Um fragmento em prosa de Adalberto Müller
Adalberto Müller é professor de teoria da literatura na UFF, escritor e tradutor. Publicou recentemente o livro de contos O traço do calígrafo (Editora Medusa) e a tradução anotada da Poesia Completa de Emily Dickinson (Editora da UnB/ Editora Unicamp, V. 1 2020, V. 2, 2021). No prelo, estão a sua retradução de Partido das coisas, de Francis Ponge (Iluminuras) e um livro de ensaios: A imagem sob a imagem (Eduff).
“As Malas” faz parte do livro de contos Pequena filosofia do voo, a sair em breve pela Editora 7Letras.
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As Malas
Nunca antes Jerzy Kamiński saíra de viagem para fora da pátria. Nunca havia abandonado a sua Gdańsk. Por isso é que ele estava agora refletindo sobre se deveria mesmo ter tomado aquele navio, e se, em vez de abandonar a sua avozinha, não devia ter escutado o conselho dela de não andar por aí em lugares desconhecidos de aventuras, pois sabe-se lá o que pode acontecer a uma pessoa no estrangeiro. Desde pequeno, morava com a avozinha, depois que os pais desapareceram na Primavera de Praga. Bem diferente dos seus colegas da Poczta Poslka, que fugiram para a Alemanha ou até para a Inglaterra depois do colapso do comunismo, Jerzy decidira manter a vida e o trabalho normalmente, porque ambas as coisas lhe eram inseparáveis.
Ademais, ele não gostava de férias, e por isso mesmo nunca saía de viagem. Qual o sentido de se visitar outras cidades? Velhas igrejas, monumentos equestres, ruas de paralelepípedos, lojas de artesanato com cartões postais e miniaturas, e sempre os mesmos prédios com pessoas vivendo dentro de apartamentos. Qual a diferença entre tomar uma taça de chá com torta de cereja às cinco e trinta em Cracóvia ou uma torta de chá com uma taça de cereja às cinco e trinta e cinco em Londres? E não há mesmo nada pior do que banhos de sol em praias apinhadas de gente, ou banhos de lagos com enxames de mosquitos. Também não se importava com o tal do mundo: ele conhecia bem o mundo, que passava pelos correios. Ele lera cartas semiabertas.
Uma vez, leu uma frase num cartão postal de Lisboa, endereçado a uma tal Wisława Kalergis, e teve que anotá-la também num caderno que tinha na escrivaninha. Não era daquelas frases típicas de turistas, de quem não pesa as palavras e escreve com puro entusiasmo. Não – aquela frase tinha uma espécie de desespero contido: “Na véspera de não partir nunca, ao menos não há que se fazer as malas”. Era aquilo, portanto. Nada mais podia ser dito de novo sobre o tema das viagens. Aquela frase o levaria inclusive a tomar a decisão de nunca sair de sua cidade.
Gostava de ver as grandes gruas no porto, carregando os navios. E de andar à tarde lentamente pelo canal, depois do almoço, com sua avozinha. É mais seguro andar pelas ruas que se conhece, ela dizia. As pessoas se perdem em cruzamentos desconhecidos. Em ruas tortas que dão em becos sem saída.
Só que agora, contrariando a si mesmo, e a toda a cautelosa sabedoria da vovó, ele estava em Lisboa. Sim, ele teve que aceitar a imposição do seu chefe e do setor de pessoal. “Você deve gozar as suas férias, rapaz. Deve viajar. Não se pode passar a vida inteira no mesmo lugar! Isso não está bem”. Quando se viu acuado, acabou entrando numa agência de viagens que ficava no caminho do trabalho. Queria ir a qualquer lugar. A senhora Paniatowska, gerente da agência, de cabelo enrolado com bobes e touca, começou propondo Paris e Londres; mas, diante do silêncio dele, que revelava pouca ambição, acabou sugerindo Portugal, que tinha bons ares e preços módicos. Ele aceitou sem pensar duas vezes.
Ao menos, estava perto do mar. Havia um porto também, mas fazia muito calor. E ele tinha problemas com o português. Como se pode entender uma língua sem declinações? Desse modo, não se pode desenvolver as ideias com segurança, pois as palavras parecem estar descendo a jusante de um rio veloz e cheio de percalços, sempre prestes a afundarem ou se chocarem contra obstáculos, ou umas contra as outras, já que não possuem o contrapeso das declinações. Sim, as declinações equilibram uma língua, e graças a elas o pensamento corre sem entraves dentro da frase. Na língua portuguesa, parece que as ideias não cabem de todo nas frases, que precisam ser esticadas mais e mais, ou então sofrer acréscimos de outras frases, mais curtas, como as partes agregadas a uma destas casas da Alfama. Além do mais, o português lhe parecia uma língua escorregadia, que vai se modificando de forma imprevisível. Aliás, as pessoas daqui estavam sempre escorregando por alguma ruela com escadarias, desaparecendo por algum beco, que vai dar sabe-se lá onde. Isso sem contar as longas ruas curvas, que iam certamente dar em outro labirinto. Por essa razão, manteve-se inicialmente entre a Baixa e o Santos, que lhe pareciam mais equilibradas.
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Filomena deixou a água da pia retirar os últimos vestígios de sabão. Felizmente a mancha estava na barra do casaco, e foi mais fácil lavar. Depois de torcer com a mão, ela levou a parte molhada do casaco ao secador automático. Ficou ali, a pôr e a tirar a mão para acionar o secador. Melhor seria um ice tea… Não, ela mal conhece o tipo, não bebe com estranhos. Ice tea é que calhava. Pêssego. Queria era um daiquiri. Que o tipo não é feio, não é. Polaco. Aquelas línguas eslavas, com vocativo, acusativo, instrumental… Não tinha mais idade para aprender essas coisas ablativas. Imagina pá, alguém que vá lá ao mercado e usar o acusativo para pedir cebolas e batatas! Podia ter sido boa latinista. Aquilo fazia tanto tempo, nos primeiros anos de Coimbra, mas ela se encantou pelo Camilo, e começou a sonhar em ser escritora. Aí veio o Pedro Seixas, calhou-lhe um marido, como ela dizia para si mesma. Seria ele quem começaria a revolução nas letras portuguesas, tão acostumadas ao quietismo. Tinha ambição, o Pedro Seixas. Ambição. Não gostava da palavra. Cheirava-lhe a cabotinismo. Tinha mais apreço a escritores reclusos. Conveio-lhe ser a namorada do poeta. Depois passou a ser a noiva do poeta. E, com a benção do Padre, exigência da família dele, aceitou ser a esposa do poeta, sem imaginar a dor que viria a ser, duas décadas depois, nas quais passou da felicidade à infelicidade sucessivas vezes, a viúva do poeta, e, no fim de tudo, a representante legal do seu espólio literário. Sim, coube-lhe mais essa amargura, a de, enquanto vivesse, estar presa ao homem que amou e desamou, mesmo no fim da vida, e cuidar da sua obra. O que ela era, um apêndice? Um apenso? Uma nota de rodapé? Uma legenda na foto? Ah, mas os diários…Os diários. Totalmente sem forma. Os desvarios da cabeça de uma mulher. A que viriam aquelas cousas íntimas? Vá-se lá saber. Mas não gostava de fôrmas. Pedro não: ele, escrevia com a tradição. Manejava o decassílabo heroico e o alexandrino. E as rimas. Como rimava aquele homem! Para que tanta rima, meu Deus? Tanta gente pobre no mundo, e há gente que quer encontrar rimas ricas. Para o diabo com a prosódia. Metros, queria-os apenas para tecidos. Sabia costurar bem. Poderia ter sido estilista. Diários, ora pois. Intermináveis. Devia tê-los feito queimar com as cinzas de Pedro. Com os manuscritos de Pedro. Cinco anos de câncer. No fim, era um bebé. Sempre foi.
Ah, mas se não tivesse chovido tanto na noite passada, o parque não estaria tão sujo, e este casaco não teria ficado sujo depois de o Pessoa se ter atirado daquele modo inesperado. Não se via nenhuma etiqueta no casaco, devia ter sido feito por medida. Quem é que faz fatos por medida hoje em dia? Claro, nesses países de Leste. O corte era bom. Mas o cheiro era mortífero. Essa gente não se limpa? Devia trazer o Pessoa na trela. O Pessoa tem andado deveras exaltado. É preciso trazer o Pessoa com trela curta. Pobre do Pessoa. Afinal, é uma criança, este cão. Mas também sofre, o coitado. E também se desmanchará em átomos, pelo universo. Partículas quânticas. Evitar o sofrimento. Séneca. Precisava de ler mais Séneca. Em latim, é claro. De brevitate vitae.
Sentiu uma mão no seu ombro. Era uma rapariga querendo usar o secador. Ela parecia aborrecida. Mas que vestido vulgar.
Ele não notou que ela estava usando batom quando voltou. Sim. Discreto. O olhar dele demorou-se um segundo. Que sim, estava feliz de ver que a mancha desaparecera quase por completo do seu blazer. Ela disse que já estava seco, que já podia usar, ele vestiu o blazer, e agradeceu a Filomena, estendendo a mão. Ela retribuiu o gesto, sem entender ou entendendo bem. Ele perguntou-lhe se lhe apetecia beber alguma coisa, que ele a convidava. Ela agradeceu, sentando-se na cadeira que ele puxou, que educado, sim, ela tomaria um ice tea. Com bastante gelo, ela pediu à empregada, muito simpática a rapariga. Houve um silêncio. Fazia bastante calor, e ela ainda não tinha comido nada, será que ele quer almoçar, o polaco? Aqui as sandes não são más. Ou os carapaus, com arroz de grelos? Ele olhou para o cardápio um bocado. Por fim, assentiu.
Algumas nuvens pesadas estavam cobrindo o céu. Vinha do porto um vento trazido pelo Tejo. Será que ainda chovia?
Ela abriu a bolsa e tirou de lá um frasco com a ração do Pessoa. Ele reparou na bagunça da grande bolsa dela. Ela tirou um livro e o deixou sobre a mesa. Ele perguntou se podia ver o livro. Claro. Ele folheou, mas não entendeu nada, a não ser que era um livro de poesia. Lembrou-se do verso que leu no cartão postal. E resolveu perguntar se ela conhecia, como quem não quer nada. Mas é claro que ela conhecia. Quem não conhece esse verso de Fernando Pessoa. Pessoa? Como o cão? Sim, como o cão. Ele não conhecia Fernando Pessoa. Então ela explicou quem era Pessoa. Os heterônimos. O drama em gente. Ele estava descontente com a literatura de Portugal, e, claro está, pôs-se a inventar ele mesmo uma literatura inteira. Inventou autores. Cada um com uma voz distinta. Cada um, uma pessoa diferente. Que o nome dele, Pessoa, por acaso, queria dizer pessoa. O Pessoa era mesmo o ortónimo, poeta meio decadentista e excessivo. Dos heterónimos, ela tinha consideração pelo Ricardo Reis, que era latinista e estoico. Tinha mais afinidade ainda com o Bernardo Soares, um escrivão melancólico e enfadado, a anotar no seu diário as coisas miúdas de um desencantado. Encantava-se com a ideia do diário. De tomar nota de coisas insignificantes. Estava falando mais de si do que de Soares ou de Pessoa, mas isso ele não poderia perceber. Afinal, um polaco, que mal sabia dizer boa tarde, não perceberia coisas tão subtis.
Ele não estava entendendo muito mesmo. Estava pensando em selos. Mas também se lembrou que era um pouco como o Bernardo Soares, um escrivão, fazendo um trabalho insignificante. Só que nunca se pôs a escrever nada além dos bilhetes que deixava para a avó. Certa feita, teve que escrever um discurso para a festa de aposentadoria do seu primeiro chefe nos Correios. Ele gostava muito do chefe, e por isso caprichou em cada frase, na escolha dos adjetivos corretos. Passou duas semanas escrevendo o discurso. No dia da festa, leu entusiasmado. Mas os aplausos foram mirrados. O Chefe não disse mais do que obrigado. E ali morreu toda e qualquer veleidade literária que ele teve durante uns dias.
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