Um ensaio de Sílvia Schmidt
Sílvia Schmidt é natural de São Paulo, morou no Nordeste e Sul do Brasil, saindo de Florianópolis em 2000 em voos mais ousados para Inglaterra e EUA, com o objetivo de estudar o idioma inglês. Formou-se Letras em Lorena-SP, com especializações em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política/USP, e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014 cria a editora para livros eletrônicos Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia Duty Free (2000) em formato epub durante residência artística na CASA DO SOL, em Campinas, no IHH (Instituto Hilda Hilst). Tem participado como mediadora desde 2016, em eventos literários em crítica interseccional assim como, participado de antologias e revistas literárias com poesia conto e ensaios.
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Um ensaio sobre Nenhum espelho reflete seu rosto (Arribaça, 2019) de Rosângela Vieira Rocha
Toda obra de um homem, seja em literatura, música, pintura, arquitetura ou em qualquer outra coisa, é sempre um autorretrato; e quanto mais ele tentar se esconder, mais o seu caráter se revelará, contra a sua vontade. Samuel Beckett
“A joalheria é mesmo uma profissão de sonho. Em que outro ofício eu poderia sentir esta plenitude, essa alegria por criar a beleza?”
“Sou muito grata aos meus ourives por terem acreditado no projeto da coleção. A ideia nasceu logo após o término com Ivan. Eu precisava me apegar a alguma coisa maior, ter uma meta convincente. Sei que pensei grande, talvez até em demasia, pois é uma atitude audaciosa conceber uma coleção própria com um número tão reduzido de funcionários.”
Com estas citações, inicio este breve comentário a respeito da obra Nenhum espelho reflete seu rosto de Rosângela Vieira Rocha, Editora Arribaça, 2019.
“Aproprio-me” de boa companhia: a resenha da excelente escritora e poeta Alessandra Vieira de Almeida, que, por seu detalhamento, preencherá estas linhas com exemplar descritivo, tema, enredo, linguagem da obra em questão, eis o link:
https://ruidomanifesto.org/uma-resenha-de-alexandra-vieira-de-almeida-2/
Não se tratará, portanto, de uma resenha, mas de uma análise do discurso, lembrando que, da maneira como foi pensado por Rosângela, o texto traz uma abertura inconteste para debater o impensável: a narrativa em primeira pessoa pela personagem Helen, que pode nos levar a acreditar, por isso, na sua aproximação com o saudoso personagem Bento Santiago da obra Dom Casmurro, 1899-do cânone brasileiro, referência recorrente de Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908). Se para ele tantos debates e ensaios foram requisitados, com o objetivo de abordar a primeira pessoa protagonista como narradora dos fatos que se apresentavam, aqui o discurso realizado pela protagonista Helen em primeira pessoa não será diferente. Como saber sobre o caráter, a psicologia de Ivan Hernandes (o antagonista), se não o temos além, mas somente pelo olhar de quem, com precioso autocentramento, não vê mais ninguém do que a si mesma, seus interesses e perspectivas do entorno, sequer a sua incapacidade de distanciar-se tão envolvida como espelho. A personagem protagonista é nossa única referência – dela se fala de Ivan , dela se leem cartas, e-mails ao psiquiatra, interlocutor, neste que é também um romance híbrido, como já aponta a resenha de Alessandra, dela sabemos o seus projetos e sucessos e olhares sobre o desejo de ser bem-sucedida, seus gostos, estilo e desapontamentos. Ela, Helen a narradora, ela o ponto de vista, ela o Narciso, ela o lago, ela Eco eco eco. Subjetividade. Não temos diálogos, exceto os que dela nos chegam, indiretamente.
A tessitura em primeira pessoa — a que Rosângela fez uso em sua obra, uma obra machadiana, caro leitor, terá sempre este quesito de dúvida: quem salvará a alma de Capitu, quem saberá a verdadeira psique de Ivan – neste “monólogo epistolar eletrônico” — tão bem definido por Alessandra?
Não faltarão teóricos para corroborar com esta análise – a de que o discurso em primeira pessoa é de longo exercício acadêmico – desde então com o clássico D. Casmurro, nosso personagem Bentinho, centralizando para ele todos os “olhos oblíquos e de ressaca”, sem chance de redenção, em um narrador não confiável, portanto.
“Apesar de Moretti reconhecer que o discurso indireto livre é uma forma mais flexível e eficaz de se narrar, ele nos mostra que esse discurso pode também dissimular e disseminar ainda mais a voz dominante do narrador, o que pode representar uma entropia para o romance, no sentido de estabilizá-lo a uma única visão: a do narrador, que, nesse caso, na maior parte das vezes, coincide com a do próprio autor da obra. Isso acontece porque o narrador se infiltra em tudo e em todos.” (In Narrativas em Primeira Pessoa. Um Estudo Comparativo de Dom Casmurro, São Bernado e A Hora da Estrela. Aluna: Manuella Bessa Kury. Orientador Professor Alexandre Pilatti. 2017-UnB).
Ivan Hernandes? Queremos saber quem é, quem poderia ter sido, quem o resgatará deste cenário narcísico, o que na realidade vem de Eletra? Se o primeiro amor para um homem é a sua mãe – para uma mulher seria o seu pai, caro Freud? Helen é autocentrada, apaixonada por seu pai – e afeiçoadíssima à sua mãe – incapaz de amar um outro além do triângulo pai-mãe-filha? Ela, a própria imagem a refletir seu rosto num espelho que pretensamente não reflete rosto algum? Desconfie, leitor. O papel do literato é sondar, investigar e instigar o leitor exigente.
Fico por aqui, com este que poderá abrir ainda mais a preciosa leitura em questão, uma obra lapidar, da escritora e talentosíssima autora Rosângela Vieira Rocha.
Lembrando que:
“e nesse lugar indefinido que minha coleção se situa, nesse ponto entre o real e o irreal, entre a joia possível e a imaginada.
Referências Bibliográficas
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Dom_Casmurro
http://bdm.unb.br/bitstream/10483/18717/1/2017_MariaManuellaBessaKury.pdf