Um ensaio de Maria Cleunice Fantinati da Silva e Elisabeth Battista
O ensaio a seguir foi escrito por Maria Cleunice Fantinati da Silva e Elisabeth Battista.
Maria Cleunice Fantinati da Silva é doutoranda do PPGEL – Estudos Literários da UNEMAT – Tangará da Serra. Professora do IFMT de Língua Portuguesa e Literatura/Espanhol – Campus Avançado Tangará da Serra – MT.
Elisabeth Battista é professora orientadora no PPGEL- Estudos Literários da UNEMAT – Tangará da Serra.
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EMBARQUE NA POESIA E IMAGENS DO LIVRO PORTO DE LUCIENE CARVALHO
As rememorações na poética do Porto de Luciene Carvalho
Porto (2006)[1] foi publicado em dois idiomas, português e espanhol[2]. A primeira parte do livro é composta por vinte poemas e vinte e uma imagens fotográficas que antecedem os poemas. Na combinação entre a voz poética de Luciane e as fotografias de Romulo Fraga é possível rememorar, viver no passado estando no presente, e imaginar o futuro. “Esta iconografia poética do Porto, é lampejo de imagens cotidianas subtraídas das retinas, do olhar e do coração apaixonado de Luciene Carvalho. O povo do Porto continua sendo povo, que das suas memórias e “dia-a-dia”, fazem uma projectação do imaginário rumo ao tempo futuro.” (BERTÚLIO, 2006).
As imagens produzidas por Romulo Fraga, que segundo Carvalho (2006) é um profissional que tem a sagacidade superurbano, linchando ao contemporâneo misturada a sensibilidade contemplativa do homem conectada à terra. Essas imagens extraem a essência da natureza cuiabana e a poesia de Luciene absorve todo o encanto do rio, da vegetação, dos objetos relacionados a cultura, das ruas, das casas, enfim são imagens carregadas de lembranças, porque “O desenho mental já é um modo incipiente de apreender o mundo. O desenho inscrito o faz com instrumento da mão; o fato de ser, […] (BOSI,1977). A imagem tem um passado que a constitui relacionado a um presente que a mantém viva e que permite a recorrência. As poesias as imagens é um convite ao coletivo para a rememoração da cultura, da terra e do rio.
(Foto 1: de Romulo Fraga extraída do livro Porto, 2006, p. 24)
O colar de contas de memória e, outros objetos como a lamparina á querosene, pedaço de corrente, pião de madeira e pedras que estão relacionados ao passado do povo do Porto. Tudo que é fotografado, segundo Benjamin (2012) é “por causa dos indícios que nele contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história. Nisso está uma significação política latente”. A fotografia estabelece a relação entre tempo e espaço, o congelamento dos acontecimentos no tempo. “A fotografia é indiferente a qualquer escala: não inventa, é a própria autentificação; jamais mente, […] Qualquer fotografia é desse modo certificado de presença.” (DUBOIS, 1993). Nesta perspectiva, a foto é literalmente uma emancipação de um corpo que estava ali, são partes da radiação que vem tocar o sujeito que contempla a imagem fotográfica.
O poema “Minha Mãe” (p.25) a partir das histórias contadas pela mãe o eu poético reelabora suas memórias de infância refazendo seu passado. Os fatos vividos pela poeta interliga-se a memória da mãe que narra um fato também de sua infância, assim realiza um profundo diálogo entre passado e presente. Busca ainda significações contidas nos fatos passados para reorganiza-los no presente, pois “Quando[3] menina, /a minha mãe me contou/que ela, quando menina/”. A voz poética revive o tempo de infância que é conduzido através da narrativa materna ao um passado ainda mais distante. Passado este que a poeta tem conhecimento através das histórias contadas pela mãe, já que “a memória pessoal ou autobiográfica, na infância, é circunscrita à família e a pequenos grupos, porque as crianças compreendem de maneiras particulares os fatos que fazem parte da memória histórica,” (SILVA et al.2012).
O Rio Cuiabá foi o palco da infância da mãe, no tempo em que a água era limpa e boa. Entre a infância da mãe e da filha nota-se uma transformação no rio. Transformação perceptível na visão da fase madura da poeta, que com tristeza contempla um rio “franzino, desabitado/ envergonhado de si/”, pois o eu poético cresceu e assistindo aos impactos ambientais que deixaram o rio envergonhado[4].
O processo de colonização esteve sempre presente na realidade mato-grossense no último século. Ao chegar a um local, o colonizador “… chegado pelos acasos da história, conseguiu não apenas um lugar, mas tornar o habitante, e outorgar-se privilégios surpreendentes em detrimento dos que a eles tinham direito.” (MEMMI, 1977). O colonizador interessa perpetuar a relação de poder e domínio que tem sobre o povo colonizado. A poeta utiliza -se da poesia como conscientização e denúncia social, nesta relação de exploração. O olhar poético e atravessa com um raio e fotografa a paisagem de seu bairro, logo o associa as lembranças do passado, deste modo, sua poesia assume um posicionamento crítico.
(Foto 2 de Romulo Fraga extraída do livro Porto, 2006, p. 60)
A foto do Rio Cuiabá está interligada ao poema “Benção”. O olhar poético contempla os impactos ambientais, e os seus versos denunciam, pois, a paisagem já não é a mesma.
Nos versos do poema “Benção” (p.61) a poeta concede a personificação do Porto. As inquietações do eu poético contempla o rio quase morto e se compadece do “velho amigo”. Carregado de comiseração conforta o amigo estabelecendo um diálogo através da evocação: ‘Porto, meu amigo,” fazendo um convite à leitura socialmente poética sobre o local. “Porto, meu amigo, /o seu coração antigo/ carrega tantas lembranças. […].” O Porto personificado e metaforizado é evocado pela voz poética que o particulariza pelo pronome possesivo “meu”, produzindo uma relação de intimidade entre eles. O Porto carrega as lembranças no coração, e é dotado de memória, conhece a história de Cuiabá e, assim como o eu poético, também é conhecedor da história do rio que morre aos pés do Porto. O fazer poético documentarista do Porto se dá através da memória e as imagens retratadas e fixadas nas páginas da obra.
Considerações finais
O livro Porto (2006) de Luciene Carvalho traz o Porto metaforizado carregado de significações culturais e identitária que debaixo do olhar atento da escritora sofreu transformações. A poeta mato-grossense revisa a história do Porto por meio da memória biográfica e dos registros fotográficos. Os olhos da poeta mato-grossense contemplam o impacto ambiental, grande parte devidos as atividades econômicas, ou seja, as transformações ocorridas durante o processo histórico de colonização.
Em Porto Luciene Carvalho navega nas águas do passado do rio Cuiabá, e sua poética caminha pelas ruas do bairro em que nasceu e viveu contemplando o Porto estagnado no tempo. Seu olhar poético atento visualiza a paisagem ao redor e percebe as mudanças ocorridas no bairro e no rio. Saudosa e consternada a poeta registra em versos parte da história de Cuiabá. O Porto e o rio se expandem nas poesias a partir da observação e as inquietações da poeta que assimila passado, observa o presente e, o futuro fica aberto para as reflexões e análise dos leitores.
Referências
Livros:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. ensaios sobre a literatura e história da cultura. 8.ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BERTÚLIO, W. Prefácio. In: CARVALHO, Luciene. Porto.2. ed. Cuiabá: Instituto Usina, 2006. p.11-17.
BOSI, Alfredo. O tempo e o ser da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações, 1996.
CARVALHO, Luciene. Porto.2. ed. Cuiabá: Instituto Usina, 2006.
DUBOIS. P. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução: APENZELLER, M. Campinas: Papirus, 1993.
MEMME, A. Retrato do Colonizado Precedido Pelo retrato do Colonizador. Tradução de Roland Corbisier e Marizza Pinto Coelho. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Artigos de periódicos:
SILVA, M.C.F; MACIEL, S. D. As memórias de Jorge Amado: O menino grapiúna e Navegação de cabotagem. Revista Moara, n.37, Estudos Literários. Pará: Universidade Federal do Pará, 2012.
[1] Ano da segunda edição de Porto que será utilizado neste estudo. Na segunda edição, o livro foi publicado pela Usina Literária em português e espanhol. A tradução para o espanhol foi de Adriana Gonçalves. Esta edição foi adotada por escolas do Chile.
[2] A segunda parte do livro, em língua espanhola, as imagens que antecedem as poesias na primeira parte, aparecem sombreadas em preto e branco como fundo das páginas em que são escritas a poesias.
[3] Grifo meu. O primeiro e terceiro verso estão marcados pela conjunção subordinada temporal, “quando”.
[4] Personificação do rio pelo eu- poético.