Um ensaio de Mario Rui Feliciani
Mario Rui Feliciani é fotógrafo e contista. Publicou O cheiro da uvaia no capim – nas manhãs de setembro, prosa variada; Histórias de amor e nem tanto e Dobras, contos; O jogo das combinações, infantil; e Quando o carteiro chegar, fotografia. Realizou as exposições fotográficas “… E um pouco das pessoas”, “Telas casuais”, “Uma casa e uns outros cantos”, “Quando o carteiro chegar”. Realizou capas de diversos livros com suas imagens. Publicou também contos e imagens em diversas revistas, inclusive o ensaio fotográfico “Assim vivem as corruíras”, na revista Ara da USP. Site: http://mruifotos.com/.
O texto abaixo foi retirado de O cheiro da uvaia no capim – nas manhãs de setembro e a imagem em destaque também é de autoria de Mario Rui Feliciani.
***
Noel, não 26, mas 60
pro Fabio Camarneiro, que me alegrou com a referência em sua dissertação
I – O pulo do gato
Certa poesia mudou, mas letra de música ainda exige aquela paciência de artesão chinês para encaixar sílabas nas notas musicais e tônicas nas posições certas. Só memória de elefante para se lembrar de palavra que caiba nesse cárcere apertado sem ofender o conteúdo: “e acima da razão a rima / e acima da rima / a nota da canção”. (*)
Moço ainda, já que sempre foi moço (será?), Noel deve ter se aborrecido com tanta restrição. Fazia uma letra de amante abandonado e despeitado, queria fulminar com pragas terríveis, e as notinhas teimavam em atravancar o legítimo fluxo da ira! ‘Ara, tenha paciência!’
Labutou um bocado até que sorriu do próprio engenho. Sarcasmo de craque, já que sempre foi craque-veterano (mesmo!). Só chutava de rosca. ‘Fosse gago não teria tanta dificuldade’ e nasceu o “Gago apaixonado” (**).
Golaço!
“mu-mu-mulher em mim fi-fizeste um estrago”
Com os dois primeiros “mu-” evitou um “cara” que não ficava mesmo bom. Com o “fi-” adicional fugiu do “tu” que também não combinava.
“Cara mulher em mim tu fizeste um estrago” (bem pior, não?)
Como dificuldade de gago não tem regra – nunca se sabe o número de sílabas acrescentadas – a liberdade foi completa e nasceu a canção genial. E, como a liberdade não morre cedo, não morreu no ato da composição e se soltaram também os intérpretes: cada cantor dobra ou triplica a sílaba que mais lhe convém, desde que elas sejam contadas e as tônicas postas nos seus devidos lugares.
Mas gato só pula bem porque tem bigodes longos, cultivados. Daí a teoria dos bigodes.
II – Os bigodes do gato
Ele nasceria na Vila. E lá na Vila, todos sabem, os meninos já vêm gaiatos.
Diz a lenda de um samba inacabado, gênero que não tem compromisso algum com este tipo de verdade, que foi numa noite de outono, muito estrelada e enluarada. A cabrocha tinha as pernas abertas, não para o ato de amor, mas para o seu fato, quando viu, na mão do médico aflito, o instrumento brilhante.
Coisa estúpida nessas carnes de calor e sombras meter instrumento liso e frio, mas havia que se catar a cabeça do gaiatinho que teimava em não passar.
Não era um bom dia para o doutor. Julgou em posição exata o aparelho e pressionou para afirmar os ferros. E, nos poucos segundos seguintes, toda uma vida se definiu.
Noel sentiu a primeira pressão um pouco à esquerda e o deslocamento do maxilar frágil. Pensou, no seu dialeto primeiro: “Esse não vai crescer bem, a boca da primeira moça vai ter de ser remunerada e nela hei de treinar molejos para compensar as más impressões das próximas”. Viveu, nesse primeiro instante, onze anos bem vividos.
Parasse ali a desventura e já não seria gaiato qualquer, mas era osso tão molinho que a mão do homem do outro lado não percebeu a resistência. Fez amassar toda a frente do queixo em direção ao pescoço. Aí a tristeza foi funda, mas sempre fina: “Resta-me comer de jeito feio. Ficam cancelados os jantares românticos e as luzes de velas. Não vou cantarolar pra elas meus sambas nem vibrar os cristais dos vinhos. Terei de ser o amante sorrateiro, um pouco cínico, posseiro dos leitos alheios. Leitos de desavisados que julgam suficientes os parcos cuidados que destinam a carnes sempre tão insaciáveis” . E, nesse meio segundo, lá se foram outros nove anos, percorridos no coração pequenino e frenético do vilaense.
O último aperto durou um pouco mais e doeu sua primeira dor física. Quebrou de vez os ossos e fez morta e cremada a pequena esperança que tinha nas correções futuras da ciência médica. E doeu tão fundo, que seu cromossomo mais sarcástico teve de segurar pelos ombros o seu cromossomo mais lírico que queria meter, na vontade do menino, o suicídio para dali a pouco. Foram catorze anos nessa luta dos dois poderosos cromossomos Noelenses. Luta de titãs, da qual, pela força, não haveria vencedor. E não houve. Mas o lírico deu de ombros e se recolheu na solidão com um imenso tanto faz. O sarcástico adversário amigo piscou-lhe cumplicidade e grudou-se nas vontades do menino que lhe entregou, naquele momento, a alma ferida: “Dessa massa toda quebrada há de se formar boca muito melhor ajustada às coxas das passistas. Terei trabalho para convencê-las de que beleza aqui não verão, mas vai ser tal o idílio que botarei nas suas partes, que minha fama vai correr a noite e toda mulher do Rio de Janeiro vai querer em mim o amante secreto”.
Se somarmos os onze, os nove e os catorze anos dos três momentos do fórceps que deu Noel Rosa à lua, tudo se explica. Nasceu com trinta e quatro! Nos vinte e seis com que nos presenteou, foi parceiro gaiato do cromossomo sarcástico e do cromossomo lírico. Fez canções de humor refinado e de tristeza sem excesso. E não podia – nem nós merecíamos – passar mais tempo conosco.
Foi embora, na verdade, aos sessenta.
—
(*) Festa Imodesta, de Caetano Veloso
(**) O Gago Apaixonado, de Noel Rosa