Um lobo desce ao metrô – Por Eduardo Veras
Eduardo Veras é doutor em Literatura Comparada pela UFMG. Atualmente, é professor de Literatura na UFTM. É autor de O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens [Ensaio] (Relicário, 2016) e de Deserto Azul [Poesia] (Penalux, 2018).
Casa do Norte de Rodrigo Lobo Damasceno foi publicado em 2020 pela editora Corsário-Satã. Clique aqui para ler outros poemas de Casa do Norte na Ruído Manifesto.
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Um lobo desce ao metrô
Nas travessias que realiza entre a Bahia e o Sudeste, Feira de Santana e São Paulo, Rodrigo Lobo Damasceno não percorre apenas BRs e estradas esburacadas. A travessia do poeta em Casa do Norte é múltipla e alarga amplamente o sentido da palavra migração. É uma travessia da poesia-música brasileira: Tom Zé, Sabotage, Ferreira Gullar, Torquato, Bandeira, Oswald, Luiz Gonzaga, Belchior. Travessia da poesia-música ocidental: Punk Rock, Bob Dylan. Travessia da latino-américa literária: Borges, Bolaños. Tudo isso em epígrafes, versos e ecos, na cabeça, no corpo, nas entranhas do poema. Travessia de espaços heterogêneos: “vaqueiros motorizados atropelando as vacas”; “o ronco / tosco / da moto / no mato”; a “carroça” e o “viaduto”; o bairro, o quintal, a “américa do sul”. Travessia de culturas: “La Catedral” de Augustín Bairros tocada pelo “velho comunista / de mãos longas e secas” que ensina francês. Travessia da modernidade, do capitalismo e suas catástrofes. Poeta “nortista construtivista”, Lobo desfaz hierarquias, espacializa signos, simbólica e concretamente.
A poesia de Lobo é explosão do continuum da história, da cultura: “qualquer coisa / vindo contra. / abrindo espaço, / derrubando prédios, professores, / prateleiras, catálogos.” Institui a diferença sendo Nordeste em São Paulo, São Paulo no Nordeste, a América do Sul no bairro da infância, a pluralidade de espaços díspares contra a “abstração totalizante e unificadora” da ideia de um Brasil único, conforme observa Nícollas Ranieri, no belo prefácio que assina. Na catinga, entre carcarás caçadores, “o corpo / (esburacado / pela polícia) / como carne / imprestável / pra consumo” é um raio de dissonância que atravessa o antigo idílio regionalista e rasga o mito romântico da inocência sertaneja.
Lobo é, no final das contas, poeta sem terra, ou de todas as terras, poeta cuja “sina é bater perna”, poeta cuja identidade se deixa contaminar pelas andanças e caminhos cruzados: “outras terras / (sou feito delas, / efeito delas)”. E é nesse movimento sem norte e repouso da migração, “ave sem asas ou rotas / fiel sem templos ou penas”, a migração como errância em si, que Lobo se apropria do presente, do tempo e do espaço heterogêneos do Brasil, nome que comporta tantos países em permutação constante.
Em Casa do Norte se revela também o legado do Sentimento do mundo e d’A rosa do povo. Em língua drummondiana, Lobo é “poeta do finito e da matéria”, poeta do “tempo presente”, dos “homens presentes”, da “vida presente”. Lobo anunciará a morte dos “poetas / metafísicos da Bahia”, denunciará a artificialidade das paisagens gregas, ‘sonatas’ e ‘alaúdes’ sob o sol tropical, celebrará o triunfo da imanência, do calor, do agora. Como aquele Drummond dos anos 1940, também deseja o povo, deseja a comunicação com o proletariado:
começo a escrever
quando a luz laranja do poste incide em cheio
na cara do presente
de merda
em que vivemos
e deixa ler o futuro nas plantas dos pés cansados
dos operários
Poeta compromissado, expressa claramente o desejo de se abrir para o mundo grande e para os companheiros, espaços da alteridade:
poder passar
passo a passo
lento
mesmo
que
um tanto temeroso
pelas terras
(desconhecidas)
dos outros
(e
com eles
tomar:
licor
comer:
o pão
(…)
cair
no
sono sonhar
que minha
canção
estourou
nos ouvidos
sentimentais
do povo)
“Como o meu pão / e digo o meu poema”, dizem os olhos migrantes de Lobo, que veem o mundo da humilde perspectiva de quem caminha com os homens do povo e com eles se identificam, ainda que, como aliás também em Drummond, a comunicação do poeta com seus contemporâneos e companheiros não deixe de constituir uma tarefa dramática, um desafio ético. Acolher o diverso, como quem recolhe as ruínas do progresso, é gesto generoso e estratégico do poeta que tenta se apropriar da agoridade, evoquemos Walter Benjamin mais uma vez, da simultaneidade sem hierarquias de tempos, espaços e experiências, tudo ao mesmo tempo agora, como na maior metrópole do país, atravessada por mil vozes e mil veredas, pois o “poema é um plágio da descida ao metrô” e suas rizomáticas linhas cruzadas.