Um ensaio de Laís Maíra Ferreira
Laís Maíra Ferreira é Doutoranda e mestra em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
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Memória do trauma em Um defeito de cor
Ana Maria Gonçalves é figura de destaque no meio literário. Em 2002, publicou Ao lado e à margem do que sentes por mim; em 2006, Um defeito de cor; e, em 2011, foi uma das autoras publicadas em Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, obra organizada por Eduardo de Assis Duarte.
O segundo romance, Um defeito de cor, é uma reescritura da carta-autobiográfica de Luiz Gama[1]. A carta, que é uma das poucas narrativas de ex-escravizados no Brasil, apresenta uma página e meia e, com o propósito de preencher as lacunas existentes nesse documento, Ana Maria Gonçalves escreve um romance que contém mais de 950 páginas.
Na obra a protagonista-narradora é Kehinde, chamada também pelo nome cristão de Luísa. Essa protagonista traz à tona uma série de experiências que marcaram profundamente a sua vida, em especial, e a vida daquelas pessoas que a rodeavam. Tais experiências são destrinchadas em longas cartas e, para isso, a personagem faz uso de uma memória que navega sobre as águas do Atlântico negro[2], uma vez que muitas das lembranças traumáticas alastraram-se da África para o Brasil. A primeira é o assassinato do irmão e da mãe. Kehinde narra que brincava com a irmã gêmea[3] Taiwo, quando guerreiros do rei Adandozan assassinaram o irmão Kokumo e a mãe, que antes de ser morta foi estuprada. Os eventos traumáticos são assim narrados:
O Kokumo […] foi pego por um dos guerreiros, que o agarrou pela cintura e o levantou, até que ele ficasse com os pés balançando no ar. Outro guerreiro pegou a minha mãe pelos braços e a apertou contra o próprio corpo, e, de imediato, o membro dele começou a crescer […]. O Kokumo chutava o ar, querendo se soltar para nos defender, pois tinha sangue de guerreiro, e foi o primeiro a ser morto. Um dos guerreiros, que até então tinha ficado apenas olhando e sorrindo, chegou bem perto do Kokumo e enfiou a lança na barriga dele. Eu me lembro do sangue que saiu da boca do meu irmão […]. O sangue imediatamente formou um riozinho, daqueles turvos e de água espessa, como os que recebem muita água de chuva na cabeceira […].
Foi então que vi o Kokumo se levantar e a começar a cantar e a correr em volta da minha mãe, fazendo festa como se não visse o guerreiro entrando e saindo de dentro dela, com força e cada vez mais rápido. O guerreiro gemia e o Kokumo cantava, e seu canto atraiu outras crianças, outros abikus, que apareceram de repente e logo também estavam cantando e formando uma roda junto com ele. […]. A minha mãe começou a sorrir e a girar o pescoço de um lado para o outro, acompanhando a brincadeira das crianças […]. Ela não parou de sorrir um minuto sequer, e tão logo surgiu um riozinho de sangue escorrendo na direção do riozinho do Kokumo, a minha mãe correu para perto dele e o abraçou […] (GONÇALVES, 2006, p. 22-24, grifo da autora).
A cena desse riozinho de sangue representa “não apenas a dor do trauma individual, como também a experiência de uma etnia cujo rastro de sangue se estenderá por todo o Atlântico” (NEVES, 2013, p. 6). Em outras palavras, a cena do riozinho representa não apenas a dor de Kehinde, mas também a dor daqueles negros que sofrem com os mais diversos tipos de violência.
Outra experiência traumática ocorre tempos depois, quando já estava escravizada em uma fazenda na ilha de Itaparica, na Bahia. Nessa fazenda, ela é violentada pelo “sinhô” José Carlos:
[…] o sinhô José Carlos me debruçou na esteira, com um tapa no rosto, e depois pulou em cima de mim com o membro duro e escapando pela abertura da calça, que ele nem se deu ao trabalho de tirar. Eu encarava os olhos mortos de Lourenço[4] enquanto o sinhô levantava a minha saia e me abria as pernas com todo o peso do seu corpo, para depois se enfiar dentro da minha racha como se estivesse sangrando carneiro. Não me lembro se doeu, pois eu estava mais preocupada com o riozinho de sangue que escorria do corte da minha boca, provocado pelo tapa, e me lembrava da minha mãe debaixo do guerreiro, em Savalu, desejando que ela, o Kokumo e seus amigos aparecessem naquele momento e nos levassem, a mim e ao Lourenço, para brincar com eles, mesmo sem sermos abikus (GONÇALVES, 2006, p. 171, grifo da autora).
Ao ser violentada, a protagonista relembra o riozinho que se formou com o sangue que escorria da boca de seu irmão. O riozinho de sangue está relacionado com um evento traumático. Consequentemente, todas as vezes que Kehinde passa por um evento semelhante, ou seja, traumático, a cena desse riozinho volta à memória. Lembranças como essa provam, conforme interpretação que Gabriela Maldonado e Marta Rezende Cardoso (2009, p. 49) fizeram da fala de Márcio Seligmann-Silva, “que as marcas deixadas por um evento traumático vêm instalar um presente contínuo. Portanto, estas não se inscrevem como passado, porque não podem ser esquecidas – em função de seu retorno sob a forma de repetição dolorosa”.
Durante o violento ato, Kehinde também rememora, simultaneamente, o estupro sofrido pela mãe. A mãe não era escravizada, porém, sentiu na pele as dores por ser mulher e por ser negra.
o corpo da mulher negra é duplamente subjugado e assujeitado, isso ocorre não somente pela sua cor, mas também pelo seu gênero que dentro da perspectiva genealógica europeia não possui valor a não ser o da reprodução e peso que o homem deveria carregar sobre suas costas, segundo Cheikh Anta Diop (OLIVEIRA, 2015).
Sobre as mulheres negras, mais especificamente sobre as escravizadas, bell hooks (1981, p. 21) afirma que os homens brancos queriam que essas mulheres “aceitassem a exploração sexual como um direito e um privilégio dos que estavam no poder”. O “sinhô” José Carlos é um deles. Ele violenta e engravida Kehinde, que contava com apenas treze anos de idade. Aos treze anos, a personagem deu à luz ao menino Banjokô. O menino, assim como Kokumo, também era um abiku:
os abikus – crianças que, de acordo com a religiosidade afro-brasileira, portam espíritos que não se adaptam ao mundo terreno e buscam retornar logo ao Orum –, povoam a trajetória de Kehinde desde o início: na infância, um irmão; na juventude, um filho; na velhice, um neto. Os dois últimos morrem prematuramente, apesar dos esforços para salvá-los pela via dos rituais e obrigações às entidades protetoras (DUARTE, 2018, grifo do autor).
O fenômeno do abiku é bastante recorrente em culturas africanas e aparece em narrativas literárias. Em Things fall apart (1958) do nigeriano Chinua Achebe, por exemplo, a filha do protagonista Okonkwo é uma criança desse tipo. Em The famished road (1991) do também nigeriano Ben Okri, o personagem abiku ganha inclusive a centralidade da narrativa, transformando-se no narrador-protagonista. Por ser uma expressão tão importante, não é incomum encontrarmos o motivo do abiku sendo retomado em diversas literaturas negras, mesmo fora da África. Quando é transportada para a literatura afrodescendente, essa manifestação muitas vezes perde algo de sua precisão, acompanhando a perda cultural acarretada pelo processo de escravização. É o que ocorre no romance da afro-americana Toni Morrison, Beloved (1987), em que os personagens negros, escravizados nos Estados Unidos, não têm como explicar tal fenômeno e desconhecem os meios para se lidar com ele. Ana Maria Gonçalves, contudo, não apenas o nomeia com precisão, como também apresenta uma série de informações que servem para explicá-lo aos leitores comuns:
Antes tinha nascido o meu irmão Kokumo, e o nome dele significava “não morrerás mais, os deuses te segurarão”. O Kokumo era um abiku, como a minha mãe. O nome dela, Dúróoriîke, era o mesmo que “fica, tu serás mimada”. A minha avó Dúrójaiyé tinha esse nome porque também era uma abiku, e o nome dela pedia “fica para gozar a vida, nós imploramos”. Assim, são os abikus, espíritos amigos há mais tempo do que qualquer um de nós pode contar, e que, antes de nascer, combinam entre si que logo voltarão a morrer para se encontrarem novamente no mundo dos espíritos. Alguns abikus tentam nascer na mesma família para permanecerem juntos, embora não se lembrem disto quando estão aqui no ayê, na terra, a não ser quando sabem que são abikus (GONÇALVES, 2006, p. 19, grifos da autora).
Se pensarmos que a protagonista foi retirada de seu contexto de origem numa idade ainda muito tenra, tendo depois passado por uma sucessão de eventos traumáticos, talvez o mais provável é que ela não se lembrasse com tanta riqueza de detalhes não só dos acontecimentos de sua infância, como também da realidade cultural em que vivia com sua família. Mas a teia mnemônica construída por Ana Maria Gonçalves para a rememoração de sua personagem é cheia de minúcias. A narradora se lembra do conceito de abiku e inclusive dos significados dos nomes de seus familiares dessa condição. Contra a fragmentação ou existência de lacunas, causadas pelo esquecimento/trauma, é retratado um quadro bem mais completo de informações. A morte precoce é o pré-requisito principal das crianças abikus. E, como Kehinde discorre, Banjokô, seu primeiro filho, feriu-se com uma faca e acabou morrendo.
A narração sobre a morte do filho e as demais expostas neste ensaio foram feitas por Kehinde quando ela se encontrava em idade avançada. Porém, é tecida como se a personagem ainda estivesse vivenciando cada um dos episódios. Para entendermos o feito, apelamos a Vera Maquêa (2010). A autora explica que “[c]omo forma de proteger o passado a memória ignora o movimento do tempo, misturando-o ao presente, transformando-o […]” (MAQUÊA, 2010, p. 39). Destarte, a protagonista-narradora ignorou o movimento do tempo para contar sua história ao filho desaparecido.
Filho que foi fruto de uma relação de Kehinde com um português chamado Alberto. O português teria vendido o filho Luiz no período que Kehinde, já liberta, se afastou para realizar seu aprimoramento como vodúnsi[5] no Maranhão. Diante do ocorrido, Kehinde percorreu uma longa trajetória a fim de localizá-lo. A personagem se deslocou para as cidades de São Sebastião do Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Campinas e São Salvador. Não encontrando o filho, ela resolveu voltar à África, imaginando que Luiz teria ido em busca de suas raízes ancestrais.
De volta à África, Kehinde, constrói família e somente após décadas de espera ela tem notícias do filho desaparecido. As informações sobre o paradeiro de Luiz levaram a protagonista-narradora a atravessar as águas do Atlântico novamente: “E talvez, num último gesto de misericórdia, qualquer um desses deuses dos homens me permita subir ao convés para respirar os ares do Brasil e te abençoar pela última vez” (GONÇALVES, 2006, p. 947). No entanto, essa travessia foi certamente imaginária, pois a “narradora já se encontra em idade avançada e cega, o que faz o leitor depreender que dificilmente essa viagem se realizará” (BERND, 2012, p. 37).
Dadas todas essas colocações, concluímos que ao fazer a reescritura da carta de Luiz Gama, Ana Maria Gonçalves reelabora fatos que foram muitas vezes “esquecidos e/ou negligenciados” pela historiografia oficial brasileira, bem como discorre sobre os atos de violência que foram praticados contra mulheres e homens negros. Uma minúcia de detalhes a respeito da vida dos escravizados no Brasil toma espaço nas páginas do romance, numa tentativa de suprir as lacunas do texto de Luiz Gama e também aquelas que existem de modo geral na historiografia e literatura brasileira, visto que no Brasil, são poucas as narrativas de ex-escravizados que temos notícias até o presente momento. A grande extensão do livro, englobando a trajetória também ampla da personagem em sua longa vida, e a presença de uma miríade de informações sobre a vida dos escravizados em diversos contextos são os aspectos que compõem a reconstrução mnemônica empreendida por Ana Maria Gonçalves em Um defeito de cor.
Referências
ACHEBE, Chinua. Things fall apart. United States: Anchor books, 1958.
BERND, Zilá. Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Estud. Lit. Bras. Contemp., Dez 2012, nº.40, p. 29-42. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S2316-40182012000200003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt> Acesso em: 05 jul. 2017.
DUARTE, Eduardo de Assis. Na cartografia do romance afro-brasileiro: “Um defeito de cor” de Ana Maria Gonçalves. In: TORNQUIST, C. S. et al. (Org.). Leituras da resistência: corpo, violência e poder. Florianópolis:
Editora Mulheres, 2018, p. 325-348. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-feminios/442-na-cartografia-do-romance-afro-brasileiro-um-defeito-de-cor-de-ana-maria-goncalves>. Acesso em: 10 jul. 2020.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher: mulheres negras e feminismo. Tradução livre. Plataforma Gueto. 1ª ed. 1981.
MALDONADO, Gabriela; CARDOSO, Marta Rezende. O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas impossíveis, mas necessárias. In: Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol. 15, n.2, p. 45-57, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pc/v21n1/v21n1a04.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2018.
MAQUÊA, Vera. A escrita nômade do presente: literaturas de língua portuguesa. 1. ed. São Paulo: Arte & Ciência, 2010.
MORRISON, Toni. Beloved. Great Britain: Picador, 1987.
NEVES, Maria Alciene. “Riozinho de sangue”: memória, silenciamento e trauma em Um Defeito de cor. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10: Desafios atuais do feminismo, 2013, Florianópolis. Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, 2013.
OKRI, Ben. The famished road. Londres: Vintage, 1991.
OLIVEIRA, Jacqueline. O papel da colonização africana na percepção do corpo da mulher negra: uma leitura de O Alegre Canto da Perdiz, 2015. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/o-papel-da-colonizacao-africana-na-percepcao-do-corpo-da-mulher-negra-uma-leitura-de-o-alegre-canto-da-perdiz/>. Acesso em: 23 fev. 2018.
Notas
[1] Suposto filho da africana escravizada no Brasil, Luiza Mahin. A obra de Ana Maria Gonçalves foi baseada na história de vida dessa africana.
[2] Termo cunhado por Paul Gilroy. Para mais informações: GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência; tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes/ Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.
[3] Entre os povos iorubas, os gêmeos são chamados de ibêjis.
[4] Com quem a protagonista se envolve afetivamente.
[5] Sacerdotisa.
Hermes Dagoberto
Gostei do tema de sua divulgação, gostaria de ver se é pertinente para meu site.
Sds.