Um ensaio de Eliane Cristina Chieregatto
Eliane Cristina Chieregatto é professora na Rede Estadual de Ensino no Município de Tangará da Serra, formada em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2006). Especialista em Gestão Escolar pela Universidade Castelo Branco (2011). Mestra em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL /UNEMAT) (2019).
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O Cambista, um convite ao leitor
As primeiras cenas narradas no romance O Cambista, do escritor brasileiro Eduardo Mahon, parecem envolver o leitor numa trama policial; a cena como é relatada conduz esse leitor para a projeção do emblemático crime do quarto fechado, muito recorrente na clássica narrativa policial. Os crimes praticados em quartos fechados sempre foram norteados pelo mistério absoluto, um desafio para a lógica, porque em essência, a esse acontecimento correlacionam-se fenômenos que só poderiam ser dissipados por meio da experiência do detetive em analisar evidências, tal como, de fato, fizeram Dupin, Poirot, Sherlock e tantos outros consagrados detetives das histórias policiais.
Uma vez lançado na órbita da narrativa policial, o leitor de O Cambista é capturado pelo mistério que se estabelece em torno da morte do personagem Erick Plum, mas o deslocamento temporal entre o primeiro e o segundo capitulo, que proporciona a metamorfose do vivo no morto e coloca o protagonista em cena, lança o leitor no labirinto. A partir do momento que o leitor é acionado para a estrutura que fundamenta o câmbio de segredos, o romance torna-se subversivo à aparente relação estabelecida com a narrativa policial.
Embora a invenção do mercado de segredos favoreça a correspondência com esse tipo de narrativa, pois concretiza a existência de duas histórias, conforme propôs Todorov (2006), que percebeu existir, na clássica narrativa policial, uma relação em que se conectam fábula e trama, em que a fábula apresenta aquilo que se passou na vida do sujeito cuja morte é investigada, e a trama corresponde às estratégias de mediação entre o romancista e o leitor de forma a sustentar nessas narrativas a relação entre detetive, crime e narração. Em O Cambista, a negativa da instauração do inquérito que substitui o rigor do trabalho do detetive pelo tateamento do leitor na busca por uma resposta parece subverter os princípios básicos do romance policial.
Evidente que a supressão do inquérito configura um aspecto preponderante, pois obriga o leitor a seguir os passos de Erick Plum, como se cada ação vinculada ao personagem conservasse a pista que conduz à resposta e, para chegar a ela, o leitor é induzido a participar do jogo. Com isso, o romance sustenta o suspense, a subversão, nesse caso, rompe o princípio básico da narrativa policial centrada no trabalho do detetive, e ao mesmo tempo dilui a figura do leitor passivo em busca de diversão, de modo que toma lugar em O Cambista o leitor vigilante, que se embrenha no labirinto criado pelo autor. Essa ruptura que exime o detetive da função investigativa e coloca a vítima no lugar de ascendência funciona como um indicador de que não é a revelação acerca do mistério e sim sua problematização que afere nesse romance tanto a composição quanto a decomposição de aspectos que poderiam relacioná-lo à narrativa policial.
Essa problematização confere ao romance de Mahon a mesma potência observada em outras obras literárias, como ocorre, por exemplo, em Nove noites, romance de Bernardo de Carvalho, ou ainda, em “Crônicas de uma morte anunciada”, de Gabriel García Márquez. Embora essas obras dissintam em termos composicionais, elas comungam a especificidade do enredo aberto, esse que, como em O Cambista, tira o leitor do lugar de conforto, pois ele é atraído por um mistério, mas as obras não se submetem aos padrões da clássica narrativa policial, enveredando, por isso, para o campo alegórico, um campo que se constitui no jogo das representações em que o leitor é inserido e do qual não consegue sair sem que um embaraço o acompanhe. Como que para confirmar o que é proposto por Bernardo de Carvalho (2002) em Nove noites: quanto menos conhecemos os fatos que sustentam um mistério, mais difícil é nos desembaraçarmos dele.
No campo das alegorias, o romance de Mahon estabelece também diálogos com outras obras que se utilizam da inteligibilidade da narrativa policial, subvertendo seus princípios, é o caso, por exemplo, da peça de Bertolt Brecht, Opera dos três vinténs. Assim como na peça, o romance mahoniano permite perceber a oposição de valores, especialmente, o valor da vida humana franqueada nas relações comerciais, o que a transveste da perspectiva intuída por Brecht quando aponta em sua obra a prevalência da parte criminosa – associada ao mundo dos negócios – que tira seu sustento da sociedade.
Outra narrativa que parece estabelecer relações com O Cambista, é Crime e Castigo, de Fiodor Dostoiévski. Através da análise feita por Benjamin (2017), percebe-se que Dostoiévski institui o inusitado como subversão à tradicional narrativa policial ao traçar, em Crime e Castigo, um perfil humano para o criminoso. Assim como em O Cambista, se estabelece um criminoso como vítima. Mas os dois romances partilham de certa maneira um percurso de reconciliação do personagem com o mundo. Ainda que, em O Cambista, esse percurso tenha sido interrompido com a morte de Erick Plum, o aporte da reconciliação foi estabelecido, por isso, essa morte ganha importância na construção da alegoria.
O viés analisado por Benjamin (2017) que subsidia o olhar sobre O Cambista toma como referência o debate conduzido pelo teórico, pois tanto na obra de Dostoievski quanto em Brecht espelha-se a nova conjuntura econômica que representou mudanças drásticas no ambiente citadino e marcadamente influenciou a emergência de novas formas de organização social, bem como naturalizou os crimes vinculados aos pactos comerciais. Nessas novas relações, o homem se encontra submerso em um turbilhão de acontecimentos, de modo que, a partir das proposições de Benjamin, é possível pontuar nesses diálogos com o romance mahoniano duas situações distintas, quais sejam: em Brecht, revela-se a parte criminosa associada ao mundo dos negócios; em Dostoiévski, evidencia-se a parte criminosa inerente ao próprio homem enquanto ser que age e sofre as consequências de suas ações. Em O Cambista as duas situações se efetivam mutuamente através da emergência do câmbio de segredos.
A obra mahoniana é um mergulho na representação cruel da vida metropolitana mediada pelo capital. O segredo, tomado como alegoria, resulta de uma possibilidade de interpretar esse homem metropolitano cuja sensibilidade não ultrapassa os balcões em que são depositados os segredos, espólios da enorme guerra que o homem trava consigo quando trata da sobrevivência em uma sociedade carcomida pelos enganos das operações comerciais. No caso de O Cambista, os efeitos da depressão econômica como um fato histórico passam a ser delineados pelo olhar artístico que possibilita sempre novas percepções, de maneira a alargar as possibilidades interpretativas. A transfiguração do aporte histórico criado pelo romancista supõe aquele compromisso proposto por Rosenfeld (1969) de não imitar simplesmente uma realidade, mas instituir mecanismos por meio dos quais o leitor possa decifrar as máximas que se escondem nas entrelinhas do dito e do não dito.
A violação da intimidade adquire, com a morte de Erick Plum, uma condição representativa, a qual torna compreensível a alegoria política no romance. A alusão a um contexto histórico que remonta a um período de crise econômica subsidia a indissociável relação com a crise política e, consequentemente, com a crise moral. Sendo a intimidade um direito fundamental que jamais poderia ser transgredido, toda venda, troca e barganha em torno da intimidade do indivíduo desvela as ações violentas frente à dignidade da pessoa humana.
Tomada por Benjamin (1984) como uma forma de expressão, a alegoria é compreendida como uma categoria estética, pois, por meio dela, poder-se-ia descortinar o que se escamoteia sob mundo aparente. Assim entendida, a interpretação alegórica é consoante a desagregação dos enganos que impedem o homem de perceber os jogos ilusórios dos quais participa no decorrer de seu tempo histórico. O contributo da arte, nesse processo, está em tornar a alegoria um mecanismo por intermédio do qual o homem possa refletir sobre si mesmo, acerca de sua formação e condição no mundo
Ao transpor essa perspectiva para um romance em que o leitor é convocado para ser sujeito e não espectador, torna-se fundamental pensar como essa escrita envolve o leitor. Ítalo Calvino ao pontuar as facetas que distinguem a escrita ficcional em nosso milênio assinala algumas especificidades que valoram a obra literária, entre elas pontuamos duas que encontram maior equivalência em O Cambista, a saber, a rapidez e a visibilidade. A rapidez é motivada pela impossibilidade de se dizer tudo, porque a narrativa lida com um mundo complexo, por isso, invariavelmente, o leitor tem sido convidado a preencher as lacunas complementares ao texto. É, portanto, da natureza da escrita literária a perspicaz característica de solicitar ao leitor que faça uma parte de seu trabalho. A rapidez, ao contrário do que se possa ajuizar, tem como resultado a brevidade, isto é, concisão de ideias, característica perceptível na escrita de Eduardo Mahon.
A visibilidade, como outro recurso que caracteriza a escrita literária, está relacionada à capacidade de transformar imagens em palavras – ou palavras em imagem. A habilidade de imaginar estabelece também a coparceira entre autor e leitor, viabilizando a completude do mundo circundante. A palavra escrita é imperiosa por trazer, em sua gênese, a imaginação.
Para Calvino é a habilidade de fazer fluir a imaginação que torna um texto eficaz, em se tratando de literatura, um texto eficaz é aquele em que o mundo apresentado ao leitor torna-se, de alguma maneira, inteligível. Nesse contexto, um aspecto que vale a pena ressaltar em relação à visibilidade, em que seja possível conciliar os apontamentos de Calvino e a escrita de Mahon, está centrado em uma definição de imaginação que Calvino (1990, p. 106) toma como a mais acertada. Nela, a imaginação seria aceita como um “repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez não seja, mas que poderia ter sido”. O hipotético concilia, na escrita mahoniana, o translado da imaginação para um mundo possível, o qual permite ao leitor confabular com tudo que está posto no enredo, propiciando também a ressignificação de tudo o que lhe cerca, e nisso consiste o potencial positivo desse romance.
Referências
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
BENJAMIN, Walter. Ensaios sobre Brecht. Tradução Claudia Abeling. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. (Coleção Marxismo e Literatura).
CALVINO, Italo. Seis propostas para o novo milênio: lições americanas. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MAHON, Eduardo. O Cambista. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2014.
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ROSENFELD, Anatol. Texto e contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006.