Um ensaio de Lucas Miyazaki Brancucci
Lucas Miyazaki Brancucci nasceu em 1994, São Paulo. Escreveu Celular.quitinete.rua (2017) e Elefantes (2015, Prêmio Nascente), e alguns ensaios sobre poesia, como o “Paisagens relacionais (Câmera lenta, Ar livre e Aproxime-se e me aborde)”. No momento, está finalizando um texto que até agora se chama No rancho das estrelas.
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Sobre laboratórios e tábuas, fragmentos em César Aira
Saiu publicado, há pouco, o livro Continuação de ideias diversas, de César Aira, pela Papéis Selvagens (publicado apenas pelas edições Universidad Diego Portales, Santiago de Chile, 2014). É feito a partir de anotações diárias, pequenos escritos para começos de novelas, germes de ensaios, comentários sobre acontecimentos em cafés, lembranças de sonhos, observações de algum detalhe encontrado em livros ou biografias de artistas, opiniões intempestivas e proposições filosóficas. Anotações de caderneta postas em conjunto para compor mais um dos inusitados livros de Aira, agora remetendo-nos mais diretamente à expressão fragmentária de seus trabalhos.
Talvez seja o livro mais “secundário” que já li da produção nada convencional de Aira. Algo como um amuleto só para os fãs íntimos da escrita do argentino, encontrado apenas nas poucas livrarias do Rio com títulos de editoras que o publicariam (como Pipa Livros, ou Cultura & Barbárie…). Mas lendo essas ideias diversas, pensei na expressão do fragmento, em como ela está muito latente em todos os movimentos de escrita desse artista “menor”.
É um pensamento que me veio de surpresa e exigiu um recuo especulativo, uma vez que a maioria dos livros de Aira induz justamente ao contrário: enganam-nos a uma leitura romanesca, pois cada história (mesmo que breve) vira um único livro, que geralmente almeja uma dicção realista e austera – até que descobrimos o narrador um tanto torpe, que “escreve mal” (como se lêssemos um documento formal escrito por Macunaíma.)
Além disso, tal estilo de anotações em fragmentos o próprio autor argentino já chegou a denunciar em outro trabalho seu dos anos 90. Trata-se do Nouvelles impressions du Petit Maroc, pequeno relato (com afirmações enganosas, como a de que o texto fora escrito em francês) repleto de teorias sobre a escrita e a vida, que fora composto quando das idas ao Café de Loire, no bairro Petit Maroc, parte da comuna francesa de Saint-Nazaire.
Para chegar à relação de Aira com o fragmento, vale a pena fazermos uma pequena digressão.
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O narrador começa o Nouvelles impressions… descrevendo-nos como se chega ao bairro e o que se tem à vista quando por fim nos estabelecemos na pequena ilha. Deve-se atracar, dentro de um barco, numa ponte mecânica que levanta e abaixa para fazer a baliza de entrada na terra, movimento esse que faz despontar à vista uma enorme “cadeia de cafés” da região.
Estando dentro do seu café predileto, o último do conjunto, na borda extrema de Petit Maroc e na beira do rio, pode-se observar o silencioso movimento dos barcos que passam, de cuja velocidade adquire uma complexidade que induz ao engano: lenta como um astro, podendo ser, na verdade, muito rápida, dependendo da distância. Paralelamente, dentro dos barcos “sucede uma vida planetária, sujeita a sua própria gravidade”, o que faz deles uma verdadeira “cidade flutuante”, como uma ilha.
Dos poucos elementos descritos e postos em cena nesse livrinho dos anos 90, o leitor um pouco familiar de Aira já pode identificar alguns princípios e mecanismos recorrentes em muitas de suas novelas – a tendência de escrever histórias que se desenvolvem a partir de regras ou estímulos aleatórios e acidentais; narrativas que almejam criar sistemas referenciais próprios, como o barco. Podemos nos lembrar da novela Cómo me hice monja, cujo título não se relaciona diretamente com os acontecimentos da história, mas fora elaborada a partir do jogo fonético de palavras realocadas, prática de criptografia comum em alguns bairros de Buenos Aires (ra-món: a protagonista, no final, de fato acaba virando uma massa rósea no sorvete de morango, lembrando um presunto); ou a velocidade dos carros que ganha uma complexidade vetorial desnorteadora em A costureira e o vento (ambas as novelas escritas em épocas muito próximas das idas aos Café da Loire.)
(Engrenagens de Petit Maroc que lembram os “estudos para moinho” de Marcel Duchamp.)
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Assim, com o pequeno material ready made de um trajeto quase turístico ao longo de Petit Maroc, o narrador elabora suas teorias sobre a vida. Considera a literatura como sendo a coincidência feliz de acontecimentos sem causa, o que resulta no seu entendimento maquínico – “o método de fazer mitos das particularidades, criar a impossível repetição do único”. O escritor, por sua vez, é uma “proliferação de teorias” – breves, transitórias e que se autorreformulam.
O perigo, no entanto, de se aventurar pelo simples prazer de lançar teorias, é grande. Pode acabar sendo o que a voz de Nouvelles impressions… denomina como o gênero caderno de notas, o mais detestável de todos. Além de ser a forma prática de se ter “abundância de boas ideias a baixo custo”, o “definitivamente grave dos fragmentos é que obrigam o leito a forjar a continuidade em seu próprio espírito, o que é lamentável porque desse modo o mundo só pode ser reconstruído em sua forma mais convencional.”
Agora, Continuação de ideias diversas: compilação de registros íntimos, de Godard a gibis, de obsessões a inusitados posicionamentos críticos, e a própria escrita desnuda como movimento de criação. Se por um lado, é o mais fiel e rústico “caderno de notas”, também parece lançar uma leitura peculiar do que seja o fragmentário na poética de Aira, considerando reflexões intertextuais e “de bastidor” do autor.
Podemos nos perguntar se a própria escrita de um relato como Nouvelles impressions… se salvaria de todo desse gênero de “notas de caderno” que tanto denuncia. Aliás: como ler tal livro? Se é um “ensaio” sobre literatura e escrita, por que o autor mente e cria situações fictícias? E por que não podemos identificar exatamente um tema central nesse texto? Indo mais além, as micropublicações em geral de Aira – entre diários em hospitais e alpes, observações em cafés que logo tomarão uma densidade alucinada e fábulas das mais diversas –, não seriam todas variações de “cadernos de nota”? Seus livros de fato cumprem com o “fazer vir uma ideia encadeada a um discurso ou a uma ocasião ou a uma utilidade” (Nouvelles…), para pôr à prova o verdadeiro valor de uma teoria? Não demonstram justamente o contrário – apenas uma variação contínua desse ato de escrita?
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Essa hesitação embaralha como tradicionalmente tenderíamos a traçar leituras à poética do autor (por um lado, os ensaios e entrevistas, que seriam pilares para a compreensão de preceitos estéticos; por outro lado, os romances e narrativas breves, aquilo que consideraríamos como sendo as obras de fato “literárias”).
Essa hesitação nos conduz a um empenho literário que mostra-se ultrapolítico…
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Parece que à medida em que vamos nos familiarizando com sua produção, a travessia de seus diversos textos entra em uma ressonância poética, numa maquinária mais geral: prolífera gama de estratégias e lugares de criação, onde os gêneros textuais não se hierarquizam em prol de uma ideia de literatura, mas antes querem se hibridizar ao ponto de criarem modalidades indeterminadas de escrita. Algo que escapa das convenções literárias de gênero; poética “processual” de cujo ponto de partida é o da experimentação e desestabilização de referências preconcebidas – identidade nacional ou escola literária.
“A literatura que é só literatura é uma casca vazia, uma utilização espúria do meio, ou do formato. É o caso do romance hoje.” (Continuação…)
Em Aira, ao contrário, a vida que urge no presente momento, o mais real possível, é justamente a literatura posta em cena. Por isso, as cosmologias que norteiam seus livros poderiam ser vistas como verdadeiras composições do fragmentário. Textos insistentemente performativos que direcionam o leitor, cedo ou tarde, ao gesto de escrita como lugar de resistência e subversão de pensamento.
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No prólogo ao livro Ideia da prosa, Giorgio Agamben fabula sobre o trabalho do filósofo Damáscio relacionando o material de comunicação daquela época, tábuas de escrita, com os comentários metalinguísticos presente nos texto. Temos uma cena precisa do movimento do pensamento na escritura: “O limite último que o pensamento pode atingir não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, mesmo despojados de qualquer qualidade, mas a própria potência absoluta, a pura potência da própria representação: a tabuinha para escrever!”
Essa potência de representação, de tocar o que não se vê, muito diferente da mímese aristotélica, é a exata dinâmica do fragmento, um “sistema intensivo”. Para João Barrento, é “a vivência do instante e a sua escrita […] algo que nos aproxima da essência da música, ou de um quadro de Mark Rothko (cada quadro de Rothko, cada frase de Novalis, é transparência e enigma).”
A expressão do fragmento é um ponto de cisão com modos totalizadores e binários da modernidade ocidental. Cria perspectivas que experimentam em diversas profundidades com o realismo. A escrita em seu conjunto que produz sempre um “efeito de trompe-l’oeil” mesmo que “no mais banal quotidiano” (Silvina Rodrigues Lopes ao analisar o Livro do desassossego, de Fernando Pessoa/Bernardo Soares.)
Continuação de ideias diversas como lugar para pensarmos o modo fragmentário de Aira – uma ética na qual o escritor insiste. Os “barquinhos” de escrita deixam em estado desnudo os movimentos do pensamentos.
Desfeito em sua Mont Blanc sobre o caderno, almejando um (irônico) realismo, os fragmentos, a modo cru, sem filtros, experimentam as ideias antes mesmo de serem ideias:
“A única explicação que encontro para a minha inquietude é que aquele assunto deixou uma espécie de rastro de preocupação em mim, uma forma de preocupação vazia mas com a forma intacta, a casca, sobre a qual o resto do meu mobiliário mental irá pressionando-a até esmagá-la. Não poderá oferecer muita resistência porque é uma casca vazia, não tem absolutamente nada dentro.”
Os pré-pensamentos, o corpóreo que escapa, até tocarem o vazio. Vazio pois não há nada fora da escrita – “não existe esse fundo”, como diria Domeneck. A vida posta em cena. Por isso é sempre muito difícil separar as ideias da escrita… Uma compõe a outra, até se indeterminarem na forma última do discurso em dinâmica no papel, na “tabuinha para escrever”:
“Colocar por escrito uma ideia que nos tenha ocorrido: quando a gente quer, existe algo como um desalento prévio, uma convicção fatalista de que não será possível, ou que não sairá bem não só pelo trabalho que dá, mas por uma espécie de forçamento, de antinatural, que implica esse trabalho.”
A escrita implicará, assim, um ato gratuito, excesso dela mesma pelo seu jogo com o dizer, mas em cuja enunciação se tece aquele lugar único, o contrário do vazio, “balbucio amorfo de pensamento secreto”, busca de uma irredutível expressão:
“‘Jogando-me na cama, ou quase, faço à meia-noite a lista de atividade para amanhã. Uma vez feita, chegado o último item (o sétimo, depois do banco, meus escritos, compras, leituras, tarefas domésticas, ligações), sinto que falta algo, e fico com a caneta suspensa à meia altura, pensando, a pesar do vício e urgente desse sentimento de que me falta anotar algo, não posso recordá-lo.’
Tomei essa nota de noite, impromptu, depois de manter a caneta suspensa sobre o caderno durante um momento, tal como o escrevi. Acho que o que faltava anotar, a sétima tarefa, era justamente escrever algo mais. Fazer a lista havia sido um ato de escrita, e como tal pedia algo mais. Qualquer coisa? Sim. Mas não exatamente qualquer uma. Qualquer coisa que exigisse uma certa precisão da expressão.”
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A respeito daquilo que Aira refletiu sobre o gênero “caderno de notas” em Nouvelles impressions…, retomemos com um último aspecto: o fragmento é o estado incompleto do discurso, que faz com que nos distanciemos da Literatura, para o processo infindo de preenchê-la…
De modo análogo, a falta de conclusão latente nos textos de Aira, faz o leitor tomar certos deslocamentos de uma perspectiva literária. Uma novela ou ensaio tampouco vêm “prontos”, mas pedem recuos e leituras “extracampo”, a começar pelo encontro inusitado que temos com uma obra de Aira, totalmente fora dos padrões mercadológicos, dizendo que mesmo essa “pré-leitura” não deve ser nada programada, mas ao azar.
É em expressões fragmentárias como as de Aira, com seus mecanismos próprios, onde formulam-se novos afetos e formas de se agregar, e não tanto em literaturas humanistas e engajadas às “grandes pautas”. Pois é a vida íntima tomada em sua totalidade, no fim, o que impulsiona o literário, o público. E no presente milênio, com o Império Capital penetrando todas subjetividades, um novo vínculo afetivo com a experiência estética torna-se mais urgente. (Um lugar cuja forma de subsistência seja o contínuo jogo de aberturas e esgrimas do pensamento…)
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