Um ensaio de Sílvia Schmidt
Sílvia Schmidt é natural de São Paulo, morou no Nordeste e Sul do Brasil, saindo de Florianópolis em 2000 em voos mais ousados para a Inglaterra e EUA, com o objetivo de estudar o idioma inglês. Formou-se em Letras pela Fatea em Lorena-SP. Especializações em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política na USP e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos, ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014, cria a editora para livros eletrônicos Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia Duty Free (2000) em formato epub durante residência artística na CASA DO SOL, em Campinas, no IHH (Instituto Hilda Hilst). Tem participado como mediadora desde 2016 em eventos literários em crítica interseccional, assim como participado de antologias e revistas literárias com poesia, contos e ensaios. Integra o movimento do Mulherio das Letras- Nacional desde sua criação em 2017.
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Na rima da menina e Lutei contra 100 leões – todos os 100 eram jumentos de Graziela Barduco
SUB-REPENTE
Morgana
do planalto da Bahia
surge uma sub-poesia
vai metendo o seu bedelho
quase que meio sem jeito
pois os versos, já sabemos,
não agradam a qualquer pleito
quanto mais versos ousados
oh! malditos versos feitos!
mas se se fala de um direito
que é o de se comunicar
as idéias exprimir
pôr a mente pra pensar
pôr o corpo pra fazer
os dois juntos, misturar
verso-prosa, não importa
vamos desorganizar
a não ser que se pretenda
copiar certos valores
tec-tecno-burocratas
vigilantes-infratores
mas ouviu-se do outro lado:
– sois artistas, meus senhores!
e para além deste discurso
mais-que-meta-discursivo
que já deu em confusão
nos mais diversos doutos ciclos
vai-se entrando em corpo lento
preenchendo os interstícios
o poema, o intruso
só pra quem sabe o que pensa
vai quebrando o protocolo
vai falando sem licença
sobre os tais gritos heróicos
das imerso-convivências
há de se saber viver
no limite da existência
dos afetos transversais
imunodeficiências
a moral partindo ao longe
deixa a arteficiência
e haja fé, haja Espinosa
haja ação esta eloquência
revolver é sempre a ordem
nosso ato de pertença
ao contrário estaríamos
nos templários, na doença
dos impulsos capitais
nossa contra-resistência
mas do vício do poder
faz-se a sub-dissidência
de todas as dicotomias
em fase de desconstrução
seja prática-teoria
des.sub.jetivação
ciência-filosofia
os sentidos, a razão
coisas da modernidade
corpo-alma é bem cristão
só não sei se foi escolha
a nossa triste educação
entendendo uma coisa antiga
sobre os corpos em fusão
e que há tempos o perigo
é que faz composição
se buscamos desafios
natureza em evolução
faz-se então do que é conflito
mola de subversão
neste campo que é minado
haja truques de espião
haja versos que não rimam
haja o dom da traição
donde vem o pensamento
em sua livre transição
crença que então nos move
pela tal libertação
redes são conectadas
pra buscar sustentação
táticas desviacionistas
agem feito infiltração
nas paredes de um sistema
que não traz satisfação
pelas redes, pelas ruas
processos de desconstrução
das técnicas, dos logos
dos conceitos, da visão
de como o mundo se encontra
em vista de uma transformação
ao sabermos que a história
já negou sua tradição
e o ser humano, ordinário
retomou sua posição
vai fazendo dia a dia
inventando a contra-mão
no Brasil não falta arte
pois não falta é artesão!
e se o tempo-espaço próprio
realmente não existir
se podemos retomá-los
se podemos não servir
se nos fartam os modelos
se queremos intervir
há de se saber andar
há de se fazer devir
há estradas a inventar
há caminhos a descobrir
no campo da experiência
pensamentos construir
pois o mundo nunca pronto
não se sabe onde vai dar
é possível que a ciência
venha a se equivocar
é possível que os deuses
se descubram sem altar
só andando passo a passo
(faz-se uma graça pra animar)
então, quem sabe, descubramos
o segredo de trilhar
por ladrilhos menos falsos
onde a vida faz dançar
ainda que sem os aplausos
desta mídia estrelar
pois antes mesmo disto tudo
não faltava água nem ar
não faltava a mata verde
nem a terra a abençoar
o destino desta gente
que não sabe onde parar
e quem quiser faça sua parte
que o silêncio não faz par!
(Morgana Poiesis, 2009)
E é daqui, destas noites e dias expandidos e com esta potente epígrafe, a poesia conceitual de Morgana Poiesis, generosamente cedida pela autora, que introduzo o também exercício de multiartista de Graziela Barduco. Há de se retumbar em bela encenação este caminho que se pronuncia instigante. Inovador em múltiplas áreas de atuação, como atriz, diretora e poeta cordelista, Graziela Barduco foi buscar inspiração na voz popular. De erudição oral, o cordel. Trabalho que inicia como fonte de pesquisa para sua tese de mestrado realizada em 2019; relato vívido em que podemos ouvir, de viva voz, através de sua participação no evento virtual da FLIC, e que coloco como referência, juntamente com outras, pelas quais construo este ensaio.
Barduco realiza a técnica do cordel em duas de suas obras poéticas a saber: Na rima da menina e Lutei contra 100 leões – todos os 100 eram jumentos.
A literatura de cordel, também conhecida como folheto, aqui no Brasil é um tipo de poesia popular que é impressa e divulgada em folhetos. Suas imagens são feitas através da xilogravura. Este é um gênero literário popular, que existe em outros países além do Brasil. O nome literatura de cordel tem origem na forma como esses folhetos são vendidos, eles normalmente são pendurados em barbantes, cordas ou cordéis. Por isso o nome Literatura de Cordel. Estes folhetos eram vendidos em bancas, nas feiras e nos mercados.
Esse tipo de literatura não existe apenas no Brasil, mas, também, na Sicilia (Itália), na Espanha, no México e em Portugal. Na Espanha é chamada de pliego de cordel e pliegos sueltos (folhas soltas). Em todos esses locais há literatura popular em versos.
Segundo Luís da Câmara Cascudo, no livro Vaqueiros e cantadores (Porto Alegre: Globo, 1939. p.16) os folhetos foram introduzidos no Brasil pelo cantador Silvino Pirauá de Lima, e depois pela dupla Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista. No início da publicação da literatura de cordel no País, muitos autores de folhetos eram também cantadores, que improvisavam versos, viajando pelas fazendas, vilarejos e cidades pequenas do sertão. Com a criação de imprensas particulares em casas e barracas de poetas, mudou o sistema de divulgação. O autor do folheto podia ficar num mesmo lugar a maior parte do tempo, porque suas obras eram vendidas por folheteiros ou revendedores empregados por ele.
O poeta popular é o representante do povo, o repórter dos acontecimentos da vida no Nordeste do Brasil. Não há limite na escolha dos temas para a criação de um folheto. Pode narrar os feitos de Lampião, as “prezepadas” de heróis como João Grilo ou Cancão de fogo, uma história de amor, acontecimentos importantes de interesse público.
Segundo Ariano Suassuna, um estudioso do assunto, a literatura popular em versos do Nordeste brasileiro pode ser classificada nos seguintes ciclos: o heróico, o maravilhoso, o religioso ou moral, o satírico e o histórico.
Atualmente, a literatura de cordel não tem um bom mercado no Brasil, como acontecia na década de 50, quando foram impressos e vendidos dois milhões de folhetos sobre a morte de Getúlio Vargas, num total de 60 títulos.
Hoje, os folhetos podem ser encontrados em alguns mercados públicos, como o Mercado de São José, no Recife, em feiras, como a de Caruaru, e em sebos (venda de livros usados). Há uma coleção de folhetos de cordel disponível para consulta, no acervo da Biblioteca Central Blanche Knopf da Fundação Joaquim Nabuco. CAMELO, Paulo. Literatura de cordel, 2005.
E para fundar estas bases, as duas obras de Graziela Barduco recebem a apresentação de reconhecidos nomes da cultura popular, a saber, do consagrado artista popular Antônio Nóbrega; que diz:
O livro de Grazi Na rima da menina, sinto-o menos como um livro-coletânea de poemas e mais como uma obra de um longo poema dividido em pequenas unidades com os nomes de Lamentei, Tédio, Trajetória, etc. Um extenso poema ou canção onde um eu lírico machucado, agoniado e em contínua suspensão procura se manter equilibrado sobre o tênue fio do cordão do mundo que, tenso, atravessando a imensa bocarra do precipício, estupidamente aberta, almeja, não a Grazi mas a nós todos engolir, engolfar e tritura. (NOBREGA, 2019, p. xx)
Voz do Coração
Debulhada no poema
com perfume de alfazema
me desmancho, sou extrema.
Me livrando do problema,
sigo em frente, queimo o chão.
Eu perfuro este sistema;
nos percalços,no esquema
desencano do dilema.
Gloso o mote, acho o tema,
ouço a voz do coração.
(BARDUCO, 2019. p. 6)
Este é um livro resistente e transformador. Resistente porque se orgulha da forma tradicional da métrica,da rima e do ritmo que a poesia de cordel, o repente, e outras linguagens como essas exigem; mas transformador porque apresenta um universo próprio de temas, mundos inteiros de novas maneiras de usar essas métricas. Por isso, deixa tudo maleável, melodioso e próximo de nós. (ARRAES, 2020, orelha)
No entanto Barduco quis ir além dos aspectos puramente formais editoriais. Em um primeiro momento seu tom é de indignação contra as mazelas sociais, o que respaldo aqui com excelente documento:
Este trabalho da Professora Raquel Coelho de Freitas, Indignação e conhecimento: para sentir-pensar o direito das minorias, traz à tona a face obscura das relações entre conhecimento e poder, presente na conduta inercial e inconsciente da obtenção, utilização e criação do conhecimento, em desfavor da dignidade e da Vida. O apelo forte da médica Nise da Silveira, que, no Brasil, revolucionou a Psiquiatria com as artes, ecoou forte, por igual, nos sentidos e na mente da Professora Raquel: “É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade”.
As reflexões da autora, neste trabalho, apresentam uma possibilidade de cura das epistemologias apontadas como esquizofrênicas por fragmentarem o ser humano amputando-lhe as emoções e os sentimentos ou aprisionando outras dimensões da alma e do espírito. Ela nos dá uma senha para a libertação dos espíritos humanos, espíritos dos que criam os conhecimentos e daqueles afetados por eles. Quando se demonstra e se aceita a atuação das emoções e dos sentimentos nos processos cognitivos, parece ser mais fácil romper o monopólio do conhecimento como fonte de poder distorcido, e de seu efeito nefasto, do sofrimento das minorias dominadas. (FREITAS, 2020, p. 15)
Ainda:
Em geral, o indignado epistêmico constrói conhecimentos em defesa das liberdades e igualdades dos direitos dos grupos minoritários, com o objetivo de fortalecer-lhes na luta por uma existência digna e politicamente atuante, mas, do mesmo modo, preocupa-se com os efeitos desse conhecimento no que respeita a abertura para a ação dos sujeitos. De certa forma, esse é um conhecimento ético, mas a presença das teorias críticas na condução desses pensamentos, emoções e sentimentos torna-se fundamental por trazer um aproveitamento maior dos processos de indignação dos pesquisadores, sem distanciá-los da realidade dos limites institucionais e circunstâncias em que constroem o conhecimento. É nesse sentido que o conhecimento, a partir da indignação, traz abertura para a reinterpretação e transformação da realidade repudiada. Isso não significa que o conhecimento será construído em raiva ou mesmo em indignação, como são confundidos os conceitos. Mas serão utilizados parâmetros teóricos e metodológicos com rigor próprio e apropriado a todas as possibilidades de conhecimento e reinterpretação da realidade dos sujeitos investigados,associados à realidade histórica e política, ideológica e econômica que os subjuga. Esse é um conhecimento que aspira à verdade, ao mesmo tempo em que tenta garantir ou restituir aos grupos com cidadania fragilizada ou minoritários suas autonomias, capacidades e participações políticas perdidas ou reduzidas. (FREITAS, 2020, p. 85)
Indignada, sofrendo as dores sociais que sua imensa sensibilidade percebe, funda sua obra e faz da arte de versejar de seus cordéis o caminho para a cura:
Apostei na minha rima
vi que era minha sina
Desde quando era menina
Que não pude abandonar
Abusei da cafeína
Enfrentei o meu mau clima
Acendi a lamparina
Pus-me então a versejar
Vasculhei a autoestima
No alto de uma colina
Não almejo obra prima
Só no verso me curar.
Tempos Sombrios
Destes tempos tão dementes
Que outrora eram distantes
Nunca foram-me tão rentes
Teneborosos tais instantes
Ódio e dor tão aparentes
Em meio aos ignorantes
Revelando suas serpentes
Sempre tão intolerantes.
(BARDUCO, 2019, p. 50)
Semente
Da semente que plantei
Vi nascer o meu conflito
Carma antigo que criei
Neste meu andar aflito
Quase outrora sufoquei
Neste olhar em que reflito.
(BARDUCO, 2019, p. 83)
Lamento que Finda
……………………………..
Da leveza da menina
Recordei tal sentimentos
Dissipando a mal neblina
Na escuta do momento
E ao virar por esta esquina
Despedi-me do lamento.
(BARDUCO, 2019, p. 97)
Como bem descreve Antonio Nóbrega (2019, p. xx): “o que ocorre é que Grazi costura tudo a todo o momento redes de proteção para o caso de vir a perder o equilíbrio: as palavras, articuladas a seu modo, agem como componentes químicos de uma espécie de gramática-que-cura.”
Tanto no livro 1 como no livro 2 temos estas bases fundantes nesta episteme dos tempos de crise: Indignação e cura.
Em Lutei contra 100 Leões – todos os 100 eram jumentos, Barduco, realiza 52 poemas, em todos os formatos, das estrofes que são as quadras, as sextilhas ou sextas, as septilhas ou sétimas, as oitavas e as décimas, ricamente ritmados como o poema que dá nome ao livreto:
1 Lutei contra 100 leões A
2 Todos os 100 eram jumentos B
3 Quando em meio aos tormentos B
4 Fui buscar boas lições A
5 Mas só vi aberrações A
6 Que se sentiam divinas C
7 Boicotando as meninas C
8 Pra sentirem-se potentes D
9 Porém, saiba, seus dementes D
10 Macho nenhum me domina.C
Aqui, segundo o Paulo Camelo (2005):
A décima é, no cordel, o que se pode chamar de “forma erudita”, pois sua utilização é mais trabalhada, até quando é utilizada pelos repentistas.Como nos outros esquemas estróficos, a décima também se utiliza da redondilha, mas é nesse formato que aparecem versos de arte maior, como o Martelo Agalopado e o Galope à beira-mar.
Embora possa apresentar esquema rímico diverso, o mais utilizado (a grande maioria) é o esquema ABBAACCDDC.
É nesse esquema estrófico (juntamente com o esquema rímico) que encontramos a glosa, formada por uma ou duas estrofes nos improvisos e por várias estrofes no cordel.
As posições tradicionais do mote em dístico na glosa são nas posições 4 e 10 ou nos dois últimos versos, 9 e 10.
Porém o cordel assim apresentado não necessita obrigatoriamente de utilizar o mote, mantendo a temática livre como os cordéis que utilizam estrofes menores.
E assim sucessivamente a Menina na rima, na luta por vida, reafirma a sua cura:
Novas cirandas
1 Eu pensei neste momento A
2 De profunda intensidade B
3 Já com o peso da idade B
4 Resvalando meu tormento A
5 Levantei o acampamento A
6 E parti pra outras bandas C
7 Pra buscar novas demandas C
8 E suprir tanto vazio D
9 Eu me perco no desvio D
10 Só pra achar novas cirandas.
Conclusão
Graziela Barduco nos traz, em sua mais refinada verve, um roteiro ritmado com graça, suas primeiras manifestações poéticas, tal a menina que, estudiosa e com curiosidade, vai em busca do sal da vida. O tempero para o existir sem não deixar de lado, a consciência que esta busca lhe remete enquanto estuda, aprende e expressa seu olhar prescrutador. Estar envolta em outra área do conhecimento, dentro de outro contexto, distante de suas agruras, a Menina através da Rima foi se alimentando e nos levando a estes lugares do povo, cuja prática está na dor, mas também na resistência atemporal da poesia oral, clássica dos grandes trovadores. Levam seus cantos, estes trovadores, para onde vão, alegrando-nos, criticando e mesmo alertando-nos das mazelas. Cantar, versejar, sua única fonte de resistência. Pendurados em seus fios para os passantes como eu, como você, como Barduco.
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Graziela Barduco (Registro, São Paulo, Brasil, em 26 de agosto de 1982) é uma atriz e escritora brasileira. É ex-modelo, arte-educadora e mestre em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena. É graduada em Cinema pela FAAP, pós-graduada em Artes Cênicas pela FPA, em Interpretação para Musical pela ESCH e em Administração pela UNIP, e é autora dos livros Na Rima da Menina (Editora Versejar) e Lutei Contra 100 Leões – Todos os 100 Eram Jumentos (Editora Feminas). Foi orientanda de Liana Ferraz na pós-graduação em Interpretação para Musical e no Mestrado, e aluna de Antônio Nobrega e Rosane Almeida.