Um ensaio de Walnice Vilalva
Walnice Vilalva é coordenadora do Núcleo Wlademir Dias-Pino e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários/UNEMAT, do qual também é docente permanente.
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MUITO ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER
De noites em noites, três poetas me fazem companhia, ocupam as minhas madrugadas. A lei que rege nesses tempos é um descanso da vigília, da hipocrisia burguesa. Um certo alívio do mundo. Um passo do instante. Íngreme talvez. São três os livros dessas madrugadas: O passo do instante (2019), Lucinda Persona; Dona (2019), Luciene Carvalho; Entraves (2017), Divanize Carbonieri. Três consciências poéticas, cadências e melodias díspares. Palavras feito ruído singular, sintonia feito moldura para qualquer ocasião. Certo é que pode ser mel ou fel; amanhecer, depois que a sombra tomou conta do mundo. Pode ser só relento. Quase nunca acalento.
Em toda pupila
Há uma noite armazenada
Onde as constelações se espalham
Como farinha (que o caruncho não rói)
(PERSONA, Lucinda. O passo do instante. 2019)
Em O passo do instante, a palavra nasce feito irmandade, vai costurando o cotidiano como se seu tecer pudesse fazer nascer o sol, os dias sem fim, “compondo secretas pegadas”. Há, em tudo, um cheiro de morte mais que de vida como “o músico crepitar das folhas secas”. Mais passado que presente ao relento. De toda palavra, a sonoridade suave (“amarelo da tarde”) se transformando em sombra que cobrirá o mundo. Há uma rigorosa harmonia sonora e muito mais forte que o apelo visual da palavra-imagem. O verso, quase sempre curto, remenda-se no próximo verso, sem pressa, alinhavando o mundo em melodias: “a brisa e o sopro das palavras” são o princípio de tudo. A gênese do livro: “O passo do instante”. Um fôlego quase sem fricativas (e muito mais oclusivas) desenhado em palavras-sons com predomínio de tonicidades fechadas, com consoantes nasais e vogais fechadas (consoantes m/n; alinhando i/o/u/: caminho/campânulas/compondo/mesmo/dono/suspensos/sombra/formar/bando/ponto/nem /esforço/silêncio/morto). Sonoridade que imprime o fechamento da noite, da vida, da morte. A suavidade dos versos de Lucinda Persona faz-se em nosso cobertor no mundo. Aquece sem levar a dor.
Dona, de Luciene Carvalho, como uma estrela da vida inteira, “Ou quase isso”. E diante do livro, ao abri-lo, uma questão me consome de imediato, antes mesmo da primeira leitura. Quem pode ser Dona? O tempo decorrido, o tempo do vivido aloja percepção sobre a existência. Ao imprimir o desejo “de dizer”, pela arqueologia da voz, sem tom solene, feito palavra falada com ardor, paixão, ódio, dor, perfazem-se as fases da vida, de meninice a mulher madura. Eis Dona: resultado do princípio de refazer-se em travessia, num tempo do vivido. Cada palavra no verso espreita, portanto, a força da memória, a força do passado. A voz feminina não cessa. É a voz que irrompe em diálogos, em contrapontos, contrastes, conflitos. É a voz que não quer sucumbir ou silenciar-se:
Estranha solidão traz os anos
em que
povoada de memória
(….)
viram cabides pendurados
no passado
(…)
(CARVALHO, Luciene. Dona. 2019)
Se, por vezes, o verso pode ser nostálgico, não se engane. O ritmo predominante é o da eloquência do “Eu” como consciência. É a configuração do sujeito reconhecendo-se em seu palmilhar, na constatação de “Eu”. Sem brios e sem pudor. É a palavra por isso mesmo empenhada em dizer. A palavra descabida em risco. A palavra que revida e assina a sina.
A identidade periférica
no passar dos anos
desprende-se da vergonha,
desfaz-se da cor tacanha
e se assina
(…)
(CARVALHO, Luciene. Dona. 2019)
Há um livro para cada noite, feito histórias de Scheherazade, mesmo sem marido-rei, em tempos de isolamento social e pandemia, prevalece a iminência da morte. Entraves, de Divanize Carbonieri, é o terceiro livro de minha seleção. Mais uma impressionante expressão poética. A construção imagética de uma cosmogonia, na correspondência (significante) que se dissipa (em prazer) para a ordem das coisas que se conta/sente, sem receio, sem transbordamento. Feito fosse um murmúrio. Não que seja o mais seguro ou o mais discreto, o murmúrio. Nada disso. O lirismo, em Entraves, carrega em tudo um ranço indelével de vida, em subordinadas existências. Quiçá restos, entraves: “o precisado sempre foi pouco/mas os trastes se proliferaram/nessa morada concomitante”.
A palavra assevera um princípio de explicação sem ardor em conjurar o presente, sem medo e sem amargor. De saber sem promessa de revelado “jardim das delícias”, não é poesia como procissão, para promessa, tão pouco para confissão. A palavra manifesta-se, duplamente, em interesse e desinteresse (do “eu”) de que disso se espera amplamente a possibilidade de escuta, na “morada das feras”.
o machado no pescoço
osso passado na lâmina
a anima solta e valente
rente ao nodo da garganta
se agiganta mais ao golpe
torpe mas gentil da foice
Que ceifa a linha da vida
Entretecida na carne
No cerne rosa da fé
(…)
(CARBONIERI, Divanize. Entraves, 2017)
A palavra impingida na dissolução da aura, sem falsear estranhamento algum em capturar o mundo. É a palavra das existências, numa lírica consumida pela expressão do reiterado e repetido mundo movente.
Apresentei-lhes, com brevidade, três impressões de leitura. Três livros. Três lirismos,… e a poesia em minhas noites, sem marido-rei, sem vontade de dormir.
Referências
CARBONIERI, Divanize. Entraves. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.
CARVALHO, Luciene. Dona. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2019.
PERSONA, Lucinda. O passo do instante. Cuiabá: Entrelinhas, 2019.
Lucinda Nogueira Persona
OBRIGADA IMENSO! Walnice Vilalva, por esse texto substancial contemplando três autoras, no valioso espaço da Ruído Manifesto. Uma abordagem que levanta véus em relação ao meu “O passo do instante”, oferecendo tantas reflexões. Que satisfação contar com seu olhar distinto, sua linguagem revigorante e seu coração maior.