uma canção daquelas que os deuses prometem dionisiacamente “tardes de um louco a delirar/na mansa paz de vinho e violão”.
Seguindo as trilhas do álbum, chegamos em rua sem saída, uma bossa triste “na cidade confusa” onde “eu sigo a te buscar”. A incessante busca amplia a solidão, mas não desfaz a esperança do encontro, ou não, em “um novo dia, um outro lugar”. E por que não?
Essa busca por alguma coisa ou algum lugar aparece forte em o que você cala. Há um phatos criador muito forte e triste. Os versos compõem artisticamente quadros difíceis de compor, mas que “matam toda palavra”. O silêncio daquele que cala a própria dor sela “em cada um a sua escuridão”. A poesia dessa música ultrapassa os acordes e torna-se “Um bálsamo” para a solidão. Numa tentativa heroica de roubar para si o que o outro cala.
Há uma certeza em tudo, como uma confissão que possui um segredo que está guardado na voz. Já não é o que se cala que importa, mas o que se fala. Pois “O risco é todo seu” e “feroz é a dor de quem já não quer sofrer”
Canções como: o carinho possível, vaga, epifania e moto-contínuo dão sequência a esse aprofundar-se na alma, engendrado por todo o álbum.
Em o carinho possível, inspirado num poema de Manuel Bandeira, o lirismo reflete-se em “a mim basta que o simples carinho que me dás”, um lirismo urgente que persiste em vaga ocupando o espaço do encarte como um poema visual como onda que vai e volta, se espalha e se espraia na alma da gente.
Epifania, faixa que lembra um bom country americano, revela o ser atormentado por um demônio que “rouba o dia” e “transtorna as horas /noite adentro”. Um demônio que segue livre em moto-continuo “Na pedra dura do sonho que não liberta”, numa vida que é preciso viver, “deslumbrando o avesso” da própria vida.
Em volta pra ela e fio de luz, Helvio Moraes se entrega ao samba. É evidente sua paixão pelo ritmo, músicos e compositores do gênero. O artista finaliza o álbum com toda a pompa de celebração e compromisso que o samba carrega, inscrevendo sua obra sob a égide de Caetano Veloso e Noca da Portela, como quem pedisse uma benção para cantar seu samba em que
No peito se acende uma promessa
Tudo começa a se alegrar
Não é que eu me esqueça as dores do mundo
Não é que me iluda e me perca em sonhar
Mas nesse momento sou todo em tudo
Da luz que se acende ao chão que eu pisar
Os versos acima conversam com um famoso heterônimo de Fernando Pessoa que disse “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/No mínimo que fazes”. É isso que Helvio Moares fez ao longo de todo o álbum profano absoluto.
Colocou tudo de si em cada faixa, em cada palavra, em cada acorde onde “O verso que a vontade lhe dita/É só ler a dança, a poesia está lá”. Uma poesia que está na vida, está no samba, está no sangue, está no corpo que “festeja o dia que virá”.
E que venha logo!
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Profano Absoluto, de Helvio Moraes
Spotify: https://open.spotify.com/artist/5Dqq0XZDE7Ve3wLJSkCa6e?si=cu4dj6bSSUmhSbVKGmnY1w